terça-feira, 31 de maio de 2011

VII- O GRANDE SILÊNCIO

VII- O GRANDE SILÊNCIO


Esse silêncio devia durar mais de duas horas. Durante esse lapso de tempo as trevas ir-se-ão cada vez mais adensando; tudo se espavorirá em torno do augusto moribundo, e as palavras que Ele acaba de pronunciar operarão lentamente, qual germe poderoso, nas almas.

O perdão, lançado indistintamente sobre todos os algozes e sobre todos os soldados, já inclina o coração do centurião e o dos seus homens... E dentro em pouco, prostrando-se, eles vão ser os primeiros a exclamar: este era verdadeiramente o Filho de Deus!

A misericórdia divina concebida ao ladrão enche-o, eleva-o, purifica-o, e aquele santo moribundo conserva a alma deliciosamente ocupada com aquela soberana e divina compaixão.

Aquela dupla palavra: Mulher, eis aí Vosso filho! João, eis aí vossa mãe!... oh! como opera a um tempo suave e dolorosamente no coração de Maria e de Seu novo filho!

A princípio, ao primeiro enunciado dessa palavra, João e Maria devem ter-se entreolhado... e, nesses recíprocos olhares, que respeitosa veneração da parte do novo filho!... que ternura do lado da nova Mãe!

Em seguida Maria compreendeu, com a reflexão e pela operação divina que agia nEla, compreendeu todo o singular alcance dessa doação. Indubitavelmente, e é o primeiro sentido verdadeiro falando daquele modo Jesus não fazia mais do que cumprir os deveres de um bom Filho. Ele partia, morria: Sua Mãe ali estava, ia ficar sozinha, e Ele não quer que Ela fique assim sem arrimo e isolada. Queria dizer que Ele ainda se ocupava com Ela, mesmo durante a Sua vida pública. Nem tudo está relatado nos evangelhos: há um evangelho do coração que se não escreve, sente-se.

Jesus se vai, e quer que alguém O substitua: Seus olhos procuram, há um apóstolo presente... Ah! se Pedro ali estivesse! Aquela Mãe inconsolável tocava-lhe de direito, a ele, o chefe da Igreja, o vigário, o representante de Cristo. Mas não estava. E então Jesus dá à felicidade de João aquilo que houvera talvez dado ao primado de Pedro, se este tivesse sido fiel.

Há horas em que Deus procura: feliz de quem se acha então sob os olhares do Senhor!

Portanto Maria se torna a Mãe de João, e João deverá ter para com Ela toda a ternura de Jesus.

Porém a Virgem penetrou mais a fundo na palavra de Seu Filho: dá-Lhe Ele coisa melhor e Lhe pede mais. Ela compreendeu-O.

É uma maternidade mais extensa; e, segundo a tradição da piedade cristã, para corresponder a Seu Filho, que lhO pedia moribundo, Ela devia amar no novo filho todos os homens presentes, todos os homens futuros.

E é precisamente esta dolorosa maternidade que executa a Sua obra durante aquelas duas horas de silêncio.

- Ah! meu Jesus, que é que Me pedis? Todos os homens presentes?... E Maria olha à volta de Si. Há lá João, certamente o Seu olhar se compraz nele, mas há também os algozes, os soldados, os motejadores, os sacerdotes e os fariseus. Será mister ir até estes? – Ó Mãe dolorosa, é mister. Que revolvimento nas Suas entranhas! Uma vez mais, é mister.

E os homens vindouros? Ai! Assim como Seu Filho, do alto da Cruz, abraçava com Seu olhar divino todas as gerações, do pé da Cruz Maria deve estender a amplitude da Sua maternidade a todos os homens futuros.

Não recueis ante esta tarefa, ó minha Mãe, vinde até mim e estreitai-me nesse cruel amplexo!

Ela assim faz; porém, ao mesmo tempo em que se Lhe operava nas entranhas essa nova e cruel parturição, o coração se Lhe rasgava sob a ponta do gládio prometido por Simeão. Ela compreendeu então o alcance da sinistra profecia; mas, como via Seu Filho oferecer as mãos e os pés aos cravos, ofereceu Seu coração ao gládio, e foi desta ferida cruenta que nós nascemos, naquela hora de silêncio e de trevas, ao pé da Cruz, a dois passos do ladrão perdoado, ao lado de Madalena chorosa, e na aproximação simbólica e divina de João e Maria.

E Jesus contemplava tudo do alto ao Seu trono sangrento; e pôde dizer então, como após os dias da primeira criação, que tudo tinha sido bem feito: et vidit Deus quod esset bonum (Gên. 1,12).

Desde aquela hora do Calvário, desde aquele parto laborioso e novo, Maria tem pelo mundo duas classes bem distintas de filhos.

Há a raça de João: as almas puras ou purificadas. A estas, as carícias e as doçuras dos olhares de uma Mãe que ama neles a vida de Seu Jesus, a graça. Quantas se encontram, ó Mãe, dessas almas seletas? Eu vejo só um João no Calvário.

E há a raça dos algozes. Ai! Quem há que possa lisonjear-se de lhe não pertencer ou de lhe não haver pertencido?

- Quem comete o pecado não crucifica de novo Jesus Cristo? E ao lado dessa Cruz incessantemente erguida não deve haver uma Mãe incessantemente de pé e dolorosa? Ela lá está, mas nós lá estamos com Ela, e Ela nos ama.

E é este talvez um dos maiores milagres de Deus, o haver sabido de tal sorte atrair a Si os pecadores, que deles tenha feito filhos de Sua Mãe; porque aquela hora lúgubre Maria não somente Se digna de recebê-los, como ainda os procura, vai atrás deles, retém-nos e lhes abre o Seu coração como o melhor e o mais seguro dos refúgios.

Sancta Maria, refugium paccatorum, ora pro nobis.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Quarta palavra: O desamparo.)