quarta-feira, 1 de junho de 2011

XI – QUARTA PALAVRA: O DESAMPARO

XI – QUARTA PALAVRA: O DESAMPARO


De todas as horas dolorosas, a mais cruel é a em que o homem vê a solidão fazer-se em torno de si. Quer nos venha bruscamente após uma desgraça, quer, antes, nos invada em seguimento à velhice: poucos escapam a esse isolamento dos últimos dias, e as vidas mais felizes naufragam finalmente na indiferença dos homens e das coisas.

Que contraste, então, entre a agitação, a solicitude, as lisonjas do começo, e os abandonos do fim!

Todos aqueles a quem amamos já se foram, e os que nos rodeiam não nos hão conhecido; nada mais recebemos, muito é se temos a quem dar; aliás, é tarde demais para atar relações que a morte deverá romper tão em breve, e a gente encerra penosamente a sua carreira como um estranho numa terra que nos vai fugir. É o desamparo final. É o último golpe que Deus vibra no nosso instinto, que se apegava a tudo o que respirava vida e movimento, a tudo quanto reputávamos a felicidade.

Jesus quis, na Sua Paixão, experimentar essa dolorosa solidão: mas, neste caso como em todos os demais, Ele não vibrou em Si mesmo os golpes a meio, porém levou tão longe quanto possível a crueldade do desamparo: era preciso.

Começou por operar em torno de Si esse desamparo de maneira fulminante.

Dentro em vinte e quatro horas faz-se uma desagregação súbita e imprevista em tudo o que se edificava a Seus lados; pode-se dizer que houve no fim da Sua vida uma verdadeira catástrofe: Ele caiu sem transição do triunfo no desprezo, e com rapidez assombrosa.

Ei-lO na Cruz: está no fim das Suas três horas de agonia, as trevas já O envolvem como as sombras do túmulo, mas se pode distingui-lO naquele patíbulo que é o Seu derradeiro leito, o Seu derradeiro pouso, o Seu derradeiro bem. Ele já não está na terra, mas também não está no céu, está suspenso de pregos, retido numa vida expirante por chagas alargadas.

Há quarenta e oito horas apenas, Ele não apareceria nas ruas de Jerusalém que não fosse aclamado por todos; ufanos de um mestre cuja fonte já se nimbava com a coroa real, os Seus discípulos caminhavam de fronte erguida... Mas, hoje, onde estão? Que resta deles? Um em doze. O povo renegou-O, os sacerdotes entregaram-nO, tudo se voltou contra Ele, e Ele próprio, para acrescentar os últimos traços a esse supremo desamparo, acaba de Se desfazer de Sua Mãe.

Nada mais tem: resta-Lhe, porém, Seu Pai do céu.

É exatamente no momento em que nada mais tem que o homem reduzido a esses cruéis apuros compreende e sente que Deus é tudo. A sua voz ganha então acentos que penetram o céu, e o seu olhar mortiço reveste, pelo desprezo que ele faz dos homens, um lume de dignidade e de grandeza incomparáveis.

Quando o Papa Bonifácio VIII, uma das mais alevantadas imagens do poder pontifício, viu-se, na idade de oitenta anos, abandonado por todos os cardeais e entregue aos seus inimigos, ei-lo que subitamente se reanima: na sala vazia e erma, de onde todos haviam fugido, restavam-lhe o seu trono: sentou-se nele com todas as exterioridades da majestade pontifícia, e ali, assistido por um cardeal e por um religioso – os únicos fiéis, - de tiara à cabeça, de cruz na mão, Rei supremo e grande apesar de tudo, enquanto as portas cediam sob a pressão brutal e sacrílega dos enviados de Filipe de França, ele exclamava: “Ao menos quero morrer como Papa...” Almeno vaglio morire come Papa.

Poucas atitudes tão altivas, e todos, amigos ou inimigos, se inclinam ante essa grandeza que morre de pé.

O que dá essa coragem é, com a visão claríssima da injustiça e da covardia dos homens, a consciência da nossa integridade e também a confiança num Deus que tudo vê: e então naturalmente os nossos olhos se elevam para o alto, apelando para Aquele que é a própria justiça.

Todos estes sentimentos e outros ainda mais vivos já os experimentara Jesus no curso tão agitado da Sua vida pública: quanta vez, para Se justificar, Ele invocara Seu Pai do céu, e o Pai Lhe respondera!

Hoje, pois, nesta hora suprema e túrbida da Paixão, neste exato ponto a que chegou, abandonado de todos, entregue, perdido, sem socorro de fora, moribundo a quem nada pudera já proteger: é o momento de Se volver perdidamente para o céu distante, onde Ele é sempre ouvido.

E eis aí por que, num derradeiro esforço, por um último instinto, Ele soergue a fronte pesada, abre os olhos apesentados, pra procurar lá em cima, como um esteio supremo, Seu Pai.

E Este Lhe faltou.

No momento decisivo, o apoio procurado fugia-Lhe: e o seio daquele Pai, que ainda ontem se abria aos Seus menores desejos, vai fechar-se inexoravelmente àquele que Se dignou de fazer-Se “Pecado” por nós (2 Cor. 5,21).

Os homens jamais provarão tão cruel desamparo. A hora escura do fim ilumina-se, não raro, para eles de uma radiação da bondade celeste; quando tudo nos há fugido, quando tudo nos abandona, quando os nossos passos já não têm nem luz nem arrimo: é então que, nessa noite suprema, se levanta para nós, no fundo da nossa estrada, qual derradeiro sol, o coração de nosso Pai do céu.

Não há pecador, por mais criminoso que seja, que, apelando para o Deus, não ouça logo o Pai que Lhe responde.

Assim não foi, porém, na noite do Calvário.

São quase três horas. Há duas horas e meia eu Cristo Se engolfou num silêncio tão profundo quanto às trevas que O circundam. Que fazia Ele nesse grande silêncio? Porque, nem mesmo ao redor dEle, o quer que seja que ouse perturbá-lO.

O ladrão perdoado calou-se; o ladrão pecador a custo tartamudeia as suas antigas blasfêmias, hebetado pelo sofrimento, pelo pavor e pela noite.

O povo aos poucos retirou-se. Os fariseus bem que perpassam ainda ao pé da Cruz, ao trote espantado das suas mulas, para verem o estado da vítima: mas já não ousam escarnecer tão abertamente. Os próprios soldados falam mais baixo, e Maria, arrimada ao Seu novo filho, olha estupefata para o antigo que fecha os olhos e Se cala.

Que silêncio, que lúgubre pesadume naquele ar escurecido, que assombro circula em volta aos três patíbulos!

E Jesus, qual afogado que perde o pé e se submerge pouco a pouco num mar profundo, Jesus parece desaparecer e abismar-se naquele silêncio solene. Que procurava Ele então nesse silêncio?

Procurava a Deus, Seu Pai: - “Meu Pai, Eu sei que Vós Me escutais sempre”. Na Sua derrocada geral, quer-se-Lhe, pois apegar, porque dEle é que espera a palavra de paz e de lenitivo que Lhe recusam os homens.

E espera, e nada vem, nem mesmo um anjo como ontem à noite no momento da agonia. E as águas sobem, parece que a onda passou por sobre Jerusalém, que o dilúvio voltou com a sua marcha ascendente e irresistível. O desamparo avança, estreita-O; banha o Calvário, já cobriu quantos Se Lhes agitavam ao pé: Madalena, João, Sua Mãe, tudo desapareceu. Quando Ele abre os olhos amortecidos pelo pranto e pelo sangue, vê só negror, confusão, horror; e tudo isto sobe sempre, sobe incessantemente. Eis que o Seu peito sagrado é atingido; alguns instantes mais, e a vaga passada, atulhada dos destroços de toda a humanidade pecadora, vai-se-Lhe embater contra o semblante.

- Ó Pai, ó Pai, exoro-Vos e Vós não Me ouves, peço-Vos socorro e Vós não Me ajudas: mutatus es mihi in crudelem (Job. 30,21); como Vos tornaste cruel para comigo, as Vossas delícias e as Vossas complacências!

E, a onda sobe sempre; e Ele não pode fugir, está cravado, e sente aquela morte lenta que O assalta e O sufoca.

- Ó Pai!...

Se Jesus Cristo fosse um simples homem, depois de sentir a terra toda refugá-lO, os Seus abandoná-lO, e o próprio céu extinguir os seus raios luminosos e a sua suprema esperança, teria caído então no abismo sem fundo do desespero.

Se Lhe não experimentou as irremediáveis feridas, por isto que a divindade retinha em suas garras poderosas a sua humanidade desfalecente e nas últimas, experimentou-lhe pelo menos todos os sombrios horrores, e, no momento em que a onda negra que tudo invadira em volta dEle subiu tanto que Lhe tocou os lábios, a garganta estrangulada pelo pavor, pelo tédio e pela ânsia derradeira, teve um soluço que lançou na noite da natureza e na de todos os corações este apelo desolado e pungente:

- Meu Deus! Meu Deus! porque então também Vós Me abandonastes?...

Este lamento dilacerador perdeu-se no horror do silêncio, como um último apelo do homem que soçobra sem esperança no fundo das ondas. Estava acabado.

- Não. – Não queria ouvi-lO? – Não. – Repudiava-O então? – Certamente. E, antes que Lhe estender a mão para O retirar daquele mar medonho, ter-Se-ia inclinado sobre aquele agonizante e tê-lO-ia mergulhado nEle.

Ó Senhor, como Vos tornaste cruel para com Ele!

Assim O queria a hora e o peso da justiça eterna.

Ao de fora só se ouviu o grito desesperado do moribundo; por dentro, Jesus continuava as Suas queixas dolorosas: os profetas conservaram-nos esses gritos da Sua angústia que persistiam em subir para o coração fechado do Pai piedoso.

- “Ah! dizia Ele (Sl. 21, Comentário de Bossuet), eu choro, rujo sem esperança: aos outros Vós escutáveis no entanto; outrora, bastou que Meu pai Abraão Vos rogasse, e Vós lhe entregáveis cinco reis. Isaac, Jacob, José, Moisés, os Israelitas no deserto, a todos os escutáveis, mas a Mim!... será porque Me tornei um verme desprezível, contorcido pela dor? Ai! Já nem sou um homem, sou a vergonha do povo... eles se riem todos à volta de Mim: e Vós Vos calais! Neste dia de horror Me abandonais: ter-Me-ia Eu feito desprezível aos Vossos olhos por estar imerso num incrível pavor?

“Dantes Vós Me protegíeis; desde o Meu nascimento um anjo me abria o Egito, outro dali Me fazia volver; outros Me serviam no deserto; ontem havia um para me fortificar: e hoje quem é que está em torno de Mim?

“Touros, leões, feras encarniçadas; os homens são como caçadores que Me perseguem; pois bem, vede: a caça está encurralada, acuada, não pode mexer-Se, a matilha estraçalha-A: e Vós Vos calais!

“Meu Deus, Meu Deus, olhai para Mim, serei bastante digno de pena? Quid dicam? Já nem seio o que dizer!... Pater, salvifica me ex hac hora: Pai, salvai-Me, salvai-Me desta hora: eu não posso nada por Mim. Escorro como água, derreto-Me como cera, estou desconjuntado, as Minhas juntas não se agüentam mais, toda a Minha força secou... já nem sequer posso falar-Vos...

E aquela cabeça tornava a pender, esmagada pelo horror, e aquele rosto espavorido não sabia onde deter os olhares desolados.

Haverá mais incrível desamparo? Era preciso.

E é esta terrível necessidade que causa o desespero misterioso e divino de Jesus.

O desespero provém, com efeito, de uma possibilidade e de uma impossibilidade, e é do conflito violento destas duas realidades que brota a dor intensa do desespero.

- Eu poderia ter evitado esta horrível desgraça, chama O desesperado, e eis que já não posso sair dela: este será o verme eterno dos réprobos.

- Poderia ter-Me subtraído a esta horrível fiança pelos pecadores, exclama Jesus na Cruz: a escolha Me era deixada, e Eu quis atirar-Me neste mar sem fundo: e dele já não posso sair.

Podia não beber esta taça envenenada, o veneno requeima-Me as entranhas e seca-Me o sangue, e Eu não posso mais vomitá-lo. Os pecadores da humanidade estão pregados na Minha carne como a Minha carne está pregada na Cruz. Eu podia escapar à justíssima cólera de Deus, e fui Eu quem a chamou sobre Mim: tenho de suportá-la toda.

Eis o que podia dizer consigo mesmo o Cristo, e, como última conseqüência, devia Ele acrescentar – e era a mais atroz dentada do desespero:

- “Não só não posso ter nenhum socorro humano, mas já nem sequer mereço o socorro divino”.

Não se pode ir mais longe: abandonado dos homens, abandonado de Deus!

- Oh! como! Senhor meu, também Vós Me rejeitais? Depois disto, que mais poderia Eu esperar?

Há está diferença entre a agonia do horto e a da Cruz: que na primeira Cristo não está sem esperança; há ainda um lampejo no Seu coração angustiado: Meu Pai, tudo Vos é possível, ainda podeis, pois, afastar este cálice. E Jesus apega-Se perdidamente a este relâmpago.

Porém na Cruz não há mais esse lampejo: toda possibilidade é tirada: o Pai tem que ser severo, é o terrível vencimento da fiança: era preciso.

Oportuit Christum pati.

Ó pobre Jesus, por quê? Por quê?

Eu pecara, e necessário se fazia que Jesus, “penetrado todo dos meus pecados, pecador Ele próprio” (Bossuet), sentisse o grande castigo próprio do pecado: o desamparado.

Eu abandonara Deus, e mister se fazia que, carregando sobre Si todos esses culposos abandonos, Ele lhes suportasse o castigo tremendo que me era devido por uma eternidade: o desamparo.

Terrível pena de talião: olho por olho, dente por dente, abandono por abandono, desamparo por desamparo.

Provou Ele essa pena, é dela que morre hoje. Mas justa essa morte é que me salva, e por causa do atroz desamparo em que agoniza aquele divino pecador é que, doravante abençoado e perdoado, eu já não serei desamparado.

E, se este é o último golpe da justiça, é também o da bondade: em verdade, Ele não podia ir mais longe para expiar e para me tranqüilizar.

Oração

Senhor, eu atinjo aqui a obra-prima da Vossa bondade para comigo.

De todos os instantes sagrados da Vossa cruel agonia, nenhum me é mais preciso do que este do Vosso inteiro desamparo.

Um Deus por todos abandonado para que o não seja eu nunca; este último golpe do Vosso amor há de triunfar da minha desconfiança.

Eu creio, sinto, vejo que agora Vós quereis salvar-me.

Ó divino desamparado, a Vós é que eu ei de invocar nos Seus supremos abandonos, e a Vós é que oferecerei, até lá, todos os meus desamparos. Amém.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957.)