Os últimos traços do semblante: Pai, perdoai-lhes
Foi do seio turbulento daquelas zombarias que se elevou, doce e vitoriosa como um incenso em meio aos acres vapores do holocausto, a primeira palavra do Cristo na Cruz. A horrível crucifixão acaba de ser concluída, o patíbulo está ereto, é o momento em que todo o corpo, suspenso de chagas, experimenta a mais intensa dor. Reina desordem no Calvário: gritos, ameaças, soluços, maldições cruzam-se como setas em torno daquele semblante.
Foi então que daquela boca contraída escapou este grito: “Pai, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”.
São os últimos traços do semblante do Senhor que se perfazem. Assim como, no momento de entregar o seu quadro, o pintor se concentra e, nos derradeiros toques do pincel, faz passar o resto e o supremo do seu ideal, assim também a Bondade divina termina a Sua obra difundindo-se em tintas mais profundas sobre todo o semblante do Cristo.
“Pai, perdoai-lhes!” É uma prece, é um ato de humildade também: o Filho que tudo pode suplica ao Pai que perdoe; em verdade, não podia Ele próprio perdoar? É, ademais, uma doçura que desculpa, que atenua, que procura o que há de bom e de menos mau nos culpados, para justificar o perdão: porque importa que esse perdão seja justificado, tanto a delicada bondade de Deus receia magoar poupando e humilhar absolvendo.
“Eles não sabem o que fazem”. Como haveriam de sabê-lo, aqueles homens habituados àquela tarefa? Era acaso o seu primeiro crucificado? Será o último?
Nada deve parecer mais indiferente do que o algoz. Ele mata indistintamente, como outros compram, vendem, edificam e traficam; aquilo se torna uma função da sua existência. Acaba ele, pois, por matar com insensibilidade.
Assim faziam os algozes de Jesus: batendo a golpes redobrados naquelas mãos que se crispam, naqueles pés que se retraem de dor, eles pensam nos proventos que vão tirar da sua rude tarefa, têm o olho no rosto no vaso de vinho que lhes pagará o suor, e no monte das vestes da vítima que eles vão repetir entre si. É preciso dizer todas as coisas como devem ter-se passado.
“Meu pai, Vós bem o vedes, eles não sabem o que fazem”.
Os próprios sacerdotes, os anciãos e todo o povo que moteja também ignoram, não sabem. São Paulo (I Cor 2,8) di-lo-á mais tarde: se eles tivessem conhecido que aquele era o Deus de glória, nunca O teriam crucificado. Mas não conheceram, crucificaram-nO mesmo por se haver Ele dito o Messias: logo, é que Ele não o era mesmo.
Matando-O, pretendem eles, ao contrário, render preito à verdade, restabelecer tudo na ordem, confundir a impostura e salvar o povo de perigosa credulidade: “Pai, perdoai-lhes a todos, verdadeiramente eles não sabem o que fazem”.
Nem tampouco aqueles soldados sabem o que fazem, aqueles que, sentados aos pés dos três patíbulos, esperam pelo fim, calejados que estão de convulsões de supliciados e dos estertores daquelas cruéis agonias. – “A eles também, Pai, dignai-Vos de perdoar, porque são ignorantes e não conhecem”. Assim aquela voz do alto, qual orvalho que se esparzisse em derredor, lança sobre todas aquelas almas rancorosas ou indiferentes a doçura e o frescor do perdão.
Esta palavra já nos mostra as culminâncias do Cristo. É a superioridade da bondade. No declínio da sua vida humana, quando Ele sente tudo ceder em torno de Si, a Sua bondade sobe ao ápice como um sol que dardeja ainda sobre ruínas, e o Seu primeiro raio de luz é um perdão universal.
A humanidade, que ficou sendo a mesma, tem sempre necessidade desse perdão. Elevemos, pois, os olhos para essa radiação da bondade indulgente que forma a última e sublime expressão do semblante de Cristo.
Perdoar: poucas palavras há que sejam a um tempo mais perturbadoras e mais consoladoras para o coração do homem.
Perdoar: parece que poucos atos nos sejam tão difíceis, tanto nos custa, decaídos como somos, sermos bons. Aos olhos do mundo, quem perdia facilmente é um fraco: a honra interessa-lhe pouco, nada de grande há que esperar dele.
Em compensação, quem não perdoa sabe fazer-se respeitar, temem-no: é a fórmula do poder pagão: oderint dum metuant, que me odeiem pouco me importa, contanto que me temam. Bem o sabia Jesus Cristo, e foi por isto que Ele quis que a Sua primeira palavra de crucificado fosse uma expressão de perdão.
Nós não perdoamos facilmente porque, no fundo, nos custa compreender que entre homens do mesmo sangue, irmãos pelo destino, unidos pelos mesmos instintos, possa haver essa cruel desunião que se chama o ódio: ao menos é uma homenagem prestada à fraternidade do gênero humano.
E tão verdade é isto, que, quanto mais próximos somos pela família, pelas afinidades e pelo sangue, tanto mais difícil se torna o perdão. Que de mais áspero, às vezes, nos seus rancores do que dois irmãos que sugaram o mesmo leite, amaram a mesma mãe, e cujas vidas se haviam entrelaçado como os ramos de uma virente e mesma vida? Abismo insondável do coração humano.
Não perdoamos, ainda, facilmente, porque não motivamos os nossos perdões. Cumpre, entretanto, procurar a circunstância atenuante: creiamos que ela lá está. Bem a descobriu Jesus que o crucificavam. Está nisto todo o trabalho divino da caridade. O homem é melhor, no fundo, do que parece; há poucas almas, por mais perversas que sejam, que não tenham ocultas algumas fibras sensíveis. É até estas que deve descer a caridade: é mister ir buscar o verdadeiro homem muito ao fundo, para aí o amar.
Mas, para podermos executar essa obra laboriosa, temos primeiramente que nos elevar e dizer: Pater, pai! Só então saberemos abaixar-nos para dizer: Irmão. Assim também, à medida que nos formos alteando, iremos vendo os óbices à união minguarem, e aquilo que nos pareciam montanhas perder-se aos poucos e confundir-se na linha da planície. Quais os que, no fim da sua vida, não enxergam haverem, muitas vezes, exagerado o seu ódio ou o seu amor?
Era meditando ao pé daquela Cruz, era recolhendo essa suave palavra, que os santos sentiam a alma se lhes fundir de indulgência. Um coração bom é um coração para o qual Deus é bom: mas Ele o reconhece, e então dá daquilo que recebe.
O último raio de luz da santidade é a bondade, a que dá e, sobretudo a que perdoa. Nunca quando imita essa divina prerrogativa, e é por isto que o perdão das injúrias opera às vezes tão depressa a transfiguração e adapta tão bem o semblante da criatura ao do Criador, que a semelhança é completa. Ora, não há serem salvos senão os que forem achados parecidos com Jesus Cristo, e com Jesus Cristo crucificado.
Oh! quando Ele inclinar sobre o nosso leito de morte a cabeça lânguida e coroada de espinhos, e quando murmurar com os lábios frios: - Pai, perdoai-lhe!... apressemo-nos a inclinar-nos sobre a nossa própria vida, antes que ela finde, sondemos, esmerilhemos o nosso passado, para descobrir nele algo que tenhamos a perdoar.
Felizes nós se pudermos achá-lo, para que possamos com segurança murmurar por nossa vez: - Assim como eu perdoei, meu Deus, dignai-Vos de perdoar-me!
Se nada encontrarmos, formulemos mesmo assim esse desejo de suprema indulgência, esse desejo de tudo atenuarmos, de sermos bom, supinamente bom no nosso declínio, a fim de entrarmos, da outra banda, na aurora eterna com o verdadeiro semblante que perdoou.
Quando, no cimo do Calvário que começa a escurecer ligeiramente, caía essa palavra sublime, era um pouco depois da sexta hora. Bem diversamente impressionou ela quantos a ouviram.
Maria foi a primeira a distingui-la; ainda quando fora só um respiro, o Seu ouvido de Mãe, que estava como que colado à boca do Filho, tê-lo-ia recolhido. Mesmo compreendendo aquela sublime generosidade... – ela era nossa Mãe, Jesus vai proclamá-lo dentro em pouco, - Ela não se sentiu menos dolorosamente comovida... pensando nesse perdão divino lançado naquele cimo árido sobre tantos corações mais áridos ainda, e nesse apelo de amor que, com a continuação dos tempos, devia repetir-se, tantas vezes ressoar inútil e sem resposta.
Também Madalena deve ter ficado surpreendida: mas, depois de baixar os olhos sobre si mesma e de rever todo o seu passado, compreendeu, exultou de compreender... e que ósculo de gratidão não devia ela imprimir naqueles pés sangrentos enquanto se elevava a sublime prece, eco do seu próprio perdão: - Pai perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem!...
João, as santas mulheres ficaram suspensos: aquilo era demais. Os soldados também não compreenderam; nunca semelhante palavra vagara nos lábios das suas vítimas comuns. Os Judeus e os fariseus, se a ouviram, aumentaram com ela os seus risos zombeteiros e os seus sarcasmos vergonhosos.
Só um homem, que blasfemava ao lado mesmo do Cristo que perdoava, foi ferido como que por um golpe certeiro, irresistível e vencedor.
Calou-se subitamente, olhou estupefato para aquele ente singular: era um dos ladrões.
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Segunda palavra: O bom ladrão.)