sexta-feira, 19 de agosto de 2011

III. As fontes das dores da Santa Virgem

Nota do blogue: Segue a terceira parte do livro Ao pé da Cruz ou As Dores de Maria escrito pelo piedoso Padre Frederick William Faber, acompanhe o ESPECIAL AQUI.

III.
As fontes das dores da Santa Virgem



 Podemos agora nos ocupar de nossa terceira questão. Quais seriam as fontes das dores da Santa Virgem? Por fontes não entendemos exatamente o mesmo que causas, mas sim os motivos íntimos de sensibilidade que se encontravam em Seu Coração e que conferiram às Suas dores aquela amargura distintiva. Quando uma mãe perde seu filho único, essa perda é para ela assaz amarga, e deve sua distinção e intensidade à circunstância de encontrar sentimentos especiais no coração materno. O menino é tão belo que sua perda parece impossível de suportar, ou então, ele promete tanto do ponto de vista intelectual e moral, ou ele morreu tão jovem, ou ainda, ele tinha alguma coisa que, humanamente falando, não lhe devia causar a morte, ou então esta se deu precisamente em um momento em que as circunstâncias a fazem mais sensível para a família do que seria em outro tempo; essas particularidades, que se poderiam multiplicar ao infinito, são como centros duma amargura particular, em torno dos quais a dor se ajunta, penetra, se estende, se dilata, se envenena, bem além da medida real da aflição. No entanto, todas essas coisas são para a mãe afligida as realidades mais cruéis, e que não se limitam a aumentar suas mágoas duma maneira imaginária ou puramente sentimental. E no que concerne à Santa Virgem, em consideração Àquele por quem Ela sofria, a aflição real jamais poderia ser além da medida. Pelo contrário, a dor humana, mesmo a dor de Maria, não poderia igualar a verdadeira causa do sofrimento nesse caso. Todavia também no Coração de Maria havia centros em torno dos quais Suas mágoas se concentravam, tornando-se ali mais penosas e produzindo dores bruscas e agudas mais violentas ainda. O que vamos agora considerar são esses centros, essas fontes especiais de amargura contínua; mas, ao mesmo tempo, não devemos nos esquecer que as perfeições do Coração de Maria ultrapassam a tal ponto a nossa inteligência, que certamente haverá várias dessas fontes de dores dilacerantes para Ela que nós não poderemos apreciar, que nós não poderemos sequer imaginar; não devemos nos esquecer que, ao atravessarmos esse país que nos é estranho, fica faltando ainda sondarmos as regiões situadas mais ao lá, regiões ainda desconhecidas, e cuja descoberta talvez constitua uma das numerosas ocupações plenas de delícias reservadas ao Céu.

A primeira das fontes de dor para Maria era o pensamento de que Ela não podia morrer com Jesus. Há não poucas mães que, em circunstâncias semelhantes, desejam vivamente a morte. Para um coração destroçado, a morte é preferível à vida. E quando a morte não constitui uma separação, mas uma união ininterrupta, uma união transferida desta terra desolada ao seio do Pai Celeste, qual mãe afligida não a consideraria um inestimável favor? Assim o foi, e no mais alto grau, para Maria. Jamais um filho foi tão querido à sua mãe terrestre quanto Jesus o foi para Maria; jamais um filho foi tão bom, tão belo, tão amável, tão verdadeiramente filho, como Ele o foi para Sua Mãe. Os direitos de pai e de mãe se concentravam à uma vez no Coração de Maria, de sorte que Jesus era duas vezes Seu Filho, duplamente Seu Filho. E quem poderia descrever os atrativos de Sua sagrada Humanidade? Quem poderia dizer como o amor de Maria se enraíza nas profundezas de Seu Coração maternal? Em outras palavras, Ele era Deus. E Ele Lhe havia obedecido durante trinta e três anos, numa união de amor tão encantadora que Maria teria mil vezes perdido a vida se Ele mesmo não A sustentasse, não moderando a doce violência do amor dEla, mas fortificando o Seu Coração com Seu poder onipotente. E Ele partia. O sol divino se escondia sob um mar de Sangue, entre nuvens pavorosas de ignomínia. Poderia Ela jamais o esquecer? Até o fim, o Calvário estará em Seu Coração. Essa seria uma lembrança que o tempo jamais apagaria, um desses horrores que a distância torna mais cortantes quando a vista os pode considerar com mais calma. E mesmo que isso não fosse assim, o fato é que Jesus já não estará junto dEla [da forma que antes], e para que viverá Ela então? O sol de Sua vida terá se posto. Foi o fim para Ela, muito mais do que teria sido se todo o mundo acabasse. Eram trevas inconcebíveis e que poderiam mesmo parecer absolutamente impossíveis, pois, como o mundo poderia continuar a existir sem Jesus? [C’étaient des ténèbres inconcevables et qui pouvaient même paraître absolument impossibles, car, comment le monde pouvait-il continuer d’exister sans Jésus?] Quando Nosso Senhor fecha os olhos, pode-se figurar que todas as bênçãos são retiradas da terra e que todo o seu resplendor se muda em uma sombra fria e glacial. Quando os doces acentos de Sua voz não se puderem mais ouvir, seguramente toda a natureza guardará um silêncio que nada poderá interromper, sem os gritos hediondos do povo em delírio, que deveriam continuar a se multiplicar e a se repetir para sempre através do espaço. A terra ficaria com Pedro; Maria ficaria com João. Um seria o Apóstolo do mundo, outro o Apóstolo da Mãe. Mas Jesus teria partido.

Pode-se perguntar não somente por que Maria deveria continuar a viver, mas também como Ela viveria. Ser-Lhe-ia possível viver sem Jesus? Não, sem dúvida, se não A socorresse a Onipotência Divina. Como o amor de Maria deve ter sido prodigioso para obedecer à Vontade de Seu Filho sobre o Calvário, àquela Vontade que Lhe prescrevia a separação, àquela Vontade que Lhe obrigava a prolongar Sua vida ainda durante quinze anos dum incompreensível martírio! Ela tinha uma vez pedido a Ele para transformar a água em vinho, e Ele respondeu que Sua hora ainda não havia chegado; mas, em todo caso, cumprindo-se o desejo de Maria, o milagre foi realizado, sem que Ela tivesse necessidade de renovar Seu pedido. Ela não poderia esquecer-se disso sobre o Calvário; afinal, a prolongação de Sua vida por mais quinze anos era conforme à Vontade de Jesus, mas, se por um momento, Ela manifestasse uma vontade contrária, teria acaso de insistir com o Filho agonizante? Uma palavra, um olhar bastaria. E por que Ele não A atenderia? Amá-lA-ia menos agora do que em Caná da Galiléia? Seria melhor ficar e cumprir a Vontade de Jesus, ou partir com Ele e se alegrar com Sua glória? Sim; é Ela mais santa ficando do que partindo, pois a santidade, à medida que cresce, perde sua própria vontade na Vontade de Deus. Por outro lado, descer, como Seu Filho, os abismos da dor, não seria, por assim dizer, encantador? Assim como Jesus desejava os maiores sofrimentos e experimentou como que um desgosto divino pela insuficiência mesmo dos excessos do Calvário, assim Maria desejava sofrer mais, e Jesus concede a Ela algo que Seu Pai não concedera a Ele mesmo: uma outra Paixão de cento e oitenta meses. [De même que Jésus désire de plus grandes souffrances et qu’il éprouve comme un regret divin de l’insuffisance même des excès du Calvaire, ainsi Marie désire souffrir davantage, et Jésus lui donne ce que son Père ne lui accorde pas à lui-même, une autre Passion de cent quatre-vingts mois.] É preciso reconhecer, pois, que o fato de não morrer com Jesus constituiu para Maria uma dor especial, que não podemos apreciar devidamente, que não podemos contemplar senão de longe. Sua união com Jesus fôra tão habitual, tão estreita e tão essencial, que havia se tornado a Sua vida; e agora, no mais importante de todos os atos, Ela não poderia estar unida a Ele [isto é, não poderia morrer com Ele no Calvário]. Via-se obrigada a diferir dEle, quando o que Ela mais ardentemente desejava era se assemelhar a Ele. Mais ainda: essa falta de união deveria resultar numa verdadeira separação, e quem poderia apreciar o que essa separação significava para Maria? Entretanto, Seu amor pelo menos obteve a prerrogativa de sofrer por mais tempo que Nosso Senhor e de continuar a servi-lO por um espaço de tempo quase igual à metade daquele que Ele havia vivido. Teríamos de avançar bem longe na santidade mais eminente, para entender um pouco como Ela jamais esteve tão intimamente unida a Seu Filho, quanto na hora em que O deixou partir sem Ela.

Uma outra fonte de dores que aumentaram a amargura dos sofrimentos de Maria, foi o conhecimento que Ela tinha de que Suas próprias dores aumentavam as de Jesus, e faziam mesmo com que a agonia dEle se tornasse mais cruel. Entre os sofrimentos de Seu Filho não havia um sequer que, pelo alívio do qual, Ela desse o mundo. Nenhum opróbrio era infligido a Jesus sem atingir a alma de Maria, sem fazer sangrar o Seu Coração. Quando os golpes e as blasfêmias, os insultos, as zombarias e os maus tratos se multiplicavam contra Nosso Senhor, cada nova violência afigurava-se à Maria o limite do que Ela poderia suportar; parecia-Lhe então que uma gota a mais e o mar de Suas dores transbordaria. E Ela percebia que a vista de Seu Coração amargurado, sem cessar presente aos olhos de Seu Filho, era para Ele mais terrível do que a flagelação, do que a coroa de espinhos, que os escarros e bofetadas. Era Ela então, por assim dizer, o principal carrasco de Seu amado Filho. Mais Ela O amava ternamente, mais Ela se unia afetuosamente a Ele, mais Ela suportava voluntariamente Seus sofrimentos, mais profundamente também a lança afiada penetrava na alma de Jesus. Ela sabia disso, e, no entanto, não estava em Seu poder restringir Suas próprias dores; Sua santidade mesma as tornava mil vezes maiores. Em vão se esforçaria Ela por ocultá-las: o próprio esforço seria uma agonia. E uma aparência calma, uma atitude firme, olhos sem lágrimas, não poderiam esconder de Jesus os abismos secretos do Coração Imaculado de Sua Mãe.

Quem poderia dizer as torturas que sofria assim o Seu generoso devotamento? Ó crueldade aparente do amor imenso, que há querido que Maria fosse uma parte integrante e preeminente da cruel Paixão do Salvador! [O cruauté apparente de l’amour immense, qui avait voulu que Marie fût une partie intégrale et prééminente de la cruelle Passion du Sauveur!] Quem conheceria a plenitude de graças que havia em Maria?! Que confiança perfeita Ele tinha na santidade dEla! A vida não havia sido para Jesus sem alegrias, mesmo alegrias terrestres. [La vie n’avait pás été pour Jésus sans joies, et même sans joies terrestres.] Sua Mãe havia sido um mundo de doçuras para o Homem das dores; e agora, justamente no amor dEle pelo Pai, no amor dEle por Sua Mãe, no amor dEle por nós, Ele encontra todas aquelas doçuras mudadas num oceano de amargura, o único para estancar-Lhe a sede em meio aos mistérios de Sua terrível Paixão. Ele conhecia tão o amor de Maria, conhecia-Lhe tão bem a coragem, que não hesitou em entregar-Lhe uma cruz cujo peso se aproximava o mais possível do peso da dEle. Mas o que isso significou para Ela, apesar da conformidade de Seu Coração com a Vontade de Seu Filho, qual o excesso de aflição, qual a dor sem igual que daí resultou, somos incapazes de o dizer. Quando estão em questão as dores de Maria, perto da margem mesma o mar já é bem profundo.

Mas Maria deveria em tudo isso ser simplesmente passiva? Se, por vontade de Seu Filho, Ela devia ser uma parte da Paixão, não seria permitido a Ela pensar que, pelo menos, o carinho de Seu amor traria algum alívio aos sofrimentos de Seu Filho? Ela estava muito perto do Verbo Encarnado para não compreender a estranha união da mais viva pena com a mais viva alegria, que foi sempre o estado regular da alma de Jesus sobre a terra; e o amor duma tal Mãe, amor mais profundo que as fontes mesmas da aflição, não poderia tornar-se uma fonte de alegria para o Coração de Seu Filho? [Elle a été trop près du Verbe incarné pour ne pas comprendre l’étrange union de la peine la plus vive avec la plus vive joie, qui fut l’état régulier de l’âme de Jésus sur la terre; et l’amour d’une telle Mère, amour plus profond que les sources mêmes de l’affliction, ne pouvait-il pas devenir une source de joie pour le Coeur de son Fils?] O devotamento heróico da Mãe deveria certamente causar ao Filho a mais deliciosa satisfação. E, no entanto, nos aventuramos a supor que não foi assim. As analogias da Paixão nos parecem todas indicar o contrário. Jesus afasta, então, de Sua natureza inferior a felicidade sensível resultante da visão beatífica; Ele se despoja e se separa de tudo aquilo que possa consolá-lO. O desamparo por parte do Pai é um abismo no qual Jesus se lança voluntariamente; Ele não poderia, pois, permitir que o amor de Sua Mãe O ajudasse e O consolasse. Seria difícil de imaginar como Ele poderia conservar, em meio àquelas trevas, a mais grande alegria terrestre de Sua Humanidade sagrada. Seria, com efeito, uma falta de harmonia com a Paixão, com aquela desolação tão completa e sombria em que Ele se encontrava, e que foi a mais terrível das desolações espirituais que um homem jamais conheceu, mais terrível para Ele, o Salvador sem pecado, do que havia sido para Caim a terra inóspita com todas as suas formas e suas sombras de horror, quando, com as mãos tintas de sangue e o coração apodrecido, ele a vagava torturado pelos remorsos. Não, Maria não podia pensar que, naquela hora, Seu amor fosse algum consolo ao Coração sagrado de Seu Filho. Mas não poderia Ela, ao menos, dispensar-Lhe algum cuidado maternal? Oh! Seus desvelos não poderiam ser outros que aqueles dispensados pela mãe dos Macabeus. Os espinhos faziam correr lenta e penosamente o Sangue sobre os olhos de Jesus, e Maria não podia se aproximar para enxugar o Sangue dAquele cuja função especial era enxugar, para sempre, as lágrimas de todos os olhos. Os lábios de Jesus são ressequidos pela sede, descorados, rachados; mas Ela não pode umedecer nem por um instante, com Seu véu úmido, os lábios de Seu Filho, cujo Sangue não cessará de refrescar doravante milhares de almas, entre os fogos do Purgatório. Esta cabeça dolorida, sem nenhum travesseiro para recostar-se, esta bela Cabeça, para Maria a mais bela das coisas criadas, se se apóia ela para trás, os espinhos se lhe cravam; se se inclina para frente, todo o corpo se contorce mais nos pregos. E Maria não pode sustentar com Suas mãos essa cabeça tão querida e a fazer repousar ao menos alguns instantes. Não! Não havia então alívio algum, nem para Jesus, nem para Maria. Ó Mãe! Não priveis Vosso Filho de algum ponto de Sua perfeita Paixão; e vede também quanto a cada instante Ele estende para Vós, generosamente, os limites do oceano de Vossas dores!

A terceira fonte de dor para Maria foi, como vimos, o não poder aliviar a Paixão de Seu Filho. Outra causa de aflição particular para Ela foi o ser testemunha ocular da Paixão. Revelações de pessoas santas nos afirmam que, embora a Santa Virgem estivesse ausente corporalmente aos sofrimentos do Getsêmani, Ela a assistiu em espírito, bem como seguiu interiormente as várias fases da agonia de Nosso Senhor, com uma misteriosa e sobrenatural união. Ela esteve fisicamente presente à flagelação, ao momento do Ecce Homo, à subida para o Calvário, à crucifixão inteira. Parece-nos mais provável que Maria não tenha entrado na casa de Anás e Caifás, mas de perto da porta mesma Ela poderia ouvir os insultos e os golpes dados a Jesus. Que coisa tremenda para uma mãe, sobretudo para uma Mãe tão sensível e amante, seguir o único Filho num drama sangrento, passo a passo! Já teria sido horrível para Ela só o passar essas horas recolhida em alguma casa, apenas a ouvir os gritos afastados da multidão furiosa e a receber as notícias do que se passava. Mas não foi assim. Seu Filho era Deus, e o melhor a fazer, naquele momento, era estar perto dEle. Mais perto de Deus: isso vale para todos nós, mas sobretudo valia para Ela, a Mãe de Deus. Embora Sua união com Deus fosse contínua em todos os tempos e lugares, assim Ela poderia ver melhor a Jesus. Ela não podia se conceder o alívio que as mães cristãs encontram, em semelhante ocasião, no conforto da religião. Não havia distinção entre o Seu Menino querido e o Deus santíssimo que A golpeava. Sua religião e Sua dor iam pelo mesmo caminho; o Filho sofredor e o Deus santíssimo eram o mesmo objeto; isso é o que dava uma unidade esmagadora às Suas dores. Era preciso, pois, que Maria partisse e acompanhasse os passos de Jesus; que molhasse Seus pés no Sangue por Ele derramado pelo caminho. Era preciso que Ela escutasse o tétrico barulho dos golpes de açoite cortando o ar; que Ela contasse as marcas dos mesmos; que Ela deixasse penetrar em Seu Coração a variedade de sons que eles produziam e que Lhe causavam mortais angústias ao tombarem sobre o corpo sagrado de Seu Filho. Era preciso que Maria visse Jesus irrisoriamente chamado de rei dos judeus e dos gentios. Quando Pilatos, movido por uma indigna piedade, O abandona à flagelação, Maria adora a majestade real de Seu Filho, no momento mesmo em que esta é mais aniquilada sob a violência da dor. Ela tinha de ver, sobre o Calvário, os lúgubres golpes de martelo, que fincavam os pregos, dos quais os sons, amortecidos pela terna carne das mãos e pés de Jesus, traspassavam-Lhe a alma. Era-Lhe necessário escutar as sete belas palavras pronunciadas sobre a Cruz pelo Cristo, como um canto fúnebre; essas palavras duma melancolia tão suave, que teriam bastado para arrancar a alma de Maria de Seu corpo fraco e sofredor. Todas essas coisas são terríveis. Era uma Mãe de verdade! Todavia, Ela não consentiria nem por um instante que aquilo fosse diferente. Aqui está a real sublimidade de Seu Coração. Mas foi para Ela uma indizível agravação do sofrimento. E o fato é que tudo isso já estava presente aos Seus olhos, como a mais clara revelação, pelo menos desde a profecia de Simeão. Porém a sensação é qualquer coisa de pior que a previsão. E diferente. Os sentidos então traem a assistência da razão. Eles interrompem aquela tranqüilidade interior na qual as mais sombrias visões podem tomar posse da alma sem a perturbar. A visão real turva o recolhimento, que é nossa força quando sofremos. Ela impede a alma de se defender, ou a obriga aos mais penosos esforços para conservar a coragem necessária. Ademais, os sentidos são especialmente afetados pela vista, pelos sons e pelos ataques da dor; eles penetram a carne e a fazem estremecer de dor; eles torturam os nervos, gelando e fervendo o sangue, alternadamente; ferem o cérebro como punhais, e serram como um torno o coração perturbado. Foi, assim, o espetáculo mesmo da Paixão que fez o martírio de Maria, atingindo Sua alma e Seu corpo. Algo a mais do que o simples esgotamento físico após um excesso de esforço mental, porque esse espetáculo submeteu, por assim dizer, cada membro de Maria à tortura e fez de cada pulsação de Seu Coração um instrumento de dor.

Encontraremos ainda outra fonte das dores de Maria em Sua vista distinta e Sua apreciação exata do pecado. Não podemos duvidar que, independentemente da impecabilidade e da sabedoria natural de Maria, Nosso Senhor Lhe concedeu participar do conhecimento sobrenatural do pecado, de sua excessiva malícia e da ira adorável que ele excita em Deus, conhecimento esse próprio de Jesus, e que deu aos sofrimentos de Sua Paixão aquele caráter singular. Foi a vista do pecado que crucificou a alma de Jesus no jardim das oliveiras. Foi o fardo do pecado que O prostrou por terra. E foi o cálice da cólera de Seu Pai que Ele pedia, com tanta tristeza, que se afastasse dEle. Lemos que Santa Catarina de Gênova caiu desfalecida quando aprouve a Deus lhe mostrar em visão o horror real dum só pecado venial. [Ce fut la vue du péché qui crucifia l’âme de Jésus au jardin des oliviers. Ce fut le fardeau du péché qui le renversa par terre. Ce fut le calice de la colère de son Père qu’il pria, avec tant de tristesse, d’éloigner de lui. Nous lisons que sainte Catherine de Gênes tombait en défaillance quand il plaisit à Dieu de lui montrer en vision l’horreur réelle d’un seul péché véniel.] Desmaiar Maria não podia. Ela era muito forte, muito perfeita, muito madura para semelhantes fraquezas. Seu uso da razão, que havia começado já no momento de Sua Imaculada Conceição, e que nunca mais se interrompeu nem por um só instante, não poderia ser convenientemente suspendido por alguma letargia, por algum desvanecimento. Mas deve-se crer necessariamente que, quaisquer que tenham sido os dons sobrenaturais concedidos à Santa Catarina de Gênova ou a outros santos para ver o pecado, os dons desta sorte concedidos à Santa Virgem sobrepassam-nos a mais não poder. Em verdade, se consideramos por um instante o papel que a vista penetrantíssima do pecado teve na Paixão de Nosso Senhor, e, por outro lado, a comunicação de atributos [grifo do original], por assim dizer, entre a Sua Paixão e a Compaixão de Maria, somos obrigados a supor que nossa terna Mãe foi dotada duma considerável parte dessa vista, tão estonteante e tão esmagadora para o próprio Jesus. Pessoa alguma estimava como Maria a inocência sem mácula da Vítima. Ninguém apreciava tão bem como Ela a beleza e a sublimidade da bondade dEle. Ninguém percebia melhor do que Ela a ingratidão daqueles que por Ele foram instruídos, nutridos, curados, consolados com uma paciência tão desinteressada e uma afeição tão cheia de carinho. Pessoa alguma sentia como Ela duma forma mais penetrante os excessos de barbárie cometidos naquelas horas cruéis da noite da quinta-feira santa e da manhã que se lhe seguiu. Quando todos os Seus pensamentos foram reunidos em um só, com que clareza Maria viu a variedade, a intensidade, a malignidade do pecado especial da Paixão! Mas Ela veria ainda mais.

Aos Seus olhos apareceu, sobre os ombros curvados de Seu Filho, a visão hedionda, apavorante, gigantesca, dos pecados do mundo inteiro! E ainda não era tudo. Ela via as alturas da divindade de Jesus; Ela via que era verdadeiramente a Deus que todo o pecado atingia, atacava, cobria de opróbrios e feria de morte; era como se uma luz imensa emanasse dum outro universo mais divino e viesse brilhar no momento da Paixão, espargindo suas vivas claridades sobre o pecado, de tal modo que somente Jesus e Maria o poderia suportar ver. É-nos impossível exprimir a dor causada por essa radiante luz. Poderíamos permanecer vivos se Deus nos mostrasse a nós mesmos tal como somos? É preciso mesmo que já sejamos imortais quando a hora do juízo chegar.

Mas os pecados do mundo inteiro, que se concentravam na Paixão, Maria os via todo inteiros, e a agonia que isso Lhe causava fazia sofrer milhares de mortes interiores. [Pourrions-nous vivre si Dieu nous montrait à nous-mêmes tels que nous sommes? Il faut que nous soyons devenus immortels avant que l’heure de notre jugement arrive. Mais les péchés du monde entier, qui se concentraient dans la Passion, Marie les voyait tout entiers, et l’agonie qu’elle em éprouva lui fit souffrir mille morts intérieures.]

Não é fácil dizer qual teria sido o ponto culminante, qual a mais profunda escuridão da Paixão. Os instrumentos da Paixão não eram todos materiais. Entre eles se encontravam a lança, os cravos, o martelo, os espinhos e os açoites. Eles representavam tanto sofrimentos intelectuais e morais quanto físicos. E, com essas três naturezas, os instrumentos de tortura foram numerosos e variados. Cada um deles feria vivamente.

Nenhum deles deve ser considerado como maior ou menor que os demais. Cada um tinha, à sua maneira, sua preeminência. Todos se elevaram tão alto que os olhos não os podem acompanhar. A Paixão foi um excesso de excessos. Tudo o que lhe diz respeito é em excesso. [La Passion fut un excès d’excès. Tout ce qui lui appartient était en excès.] Isso, em grande parte, é o que a impede de ser rebaixada a uma simples epopéia de sofrimentos humanos, independentemente mesmo da divindade de Cristo.

Mas dos fatos que nela se passaram não podemos dizer quais foram mais dolorosos que os outros. Reconhecemos a sexta fonte de dor de Maria na previsão da ingratidão que os fiéis demonstrariam para com esses excessos da Paixão de nosso Salvador. A Mãe da Igreja, a Rainha dos Apóstolos, via já tudo em Seu Coração. Com efeito, a Seus olhos se desenrolava já o imenso panorama de indiferença a respeito do pecado perdoado [e que se devia expiar], de recaída no pecado mortal, de pecados veniais se expandindo como hordas inomináveis sobre toda a alma e devastando o paraíso de Deus, de negligências provenientes da frieza do coração, de imperfeições na guarda da modéstia, de vida cientemente afastada da mortificação, de desgosto [voluntário] pelas coisas espirituais, de uso muito livre e muito leviano dos grandes Sacramentos que custaram tão caro a nosso Salvador, de caracteres ciumentos e desconfiados, de uma dureza revoltante oculta sob hipócrita vaidade, e desse número infinito de seres pusilânimes dentre os quais um Santo se eleva vez por outra, como uma palmeira em meio às nuvens de areia do deserto. E tudo isso não era, todavia, senão uma visão do futuro. Onde estava Pedro? Chorava então ao abrigo de alguma gruta fora dos muros da cidade, pela abundância de graça que havia novamente recebido? Onde estava André, ele que viria a ser o modelo de todos os amantes da Cruz? Onde estava Tiago, na diocese do qual seu Mestre era então crucificado? [Où était Jacques, dans le diocese duquel son Maître était alors crucifié?] Havia apenas a terna Madalena, havia o coração sublime de João, e havia Maria, Ela mesma, para representar o mundo sobre o Calvário. Oh! Mesmo que depois desse dia todo ser batizado se tornasse tão santo quanto um apóstolo, a Paixão ainda estaria mal recompensada! Mas, a não poder ser assim, se pelo menos os que amam a Jesus O amassem com ardor! Essas criaturas cujo coração cuja união com Deus se reduz a aproximar-se dos sacramentos raramente; homens que não freqüentam a igreja senão em dias de festa, e que, como se fossem animais abobados, hesitam indecisos entre o pastor e o mercenário, dando seu amor aos prazeres do mundo ao mesmo tempo que sua fé a Deus quando Ele faz troar Seu trovão; esses seres que se divertem sem medida sobre a terra, limitando-se a pensar na eternidade quando se encontram no leito da morte; são esses que terão o Crucificado como pai? Oh! Para o Coração generoso e heróico de Maria esse era um espetáculo tão doloroso quanto a própria Paixão. Ela via, através do lado aberto e sangrante de Jesus sobre a Cruz, o Coração do Salvador abatido por essa visão [da ingratidão humana], e esse espetáculo dava a Seu próprio Coração materno um esgotamento e um desgosto indizíveis.

Mas que diremos à vista do que iria se perder? Pensai no valor de cada gota daquele Sangue! E por que falaremos de gotas? Maria desliza em Sangue. [Marie glisse dans le Sang.] Ele escorre sobre Suas mãos e as cobre, ao pé da Cruz. O Sangue se estende como um longo tapete de púrpura entre o pé da Cruz e a coluna da flagelação. As raízes nodosas das oliveiras do Getsêmani estão vermelhas em mais de um ponto. Vede as estrelas inumeráveis, essa poeira luminosa que resplandece em meio à noite, sobre a abóbada brilhante dos céus: um só dos golpes de açoites que Nosso Senhor recebeu bastaria para resgatá-las todas, suposto que houvessem caído milhares de vezes.

Que seria, portanto, em se tratando de seis mil golpes de açoite?! Quem calculará o infinito da Redenção? E todo esse Sangue, todos esses golpes de açoite, são oferecidos por cada alma em particular; cada alma possui sua parte nessa Redenção de valor infinito; e, no entanto, quantas almas perdidas para toda a eternidade! Eis o preço que o Cristo há pago, e do qual Lhe roubam a recompensa. Se uma só alma pela qual essa Paixão foi suportada intencionalmente e duma forma tal como o universo nunca viu igual, a saber, por um sacrifício inconcebível de Deus para Deus mesmo, se uma só alma dessas, como dizíamos, houvesse de perecer eternamente e triunfar, por suas ofensas, sobre o amor de seu Salvador; se uma só alma houvesse de dessecar nos fogos ardentes do inferno os oceanos do Sangue divino, que angústia isso já seria para o sagrado Coração de Jesus! Tal visão arrancar-Lhe-ia um grito maior que aquele que se escapou do coração terno e delicado de Jacó, quando lhe apresentaram a túnica de José coberta de manchas de sangue. Que dor sofreria, então, o Salvador, sendo que certamente não só uma alma, senão milhões e milhões deveriam se perder? E, todavia, suspenso na Cruz, Ele não se arrepende de Seu suplício. Isso é tudo o que podemos dizer. Mas Ele sofre uma outra crucificação invisível e muito mais cruel ainda do que aquela do madeiro, do ferro, do sangue, do título irrisório que Lhe afixaram. Isso tudo não foi senão crucificar um Coração já crucificado, supliciado pelo pensamento da multidão inumerável daqueles que se separariam dEle, que cessariam de ser Seus membros e se perderiam; daqueles que a inveja triunfante e a raiva de Satanás separariam dEle cruelmente, como que desmembrando-O duma maneira irremediável. ‘Não Lhe quebrarão osso algum’. [grifo do original] Mas os ossos de Sua alma foram todos quebrados por essa cruel Paixão interior. Nesta sombria agonia, neste cálice particular, Maria teve também a Sua parte. Se nesse momento Ela pode distinguir o quanto esse pensamento Lhe fazia sofrer por causa de Seu imenso amor a Jesus e o quanto Lhe fazia sofrer por causa de Seu imenso amor às almas, então Ela terá visto dois abismos separados e assustadores, e nos quais, já meio morta de angústia, Ela iria entrar voluntariamente, apesar do horror que sentia.

Tais foram as sete fontes das dores de Maria, na origem das quais está ainda a fonte principal, a raiz de todas as outras, quer dizer, a beleza incomparável de nosso querido Salvador. É dela que brotava cada um desses sofrimentos tão vivos e tão dolorosos. Ela agravava tudo, mas sem poder haver exagero, porque ela não podia fazer nada maior do que ela mesma. Maria mesma não conhecia toda essa beleza, que é de fato incompreensível, absolutamente incompreensível em si mesma. Mas o que Maria conhecia já era tão além da nossa capacidade, que nem isso o podemos compreender. E, no entanto, nós podemos dizer grandes coisas sobre a beleza de nosso Salvador, e mesmo conceber pensamentos que sobrepassam todas as palavras; e, se mesmo os pensamentos vêm a faltar, podemos então chorar, verter lágrimas numa celestial comoção. Podemos ser consumidos pelo amor e morrer da beleza de Jesus; chegaremos assim ao posto de Maria, mas não teremos nunca a inteligência que Ela tinha da infinita beleza de Jesus. Lá nas profundezas e abismos incomensuráveis do Coração de Maria, essa beleza era um oceano que, às vezes, se sublevava, transbordando em outros mares situados mais abaixo, produzindo ondas dum amargor insuportável.

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(Próximo subtítulo a ser traduzido: “Caracteres distintivos das dores da Santa Virgem”)

PS: Grifos meus.