O dia Eucarístico
Sacrifício
I - Dizia São João da Cruz: - “È importante em sumo grau que a alma se exercite no amor, para que, consumindo-se rapidamente, não fique limitada a esta terra, mas se esforce por contemplar a face do seu Deus”.
Porém a angélica irmã de Santa Terezinha do Menino Jesus, acrescentou: - “Oferecer-se ao Amor como vítima não quer dizer oferecer-se às doçuras, às consolações; pelo contrário, é oferecer-se às angústias e a todas as amarguras, porque o Amor só vive pelos sacrifícios... Quanto mais queremos nos abandonar ao Amor, tanto mais devemos nos abandonar à Dor...” (História de uma alma- cap. XII).
Que sabedoria nas palavras do Mestre! Que exposição admirável nas palavras da discípula!
Eis porque a alma eucarística, filha privilegiada do amor, também é (e por força) filha privilegiada da dor. Tardamos já em bem dizê-lo: a Eucaristia não é somente sacramento do amor, é também sacramento da dor. Jesus Sacramentado é o Deus da dor; Seu amor por nós é o amor da dor.
II – Hoje um só sacrifício existe na nossa religião, é a santa Missa, que é essencialmente o sacrifício do Calvário. Do sacrifício do Calvário se distingue como o rio da fonte: ao sacrifício do Calvário nada acrescenta à fonte de onde brotou.
No universo, que é o grande templo de Deus, o Calvário foi o verdadeiro primeiro altar; depois, cada altar tornou-se Calvário. Sem Cruz, hoje não haveria Eucaristia, não haveria sacrifício. A Cruz e a Hóstia! Ó palavras santas que resumem um único mistério de dor e de amor!
Não se pode achar a Cruz, viva e verdadeira, senão na hóstia; e não pode haver hóstia sem cruz.
Na Eucaristia, pois, ou na santa Missa, o conceito da dor entra por três modos: como sacrifício em gênero; como sacrifício da Cruz; e, por fim, como sacrifício eucarístico.
III – Qualquer sacrifício não importa somente em dor, mas dor suprema, porque, em qualquer sacrifício, para que seja perfeito, é indispensável que a vítima, realmente, ou, pelo menos misticamente, se imole e se consuma. Portanto onde não há imolação ou consumação não há sacrifício. E vice-versa, quanto mais a vítima é imolada, tanto mais o holocausto é perfeito.
Assim, a perfeição do sacrifício se mede pela perfeição da imolação e da consumação.
Até quando a ovelhinha se debate e estrebucha, até quando bala e se lamenta, recebeu o golpe, mas ainda não morreu. Já é vítima, já seu sangue corre aos borbotões.
Mas, somente quando não se lamentar mais, somente quando não balar mais, somente quando estiver perfeitamente morta há de ser perfeita vítima, porque, então unicamente (consummatum est!) há de ser perfeitamente imolada e destruída.
Tudo isto é indispensável a qualquer sacrifício, visto que dele constitui a essência; tudo isto é indispensável à santa Missa, mesmo considerada como sacrifício em gênero.
IV- Muito mais ainda se for considerada como sacrifício da Cruz.
Toda a vida de Jesus já fora uma imolação, iniciada no momento em que, fazendo-Se homem, não desdenhou o seio de uma virgem.
Desde aquele instante, Sua imolação cresceu e progrediu ao mesmo tempo em que os anos de Sua idade.
Sua existência inteira foi uma Missa única, posso dizer assim: em Belém estava no Gloria; o santo velho Simeão, apertando-O nos braços, recitou o Offertorio. A entrada triunfal em Jerusalém foi o Prefacio... Porém o momento soleníssimo daquela Missa de trinta e três anos foi sobre o Calvário, quando a augusta Vítima, inclinando a cabeça, entregou o espírito...
Cristo foi sempre vítima em toda a Sua vida; mas só quando nEle tudo ficou consumado tornou-Se a vítima perfeita. E tudo nEle ficou consumado quando se realizaram aquelas palavras há um tempo terríveis e amáveis, que para sempre alegrarão e farão chorar a humanidade: crucifixus, mortuus est sepultus est!
V – Não menos comovente é a santa Missa como sacrifício eucarístico.
Como já foi dito, ela é idêntica ao sacrifício do Calvário, quanto ao sacerdote, e quanto à vítima. Na verdade falta a morte real (*); porém o aniquilamento eucarístico é de fato uma morte, mística e incruenta, sim, mas inefável e única possível a Deus.
São Paulo, medindo o abismo da encarnação, diz que o Filho de Deus exinanivit semetipsum – “fazendo-Se homem, aniquilou-Se a Si próprio”. (Fil. II, 7).
Expressão esta digna do grande Apóstolo!
Ora, a Eucaristia, se é lícito falar assim, é um passo adiante, é o último passo da Encarnação.
Na Encarnação, o Filho de Deus tomou uma forma ainda mais humilde, a forma de comida e bebida. Na Cruz, só estava escondida a divindade; na Eucaristia também o está à humanidade. Por isto podemos dizer que a Eucaristia é um passo mais adiante, o último passo da Encarnação. Santo e divino mistério nunca estudado suficientemente!
Já o próprio ato da consagração, considerando em si mesmo, é terrível, porque reduz Jesus Cristo a este estado de aniquilamento. A língua do sacerdote, quando pronuncia as palavras sublimes da consagração, é como uma espada de dois gumes, a fazer morrer moralmente o Cristo; separa-Lhe o corpo do sangue, e o sangue do corpo, consagrando em separado as duas espécies.
VI- Resumindo, temos que a santa Missa é o único sacrifício propriamente dito da religião nossa; é o sacrifício da Cruz; é o sacrifício eucarístico. São três as razões ou motivos que, na santa Missa, encerram o conceito essencial da dor, antes da dor suprema que é a imolação e a consumação mística ou real da vítima.
Eis porque a sagrada Eucaristia não é só o Sacramento do amor, mas também é essencialmente o Sacramento da dor.
E Jesus que é o nosso Jesus no Seu adorável Sacramento?
É essencialmente vítima, e, portanto, essencialmente o Deus da dor.
Não é preciso provar isto, sendo corolário e conseqüência de tudo o que dissemos até aqui.
No conceito geral de sacrifício, Jesus entra como único Cordeiro que rigorosamente possa aplacar, agradecer, glorificar o Pai Celeste, e obter graça para todos.
No sacrifício do Calvário, Ele entra como Protagonista crucificado, no sacrifício eucarístico entra como Hóstia Santíssima, Cordeiro, Crucificado, Hóstia, eis o Deus da dor.
VII – Coisa admirável, com efeito, todos os deuses do paganismo se rodearam de flores, de prazeres, de alegrias. Só um Deus se coroou de espinhos e de humilhações, o Deus do Calvário, o Crucificado.
Tirando-Vos a dor, que Vos resta adorado Jesus? Que Vos resta de belo, de amável, de grande, se não és mais o Cordeiro, Crucificado, Hóstia?
Que seríeis Vós sem feridas, sem coroa de espinhos, sem Cruz? Que seriam Vossas mãos e Vossos pés sem pregos, Vosso coração sem aquela abertura que formou o gozo dos santos? Dirão que sem a dor Vos restaria o amor. Ah! Mas sem a dor, que é o próprio amor senão um fogo fátuo, uma moeda desvalorizada, um dom vão? Não é a dor que forma o brilho, a força, a vida do amor?
Não é a dor que eleva o amor, e o faz grande, nobre, divino? Enfim, não é a dor que torna mais bela a beleza, mais santa a santidade, mais inocente a inocência, mesmo?
Não me digas, pois, ó Diletíssimo meu, que sem a dor Vos restaria o amor, quando é principalmente a dor que Vos faz belo, que Vos faz querido e amável. Por isto, a dor Vos precede, Vos acompanha; Vos segue, por isto és o Vir dolorum – “o Homem das dores” por isto és o Deus do amor, do qual a dor é a prova, a vida e a coroa!
VIII – Se assim não fosse, Vos, ao saíres do sepulcro, assim como deixaste o sudário e as faixas, terias deixado também o sinal das Vossas chagas.
Mas, não! Ressurgis-Vos com todos os estigmas, para seres compreendido em Vossa beleza. Sim, ó Jesus, são os sinais da dor, que fazem belíssima para sempre Vossa humanidade deificada, já que as chagas ficaram em Vossa carne como rubins preciosíssimos em coroa de ouro.
O mesmo que os selos no xerografo ou nos decretos do rei, tal são Vossas chagas, selos de Vossa Paixão. Sem as cinco chagas, sem aqueles divinos selos, não serias hoje um Jesus timbrado, isto é, um Jesus autêntico; nem autêntica seria Vossa lei; nem autêntica Vossa religião e Vossa Igreja.
Sem os sinais de Vossa dor, não terias comovido, convertido e atraído a Vos a humanidade inteira, porque Vos, sem aqueles sinais, não terias sido tão grande, tão nobre, tão magnífico como És. Não terias sido o Salvador, o Redentor do mundo.
Nem mesmo terias sido um simples herói. Que são os heróis senão grandes desventurados? e não são somente os heróis da história, porém mesmo os heróis da fábula...
Assim, agora compreendo porque, quando o Divino Ressuscitado, pela primeira vez, Se apresentou a Seus apóstolos, Seus irmãos, reunidos no cenáculo, sentiu a necessidade de acompanhar com um gesto divino a divina saudação da ressurreição.
A saudação da ressurreição foi esta: “Pax vobis” – “A paz seja convosco!” e o gesto do Ressuscitado foi enquanto saudava, apresentar-lhes as mãos e o lado: Et cum hoc dixisset ostendit eis manus et latus (João, XX, 2º).
Ó Deus da dor, prostro-me aos Vosso pés e suplico perdão, de tanta coisa que disse sobre o sofrimento e sobre o sacrifício, quando bastava citar unicamente esta cena evangélica. Bastava só o Vosso gesto, ó ressuscitado Senhor.
Se Vós próprio apresentastes Vossas mãos, se Vós próprio mostrastes Vosso lado, que posso dizer ainda, que posso excogitar de mais para fazer compreender a força, a grandeza, a divindade da dor?
Ah! Basta, já não falo mais; emudeço, Senhor. Para sempre resôe em Vossos lábios a saudação: “A paz seja convosco!” E para sempre fiquem-nos presente Vossas mãos e Vosso lado: Salvete, Christi vulnera, immensi amoris pignora – "Ó chagas de Cristo, penhor de eterno amor, eu Vos saúdo”. (Hino de louvor na festa do preciosíssimo sangue). – “Ó Coração de amor, inclina fonte de água límpida, vem; ó Coração, delícia dos celestes, e esperança dos mortais, atraídos por Vossos convites, vamos a Vos suplicantes.” (Hino da festa di Sagrado Coração de Jesus).
IX- Avante, ó almas eucarísticas, vossa hora já chegou; chegou o momento de vossa ação sobre a terra. Quantas lágrimas caíram já, nas chagas de Jesus! Quantos beijos lhes foram dados! Quanto bálsamo nelas derramado!
A consideração destas chagas benditas e o amor para com elas formou os santos, isto é, formou almas de imolação e de sacrifício, filhas privilegiadas da dor, as vítimas. Os crucificados, as hóstias da Igreja.
E formou-as pela virtude da Eucaristia.
Os dons de Deus como todas as Suas obras não podem ser espedaçadas nem deformadas.
Assim, não se pode deformar nem espedaçar a Eucaristia. Tentar isto seria destruí-la, como seria destruir o Crucificado ousar modificá-lO ou corrigi-lO. Destruíram-nO de fato em Sua verdadeira imagem todos os infelizes incrédulos que ousaram cometer tão sacrilégio atentado. Jesus Cristo ou se aceita todo inteiro ou dEle nada se aceita. Dá-se o mesmo com Suas obras e com Seus dons, dá-se o mesmo com Sua obra prima que é a Eucaristia. Como é essencialmente sacramento, é essencialmente sacrifício, a divina Eucaristia; antes é sacrifício, e depois é sacramento.
Mas, onde está o sacrifício, a imolação, está a dor, mesmo a dor suprema. Uma Eucaristia que não admite imolação, não é mais sacrifício, e, se não é mais sacrifício, é falsa Eucaristia. Como falso seria o Cristo que não fosse Vítima Crucificado, Hóstia. Um Cristo que não é o Deus da dor, já não é verdadeiro Cristo, já não é verdadeiro Deus. Seria um deus do paganismo.
X- Tirando a conseqüência, devemos imediatamente concluir que é falsa alma eucarística a alma que só aceita a Eucaristia como sacramento, e não como sacrifício, que na Eucaristia só busca o amor e não a dor; que dela aprecia o gozo e recusa à pena. Falsa é a alma eucarística que em Jesus Sacramentado procura o Esposo dileto e não o Esposo crucificado, que se agrada das carícias e não das provas; das flores e não dos espinhos; dos sorrisos e não das cruzes. Estaria no engano uma tal alma, se se julgasse alma eucarística, ainda que fizesse a santa Comunhão todos os dias. Oh! quantas vezes se é obrigado a fazer a sagrada Comunhão todos os dias, mas isto quando se é livre, e se ama as flores e os prazeres, e se aborrece a dor, a mortificação, a cruz! Neste caso, ficai certos, não durará muito a comunhão quotidiana.
A alma verdadeiramente eucarística é a que faz cada dia a santa Comunhão, mas cada dia aspira ao sacrifício, à crucificação, à imolação; e aspira a isto por virtude, e como fruto da mesma Eucaristia que cada manhã recebe.
Esta alma, quanto mais é sacrificada, imolada, crucificada, tanto mais é eucarística, e vice-versa.
Entre uma e outra coisa há conexão de causa e de efeito, de premissa e conseqüência, tanto que sem medo de errar pode-se dizer: - “É alma verdadeiramente eucarística? Então será uma alma verdadeiramente imolada. É uma alma imolada? Só pode ser uma alma eucarística”.
XI – Ó almas aflitas, atribuladas, infelizes, falta-vos a resignação, a força, a calma? Arrastai-vos sob o peso da cruz, levando-a a força e, talvez, em desespero, como os dois ladrões? E por quê?
Ou não fazeis a santa Comunhão, ou a fazeis raramente, ou a fazeis mal. A divina Eucaristia possui e dá a força da imolação e do sacrifício. Se fazeis a santa Comunhão cada dia, e cada dia com empenho, oh! também vós adquirireis a calma na dor, a força na desventura, o conforto na Cruz. Também vós em breve vos tornareis uma vítima digna de Deus.
Oh! se o mundo compreendesse esta verdade!
Quantos desesperados de menos ele teria, se mais e melhor fosse freqüentada a santa Comunhão, que possui como virtude própria a força de tornar grandes as almas, conforme a necessidade que têm.
Ó Vós que sofreis indizivelmente ou no corpo ou na alma, ou em um e outro ao mesmo tempo; ou na pessoa ou na família, e na substância, mas que sofreis com o sorriso nos lábios, com a força na alma, com a calma no coração, em suma, que sofreis com a coragem dos santos, não faleis, ficai silenciosos, não é preciso que me manifesteis o segredo da vossa força, eu o adivinho e percebo: fazeis cada dia a santa Comunhão... respirais Eucaristia... viveis da Eucaristia...
Basta isto; nada é preciso acrescentar. Podeis ser mártires, possuindo a força de Deus, de Deus crucificado.
Sim, almas afortunadas, como na época dos mártires, a passagem era fácil dos ágapes, dos banquetes santos das catacumbas às fogueiras, aos circos, ais dentes dos leões, esfaimados no anfiteatro Flavio, assim hoje a passagem é fácil da mesa eucarística, às lutas da vida, aos combates espirituais, produzidos pela enfermidade, pela indigência, pelas perseguições, por qualquer desventura.
Quereria levantar a voz e fazer ouvir e uma extremidade do mundo à outra esta verdade tão doce: “a santa Eucaristia basta para fazer mártires...”
XII – Eis o grande atleta São Inácio.
Condenado às feras, de Antioquia, onde era bispo, transportaram-no à Roma. E a viagem foi toda um martírio, glorioso prelúdio de gloriosíssimo fim.
Roma pagã não se mostrou tão ávida de assistir ao cruel espetáculo quanto ele de lh’o oferecer; os leões do anfiteatro Flavio (o Coliseu) não sentiram tanta fome de devorá-lo quanto ele se ser devorado. Foi esta a sua única oração durante o trajeto: Utinam fruar bestiis... tantum ut Christo fruar!... Que palavra sublime! – “Queira o Céu que só para gozar de Cristo eu goze das feras!”
Mas sublime é seu grito quando, na arena do anfiteatro, em presença de oitenta mil espectadores, se encontra com os leões, soltos na jaula. Enquanto as feras rugidoras e furiosas o fitam e preparam o salto... o grande confessor de Cristo se ajoelha, junta as mãos, e exclama: “Frumentum Christi sum, dentibus bestiarum molar ut panis mundus inveniar – Sou o frumento de Cristo; serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me pão muito puro...” Não acabara de falar e os leões já o haviam devorado.
Quão nobres e delicados são os corações dos santos!
Estes três pensamentos, ou melhor, este pensamento único e completo de Santo Inácio mártir é propriamente divino.
Mais se medita nele, e mais se lhe goza a doçura. Sobretudo o pensamento de Santo Inácio é deveras um cântico eucarístico: - Desejar ser frumento, para ser triturado, e tornar-se pão de Cristo, puro e sem mácula, triturado pelos dentes dos leões... Que pensamento pode haver de mais elevado e delicado?
Que desejar de mais nobre e generoso?
Melhor ainda: Que pedir a Deus e obter de mais eucarístico que pede e obtém Santo Inácio mártir? Ele adivinhou o desejo de todos os santos; exprimiu em forma nobilíssima a aspiração de todas as almas verdadeiramente eucarísticas. E a aspiração é esta: “Ser frumento, para ser triturado pela dor e tornar-se pura hóstia de Jesus Cristo.”
Ao menos especialmente concedei tal graça às almas enamoradas de Vós, ó Senhor, para que todas de todo coração digam e repitam: “Frumentum Christi sum, dentibus bestiarum molar ut panis mundus inveniar!...”
Da dor, porém, não nos podemos afastar tão depressa. A alma verdadeiramente inflamada pela Eucaristia, sobre o Calvário, ao lado de Jesus Crucificado, deve aprender todos os ofícios dolorosos de qualquer alma eucarística.
* Nota do blogue: (Morte real no sentido de físico, natural.)
(A alma Eucharistica, por Padre Antonino de Castellammare, capuchinno, tradução feita por uma filha de Maria, Sociedade Editora São Francisco das Chagas, 1929.)
PS: Grifos meus.