sexta-feira, 22 de abril de 2011

Os últimos gritos

Nota do blogue: Antecipei esse capítulo, do livro que vem sido transcrito em seqüência, pela data de hoje. Perdoai-nos Senhor as nossas ingratidões e falta de amor por Vós mesmo quando temos diante de nós, a Vossa Santa Cruz.

Os últimos gritos


A partir desse primeiro grito da Sua grande angústia interior, - pois, segundo São Matheus, aquele apelo súplice foi lançado ao céu com grande grito: Et circa horam nonam clamavit Jesus voce magna dicens: Eli, Eli, lamma sabactani (MT. 17, 46) – a partir desse primeiro grande grito as coisas vão-se precipitar.


Chegamos à nona hora: as trevas estão no mais espesso, a natureza se conturba, a terra parece comover-se.

Maria, João, as santas mulheres, que aquele grito de angústia alanceou, chegam-se mais para perto da Cruz.

Olham todos para cima. Pode-se dizer que o rosto do Senhor já não existe: é bem agora que, consoante a palavra do profeta, ele está como suprimido e, de todo ponto, desprezível.

Lívido, afinado, imerso em sombra e em sangue, de olhos já fixos e vidrados, Ele só tem de dolorosamente saliente a boca, que haure o Seu sopro com dificuldade, uma boca seca e moribunda: é o fim.

Jesus o sabe. Mas conserva ainda ereta a cabeça, regiamente ereta: só a abaixará quando quiser.

Com uma lucidez de espírito a que nada escapa, Ele percorre no longínquo do passado tudo o que os profetas disseram dEle: nenhum ultraje Lhe faltou e, num terrível e pungente escorço, revê e ressente todos os sofrimentos preditos que O trouxeram àquele cume e O cravaram naquela Cruz. Tudo está cumprido, salvo um ponto entretanto.

Falando daquelas intoleráveis dores e do desprezo que delas se havia de fazer, David dissera no salmo 68: - Na minha sede horrível, deram-me só vinagre.

Teria faltado um traço à ingratidão humana e à sua crueldade sábia se Jesus, sedento, carpindo a mais horrível tortura da crucificação” (Fouard), tivesse achado a gota de água refrescante que se não recusa, no entanto, ao último dos criminosos.

Vai Ele, pois, externar essa angústia da sede, mas para atrair a Si um mais cruel sofrimento.

Não se queixou dos cravos, nenhum grito pelos espinhos, e a horrenda tensão que Lhe separa todos os membros e Lhe desarticula todos os ossos não Lhe arranca nenhum murmúrio.

Só dois gritos, no Calvário, traem as Suas dores.

Ele se queixa de ser desamparado por Deus, e clama lastimosamente: - Tenho sede!...

Esta sede justificava-a de sobejo o horrível trabalho do Seu corpo e do Seu espírito. Tudo devia acender-lha: o sangue derramado aos borbotões, as lágrimas correntes, os suores estranhos de Getsêmani, a noite insone, a incrível flagelação, e, sobretudo aquele desamparo interior de Deus, cuja justiça implacável O abrasava ainda mais do que a febre da crucificação que Lhe inflamava as veias.

- Tenho sede! Gemia Ele mansamente.

Este queixume, este murmúrio, caiu primeiro sobre o grupo comovido das santas mulheres. Maria deve ter-Se voltado, indo de um a outro e procurado, com o olhar, a bebida mitigante pedida com tanta humildade. Madalena, Maria Cleófas, João, todos os Seus amigos diletos olham para a boca ressequida... Ai! Nada, no Calvário, tirante dos rochedos que vão fender-se e a terra ensangüentada.

Entretanto, também os soldados ouviram os queixumes do moribundo.

Do vinho misturado com mirra que, havia duas horas, o Cristo recusara, nada mais devia restar, dado que os dois ladrões deviam tê-lo absorvido todo. E eles, os soldados, teriam ainda vinho para seu uso? Talvez. Em todo caso, a sua disposição de espírito não nos permite supor que eles o tivessem oferecido a Jesus a não ser por escárnio, quando, conforme a palavra de São Lucas, eles se aproximavam da Cruz e estendiam as taças cheias à vitima, parecendo dizer-lhe: Vem tomá-la, e, se és o Cristo, salva-te da cruz.

Havia, porém, ali um vaso cheio de vinagre. Costumava-se trazer vinagre para aspergir o rosto dos pacientes que desmaiavam às vezes à simples vista da horripilante crucificação, ou que empalideciam e perdiam os sentidos logo às primeiras marteladas a enfiarem os pregos. Ao lado desse vaso estava uma esponja que servia aos algozes ou para lavar as mãos e os braços manchados de sangue, ou mesmo para friccionar o rosto descorante dos condenados. Estava essa esponja no chão, cheia de sangue, lambuzada de água e de pó.

Quem foi, entre os soldados, que teve a cínica idéia de matar a sede ao agonizante com aquela beberagem? O texto sagrado deixa-nos entrever que vários se puseram nessa tarefa. Sem dúvida, um embebe a esponja no vinagre, enquanto outro procura como atingir a boca do paciente, e um terceiro toma de um pedaço de cana para adaptar nele a esponja úmida. Tudo se faz, aliás, com precipitação odienta.

De onde vinha aquela cana? Quem a trouxera? Como ali se achava? Nada de imprevisto nos desígnios de Deus.

Quem sabe? Não seria uma das canas que tinham dado na cabeça de Jesus no pretório? Quiçá aquela mesma que Lhe haviam posto entre as mãos régias por ocasião da paródia ridícula no seio da corte?

Tinham trazido até o Calvário a coroa de espinhos: por que não teriam trazidos também o cetro real? O Traje devia estar completo.

Seja lá como for a esponja cheia de vinagre foi aproximada da boca ressecada de Jesus. Ele aspirou algumas gotas do áspero líquido, e, quando retiraram a esponja, os lábios do moribundo remexeram-se um pouco, e este murmurou debilmente: - Agora, tudo está consumado.

Sim, estava tudo acabado. O ciclo doloroso dos suplícios está esgotado, o abandono não pode ir mais longe, as trevas estão espessas, o céu retirou as suas complacências, o corpo do condenado já não tem uma gota de sangue, e malícia humana toca o seu auge, a taça está cheia: bebeu-a Jesus até as fezes eram aquele áspero vinagre que haviam sabiamente reservado para o fim.

A morte paira, por conseguinte, sobre aquela Cruz: estende-Lhe a mão; mas não poderá agarrar a sua vítima senão quando está o permitir. Só eu tenho o poder de depor a Minha vida, dissera Cristo; Ele é o Senhor absoluto até o fim, bem o fará ver daí a pouco.

Jesus quer morrer por Sua plena vontade e com toda a Sua dignidade. Nunca Ele foi mais Rei do que em face da morte: morramos com Ele, e, se Ele o quiser, morremos como Ele.

A morte mais bela dos eleitos é a que se calca sobre a morte de Jesus.

Findar na Cruz, isto é, no abandono total, findar no silêncio, cercado de sombra e, se o permitir Deus, com uma última gota de fel nos lábios, ó morte preciosa aos olhos do Senhor!

Qual será a minha, ó meu Deus, ignoro-o.

Mas, tanto quanto depender de mim, quero-a simples, esquecida, silenciosa. O homem sonha com aparato até nessa última cena; pode-se levar mais longe a vaidade? As palavras desse último são, às vezes, arranjados e preparadas com antecedência... Calemo-nos, calemo-nos, baixemo-nos a cabeça, humilhemo-nos, e ocultemos a nossa invencível esperança na sombra que a mão de Deus fará quando vier para nos tocar.

Pode suceder que nesse último instante, na nossa sede suprema de ternura e de afeto, não nos seja apresentada mais do que uma amarga beberagem misturada com vinagre. Deus é tão cioso da Sua imagem, que, sem ofensa do próximo, se compraz em lhe imprimir os traços na alma dos Seus melhores eleitos. Havemos de sofrer então até mesmo daqueles que nos amaram e a quem nós amamos: é a dor bendita.

Contentemo-nos com olhar amorosamente o nosso Jesus crucificado, não nos distraiamos deste olhar, e finemo-nos com a alegre severa de morrer na cruz, esquecido, desamparado e desconhecido talvez no meio dos nossos próximos.

Repito, ó morte desejável e preciosa aos olhos dos anjos, para quem ela é então como que um decalque maravilhoso e fiel da morte do dulcíssimo Jesus!

Senhor, meu Deus, desde já aceito de bom grado e com justiça, da Vossa mão, o gênero de morte, qualquer que seja, que Vos aprouver infligir-me, com todas as suas angústias, penas e dores”.

(Oração de São Pio X – Indulgência plenária aplicável só no momento da morte – Decreto de 9 de março de 1904 -. Para obter esse favor é preciso, depois de se confessar, fazer a sagrada comunhão e pronunciar essa oração.)

Consummatum est. Está tudo acabado.

Hei de dizê-lo um dia, digo-o hoje por antecipação conVosco, ó meu Deus.

Essa última palavra de Cristo pareceu roçar apenas pelo Calvário: parecia dita aos anjos comovidos antes que aos homens, caía no segredo da justiça de Deus para sempre satisfeita.

Quase não a ouviram os soldados, entregues de todo à sua última e sinistra irrisão.

Galhofavam eles ainda a respeito da esponja cheia de vinagre, e de Elias que sem dúvida viria livrar o Rei dos Judeus, quando, de repente, um brado imenso e profundo rasgou a noite que se envolvia. Eles se voltaram todos para o lado da Cruz do meio, de onde irrompera aquele intenso clamor.

Viram então aquela vítima, expirante e agitada por um tremor estranho, erguer-Se, de algum modo, sobre as Suas feridas, como para desafiar a morte, e alçar um vôo sublime para alturas desconhecidas; e, através do silêncio de estupefação e de terror, uma voz forte e cheia lançou no espaço esta última palavra:

- Pai, nas Vossas mãos entrego a Minha alma.

Estas palavras vencedoras pareceram varar o céu e abalar a terra.

João, que estava pertinho da Cruz, viu então o semblante do Senhor, feito mais lívido ainda, inclinar-se brandamente: a cabeça pendeu sobre o peito, e ele percebeu o último suspiro de Jesus.

Et inclinato capite tradidit spiritum (Jo. 9,30).

Finda aqui a subida do Calvário.

A grande obra da redenção está consumada: Cristo reconciliou o céu com a terra;

Ó irmãos meus do mundo inteiro, vinde, acorrei todos, cheios de esperança, a este cimo ensangüentado: agora podeis salvar-vos... se quiserdes. Amém.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957)