Nota do blogue: Creio que esse discurso será de grande proveito para os médicos católicos. Mesmo abordando mais especificamente a parte de obstetrícia Pio XII aponta bem os deveres que cercam tal profissão. Quis justamente transcrevê-lo quando desgraçadamente foi aprovada, pelo governo (pagão) brasileiro, a “lei” do aborto de anencéfalos.
Vem Senhor Jesus!
Letícia de Paula
Quando se pensa nessa admirável colaboração dos pais, da natureza e de Deus, que resulta em dar à luz um novo ser humano feito à imagem e à semelhança do Criador, como se poderia recusar apreciar no seu justo valor o precioso concurso que trazeis a uma tal obra? A heróica mãe dos Macabeus dizia a seus filhos: "Não sei de que maneira recebestes o ser no meu seio: não fui eu quem vos deu o espírito e a vida, e não fui eu quem formou o vosso organismo. Foi, pois, o Criador do universo, quem formou o homem no seu nascimento".
É por isso que aquele que se aproxima desse berço da vida em formação, e que exerce nele a sua atividade de uma maneira ou de outra, deve conhecer a ordem que o Criador quer que aí se conserve e as leis que a ele presidem. Porquanto trata-se aqui, não de puras leis físicas, biológicas, às quais obedecem necessariamente agentes privados de razão e forças cegas, mas de leis cuja execução e cujos efeitos são confiados à livre e voluntária cooperação do homem.
Essa ordem, estabelecida pela inteligência suprema, é dirigida para o fim querido pelo Criador. Ela abrange a obra exterior do homem e a adesão interior da sua livre vontade; implica tanto a ação como a omissão necessária. A natureza põe à disposição do homem todo o encadeamento das causas que serão a fonte de uma nova vida humana; ao homem pertence o liberar-lhe a força viva, à natureza pertence o desenvolver-lhe o curso e conduzi-la ao termo. Depois de haver o homem desempenhado o seu papel e posto em movimento a maravilhosa evolução da vida, o seu dever é respeitar-lhe religiosamente a progressão, dever que lhe proíbe sustar a obra da natureza ou impedir-lhe o desenvolvimento natural.
Destarte, a parte da natureza e a parte do homem estão nitidamente determinadas. A vossa formação profissional e a vossa experiência colocam-vos em condições de conhecer a ação da natureza e a ação do homem, não menos do que as regras e as leis a que ambas estão sujeitas. A vossa consciência iluminada pela razão e pela fé, sob a direção da autoridade estabelecida por Deus, ensina-vos até onde vai a ação permitida, e onde, em compensação, se impõe estritamente a obrigação da omissão.
À luz destes princípios, propomo-nos aqui expor-vos certas considerações sobre o apostolado a que a vossa profissão vos concita. Porque toda profissão querida por Deus comporta uma missão: a de realizar no domínio dessa mesma profissão, os pensamentos e as intenções do Criador, e ajudar os homens a compreenderem a justiça e a santidade do desígnio de Deus, e o bem que para eles mesmos promana do cumprimento desse desígnio.
1. O VOSSO APOSTOLADO PROFISSIONAL EXERCE-SE EM PRIMEIRO LUGAR POR INTERMÉDIO DA VOSSA PESSOA
Por que é que as pessoas vos chamam? Por estarem convencidas de que conheceis o vosso mister, de que sabeis o que é necessário à mãe e ao filho, a que perigos uma e outro estão expostos, e como podem esses perigos ser evitados e superados. Espera-se de vós auxílio e conselho, naturalmente não de uma maneira absoluta, mas nos limites do saber e do poder humano, segundo o progresso e o estado atual da ciência e da experiência na vossa especialidade.
Se se espera de vós tudo isso, é porque se tem confiança em vós, e essa confiança é, antes de tudo, uma coisa pessoal. Deve a vossa pessoa inspirá-la. Que uma tal confiança não seja iludida, não somente é o vosso vivo desejo, mas é ainda uma exigência do vosso cargo e da vossa profissão, e, por conseguinte, um dever da vossa consciência. É por isto que deveis tender a elevar-vos até o ápice dos conhecimentos específicos da vossa profissão.
O CRISTIANISMO TRAZ UM ESTIMULANTE E UMA GARANTIA AO VALOR PROFISSIONAL
Mas a vossa habilidade profissional é também uma exigência e uma forma do vosso apostolado. Com efeito, que crédito acharia a vossa palavra nas questões morais e religiosas conexas ao vosso mister, se vos mostrásseis falhas nos vossos conhecimentos profissionais? Pelo contrário, de bem outro peso será a vossa intervenção no domínio moral e religioso, se souberdes inspirar o respeito, por efeito da superioridade da vossa capacidade profissional. Ao juízo favorável que o vosso mérito vos valerá, ajuntar-se-á, no espírito dos que a vós recorrem, a persuasão bem fundada de que o cristianismo convicto e fielmente praticado, longe de ser um obstáculo ao valor profissional, traz-lhe um estimulante e uma garantia. Eles verão claramente que, no exercício da vossa profissão, tendes consciência da vossa responsabilidade perante Deus; de que na vossa fé em Deus achais o motivo forte para assistirdes com tanto maior dedicação quanto maior for a necessidade; de que nos vossos sólidos princípios religiosos hauris a força para opordes a pretensões desarrazoadas e imorais (venham de que lado vierem) uma recusa calma, mas intrépida e irrevogável.
Estimadas e apreciadas como sois, por causa da vossa conduta pessoal, tanto quanto pela vossa ciência e pela vossa experiência, vereis vos confiarem de bom grado o cuidado da mãe e do filho, e talvez sem o perceberdes, exercereis um profundo, não raras vezes silencioso, mas eficacíssimo apostolado de cristianismo vivido. Com efeito, por maior que possa ser a autoridade moral devida às qualidades propriamente profissionais, a ação do homem sobre o homem exerce-se sobretudo sob o duplo selo da verdadeira humanidade e do verdadeiro cristianismo.
II. O SEGUNDO ASPECTO DO VOSSO APOSTOLADO É O ZÊLO EM DEFENDERDES O VALOR E A INVIOLABILIDADE DA VIDA HUMANA
Disto tem o mundo atual uma necessidade urgente de ser convencido pelo tríplice testemunho da inteligência, do coração e dos fatos. A vossa profissão oferece-vos a possibilidade de dardes esse testemunho, e vos faz disto um dever. Às vezes, é uma simples palavra dita, no momento oportuno, e com tato, à mãe ou ao pai; mais vezes ainda, toda a vossa conduta e toda a vossa conscienciosa maneira de agir influem discreta, silenciosamente sobre eles. Mais do que outros, vós estais no caso de conhecer e de apreciar o que a vida humana é em si mesma, e o que ela vale perante a sã razão, perante a vossa consciência moral, perante a sociedade civil, perante a Igreja, e acima de tudo, perante Deus. O Senhor fez todas as outras coisas na terra para o homem; e o próprio homem, no que diz respeito ao seu ser à sua essência, foi criado para Deus, e não para qualquer criatura que seja, embora, na sua atividade, ele também tenha obrigações para com a comunidade. Ora, o filho, mesmo antes de nascer, é "homem", no mesmo grau e pelo mesmo título que a mãe.
TODO SER HUMANO TEM DIREITO A VIDA
Além disso, todo ser humano, até mesmo a criança no seio de sua mãe, recebe o direito à vida imediatamente de Deus, e não dos pais ou de alguma sociedade ou autoridade humana. Portanto, não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma "indicação" médica, eugênica, social, econômica, moral, que possa exibir ou conferir um título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente, isto é, para dispor dela em mira à sua destruição encarada quer como fim, quer como meio para obter um fim que talvez em si mesmo absolutamente não seja ilegítimo. Assim, por exemplo, salvar a vida de uma mãe é um fim nobilíssimo; mas a supressão direta do filho como meio de obter esse fim não é permitida. A destruição direta de uma pretensa vida "sem valor", nascida ou ainda não nascida, destruição essa praticada, há alguns anos, em larga escala, de forma alguma pode justificar-se. Por isto, quando essa prática começou a se difundir, a Igreja formalmente declarou que matar, mesmo por ordem da autoridade pública, aqueles que, embora sendo inocentes, por causa das suas taras físicas ou psíquicas não são úteis à nação, mas antes se tornam uma carga para ela, é contrário ao direito natural e ao direito divino positivo, e, por conseguinte, proibido. A vida de um inocente é intangível, e todo atentado direto ou agressão contra ela viola uma das leis fundamentais sem as quais não é possível a vida em segurança na sociedade. Não precisamos expor-vos pormenorizadamente a significação e o alcance, na vossa profissão, dessa lei fundamental. Mas não vos esqueçais de que acima de toda lei humana, e acima de toda "indicação" ergue-se, indefectível, a lei de Deus.
O apostolado da vossa profissão impõe-vos esse dever de fazerdes partilhar também pelos outros o conhecimento, a estima e o respeito da vida humana, que vós nutris no vosso coração por convicção cristã; dever de, quando preciso, tomardes ousadamente a defesa deles, e, quando isto for necessário e estiver em vosso poder, de protegerdes a vida, ainda oculta e sem proteção, do filho apoiando-vos na forma do preceito de Deus: Não matarás, "non occides". esse serviço de defesa apresenta-se às vezes como o mais necessário e o mais urgente. Não é esta, entretanto, a parte mais nobre e mais importante da vossa missão, pois esta não é puramente negativa, porém sobretudo construtiva, e deve tender a estabelecer, a edificar, a firmar.
A ACOLHIDA AMOROSA DO RECÉM-NASCIDO
Ponde na mente e no coração da mãe e do pai a estima, o desejo, a alegria, a acolhida amorosa do recém-nascido desde o seu primeiro vagido.
A criança formada no seio materno, é um dom de Deus, e Deus confia o cuidado dela aos pais. Com que delicadeza, com que encanto, a Sagrada Escritura mostra a graciosa coroa dos filhos reunidos em volta da mesa paterna! Eles são a recompensa do justo, como a esterilidade é, muitíssimas vezes, o castigo do pecador. Escutai a palavra divina expressa na sublime poesia do Salmo: "Tua esposa será como uma vinha fecunda no meio de tua casa; teus filhos serão como plantas de oliveiras em volta da tua mesa. Eis aí como é bendito o homem que teme a Deus". Do mau, está escrito: "Seja a sua posteridade condenada à morte, seja numa geração apagado o seu nome".
Desde o seu nascimento, apressai-vos - como já o faziam os antigos romanos - a depositar o filho nos braços de seu pai, porém num espírito incomparavelmente mais elevado. Entre os romanos, isso era a afirmação da paternidade e da autoridade que dela promana; aqui, é a homenagem de gratidão para com o Criador, é a invocação da bênção divina, o incitamento a cumprir com afetuosa dedicação a missão que Deus lhe confiou. Se Deus louva e recompensa o servo fiel por haver feito frutificar cinco talentos, que elogio, que recompensa não reservará ao pai que houver guardado e educado para Ele a vida humana que lhe foi confiada, vida superior a todo o ouro e a toda a prata do mundo?
GRANDEZA E ALEGRIA DA MATERNIDADE
Entretanto, o vosso apostolado dirige-se sobretudo à mãe. Sem dúvida a voz da natureza fala nela e põe-lhe no coração o desejo, a alegria, a coragem, o amor, a vontade de cuidar de seu filho; mas, para vencer as sugestões da pusilanimidade sob todas as suas formas, essa voz precisa ser reforçada, e, por assim dizer, assumir um tom sobrenatural. Pertence-vos fazer a jovem mãe degustar, menos pelas vossas palavras do que por toda a vossa maneira de ser e de agir, a grandeza, a beleza, a nobreza dessa vida que desperta, que se forma e lhe vive no seio, que nasce dela, que ela carrega em seus braços e nutre com seu leite; fazer resplandecer aos olhos dela e no seu coração o grande dom de Deus a ela e a seu filho. Por numerosos exemplos a Sagrada Escritura faz-vos ouvir o eco das preces súplices e, depois, dos cantos de agradecida alegria, de tantas mães finalmente atendidas após haverem longamente implorado por suas lágrimas a graça da maternidade. Mesmo as dores que, desde a culpa original, a mãe deve suportar para dar à luz seu filho não fazem senão apertar mais estreitamente o laço que os une; ela o ama tanto mais quanto mais sofrimentos ele lhe custou. Foi o que exprimiu com comovente e profunda simplicidade Aquele que formou o coração das mães: "A mulher, quando dá à luz, está em dor, porque é chegada sua hora; mas, quando deu à luz seu filho, já não se lembra das dores, por causa da alegria de haver dado um filho ao mundo".
Além disto, pela pena do apóstolo São Paulo, o Espírito Santo mostra ainda a grandeza e a alegria da maternidade. Deus dá à mãe o filho, mas no próprio dom ele a faz cooperar efetivamente para o desabrochar da flor cujo germe ele lhe depositara nas entranhas, e essa cooperação torna-se um meio para conduzi-la à sua salvação eterna: "A mulher salvar-se-á pelos filhos que puser no mundo".
Esse perfeito acordo da razão com a fé dá-vos a garantia de estardes na plena verdade, e de poderdes prosseguir com segurança absoluta o vosso apostolado de estima e de amor à vida nascente. Se conseguirdes exercer esse apostolado junto ao berço onde solta seus vagidos o recém-nascido, não vos será muito difícil obterdes aquilo que a vossa consciência profissional, de acordo com a lei de Deus e da natureza, vos impõe prescreverdes para bem da mãe e do filho.
Aliás, não precisamos demonstrar-vos, a vós que tendes a experiência disso, o quanto hoje em dia é necessário esse apostolado da estima e do amor à nova vida. Ai! Não são raros os casos em que mesmo por uma simples e discreta alusão falar dos filhos como de uma "bênção" é o bastante para provocar a contradição ou mesmo, às vezes, a zombaria. Muito mais freqüentemente reinam a idéia e a expressão do "peso" fastidioso dos filhos.
Quanto esta mentalidade é oposta ao pensamento de Deus e à linguagem da Sagrada Escritura, e mesmo à sã razão e ao sentimento da natureza!
Se há condições e circunstâncias em que, sem violarem a lei de Deus, podem os pais evitar "a bênção" dos filhos, todavia esses casos de força maior não autorizam a perverter as idéias, a depreciar os valores, a vilipendiar a mãe que teve a coragem e a honra de dar a vida.
O BATISMO DOS RECÉM-NASCIDOS
Se o que até aqui dissemos concerne à proteção e ao cuidado da vida natural, com muito mais forte razão deve isso valer para a vida sobrenatural que o recém-nascido recebe pelo batismo.
Na ordem presente, não há outro meio de comunicar essa vida à criança que ainda não tem o uso da razão. E, no entanto, o estado de graça, no momento da morte, é absolutamente necessário à salvação. Sem isso, não é possível chegar à felicidade sobrenatural, à visão beatífica de Deus. Um ato de amor pode bastar ao adulto para adquirir a graça santificante e para suprir à ausência do batismo. Mas, para aquele que ainda não nasceu, ou para o recém-nascido, esse caminho não está aberto. Portanto, se se considerar que a caridade para com o próximo impõe assisti-lo em caso de necessidade; se esta obrigação é tanto mais grave e urgente quanto maior é o bem a proporcionar ou o mal a evitar e quanto menos facilidade aquele que dela precisa tem para se ajudar e se salvar por si mesmo, então fácil é compreender a grande importância de prover ao batismo de uma criança privada de todo uso da razão e que se acha em grave perigo ou diante de uma morte certa.
Sem dúvida, esse dever obriga em primeiro lugar os pais; porém, nos casos de urgência, quando não há tempo a perder e não é possível chamar um padre, a vós é que é atribuído esse sublime dever de conferir o batismo. Não deixeis, pois, de prestar esse serviço de caridade e de exercer esse ativo apostolado da vossa profissão. Possais achar conforto e incentivo na palavra de Jesus: "Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia". E haverá misericórdia maior e mais bela do que a de assegurar à alma da criança - entre o limiar da vida, que ela apenas transpôs, e o limiar da morte, que ela vai em breve passar - assegurar-lhe a entrada na gloriosa e bem-aventurada eternidade?
UM TERCEIRO ASPECTO DO VOSSO APOSTOLADO PROFISSIONAL PODERIA CHAMAR-SE O DO AUXÍLIO À MÃE NO CUMPRIMENTO PRONTO E GENEROSO DA SUA FUNÇÃO MATERNAL
Desde que ouviu a mensagem do anjo, a Santíssima Virgem respondeu: "Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a vossa palavra".
Um "fiat", um sim ardente à vocação de mãe! Maternidade virginal, incomparavelmente superior a qualquer outra, mas no entanto maternidade real, no verdadeiro e próprio sentido da palavra. É por isto que, na recitação do Angelus, depois de recordar a aceitação de Maria, o fiel conclui imediatamente: "E o Verbo se fez carne". É uma das exigências fundamentais da retidão da ordem moral que ao uso dos direitos conjugais corresponda a sincera aceitação íntima do encargo e dos deveres da maternidade. Com esta condição, a mulher trilha a via traçada pelo Criador rumo ao fim que ele designou à sua criatura, fazendo-a, pelo exercício dessa função, participar da sua bondade, da sua sabedoria, da sua onipotência, consoante a palavra do anjo: "Conceberás em teu seio e darás à luz. Concipies in utero et paries".
Se tal é, pois, o fundamento biológico da vossa atividade profissional; o objeto urgente do vosso apostolado será: agir para manter, despertar, estimular o senso e o amor da função da maternidade.
Quando os esposos estimam e apreciam a honra de suscitar uma existência nova, cujo aparecimento eles aguardam com santa impaciência, bem fácil é o vosso papel: basta cultivardes neles esse sentimento íntimo; a disposição para acolher e para entreter essa vida nascente segue-se então como por si mesma. Entretanto, nem sempre assim é; ai! muitas vezes o filho não é desejado; pior ainda, é temido; como, pois, em tais condições poderia ainda existir a presteza no dever? É aí que o vosso apostolado deve exercer-se de maneira afetiva e eficaz; acima de tudo, de maneira negativa, recusando toda cooperação imoral, e, depois também, de maneira positiva, aplicando delicadamente vossos desvelos em dissipar os preconceitos, as diversas apreensões ou os pretextos pusilânimes, em afastar, tanto quanto possível, os óbices mesmo exteriores que podem tornar penosa a aceitação da maternidade.
A LEI FUNDAMENTAL DO ATO E DAS RELAÇÕES CONJUGAIS
Se só se recorrer aos vossos conselhos e aos vossos serviços para facilitar a procriação da nova existência, para protegê-la e para encaminhá-la ao seu pleno desenvolvimento, podeis sem hesitação prestar a isso a vossa plena cooperação; mas em quantos outros casos, pelo contrário, não se recorre a vós para impedir a procriação e a conservação dessa existência, sem nenhum respeito pelos preceitos da ordem moral?
Obtemperardes a tais solicitações seria abaixardes o vosso saber e a vossa experiência, tornando-vos cúmplices de uma ação imoral; seria uma perversão do vosso apostolado. Este exige um "não" calmo mas categórico que não deixe transgredir a lei de Deus e o ditame da consciência. É por isto que a vossa profissão vos obriga a terdes um claro conhecimento dessa lei divina, de modo a fazê-la respeitar, sem ficardes aquém nem irdes além dos seus preceitos.
Por conseguinte, na prática da vossa profissão e no vosso apostolado não vos deixeis perturbar por esse termo pomposo de impossibilidade, nem no que concerne ao vosso juízo íntimo, nem no que se refere à vossa conduta exterior. Nunca vos presteis a coisa alguma que seja contrária à lei de Deus e à vossa consciência cristã! É fazer injúria aos homens e às mulheres do nosso tempo o considerá-los incapazes de um heroísmo contínuo. Hoje em dia, por muitos motivos - quiçá sob o aperto da dura necessidade, ou mesmo, às vezes, a serviço da injustiça - o heroísmo exerce-se num grau e numa medida que nos tempos passados se teria acreditado impossíveis. Por que, pois, deveria esse heroísmo, se verdadeiramente as circunstâncias o exigem, deter-se nos limites marcados pelas paixões e pelas inclinações da natureza? É bem claro: aquele que não quer dominar-se a si mesmo não o poderá fazê-lo; e quem crê poder dominar-se contando só com as suas próprias forças, sem procurar sinceramente e com perseverança o socorro divino, será miseravelmente desiludido.
Eis aí o que concerne ao vosso apostolado junto aos esposos para ganhá-los ao serviço da maternidade, não no sentido de uma cega servidão sob os impulsos da natureza, mas no sentido de um exercício dos direitos e deveres conjugais regulado pelos princípios da razão e da fé.
O ÚLTIMO ASPECTO DO VOSSO APOSTOLADO CONCERNE A DEFESA TANTO DA ORDEM JUSTA DOS VALORES COMO NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Os "valores da pessoa" e a necessidade de respeitá-los são um tema que há vinte anos, ocupa sempre mais os escritores. Em muitas das suas teorias até mesmo o ato especificamente sexual tem o seu lugar marcado para fazê-lo servir à pessoa dos esposos. O sentido próprio e mais profundo do exercício do direito conjugal deveria consistir nisto: em que a união dos corpos é a expressão e a realização da união pessoal e afetiva.
Artigos, capítulos, livros inteiros, conferências especialmente, mesmo sobre a "técnica do amor", são consagrados a difundir essas idéias, a comentá-las por conselhos aos jovens esposos, servindo de guia no casamento, a fim de que, por tolice, ou por um pudor mal compreendido, ou por um escrúpulo sem fundamento, eles não descurem aquilo que lhes oferece o Deus que criou também as inclinações naturais. Se, desse completo dom recíproco dos esposos nasce uma vida nova, esta é um resultado que fica fora ou quando muito, como que na periferia dos "valores da pessoa"; resultado que se não recusa, mas que não se quer que esteja como que no centro das relações conjugais.
Segundo essas teorias, a vossa dedicação ao bem da existência ainda oculta no seio materno, e para lhe favorecer o feliz nascimento já não teria senão uma importância menor e passaria a segundo plano.
Se essa apreciação relativa não fizesse mais do que acentuar o valor da pessoa humana dos esposos de preferência à do filho, a rigor poder-se-ia deixar de lado esse problema; mas aqui, pelo contrário trata-se de uma grave inversão da ordem dos valores e dos fins fixados pelo próprio Criador. Achamo-nos diante da propagação de um conjunto de idéias e de sentimentos diretamente opostos à clareza, à profundeza e à seriedade do pensamento cristão. E eis que aqui deve novamente intervir o vosso apostolado. Efetivamente suceder-vos-á receberdes as confidências da mãe e da esposa, e serdes interrogadas sobre os desejos mais secretos e sobre as intimidades da vida conjugal. Como então, cônscias da vossa missão, poderíeis fazer valer a verdade e a retidão da ordem nos juízos e na conduta dos esposos se vós mesmas não tivésseis deles um exato conhecimento e se não estivésseis munidas da firmeza de caráter necessária para apoiar aquilo que sabeis ser justo e verdadeiro?
A HIERARQUIA DOS FINS DO MATRIMÔNIO
Ora, a verdade é que o casamento, como instituição natural, em virtude da vontade do Criador, tem por fim primeiro e íntimo, não o aperfeiçoamento pessoal dos esposos, mas sim a procriação e a educação da nova vida. Os outros fins, embora sendo igualmente queridos pela natureza, não se acham na mesma linha que o primeiro, e menos ainda lhe são superiores, mas, antes lhe são essencialmente subordinados. Isso vale para todo casamento, mesmo infecundo: do mesmo modo que de todo olho se pode dizer que foi destinado e formado para ver, mesmo se, em casos anormais, em conseqüência de condições especiais internas ou externas, se verifica que ele nunca estará no caso de conduzir à percepção visual.
Precisamente para cortar com todas as incertezas e desvios que ameaçavam difundir erros a respeito da hierarquia dos fins do matrimônio e das suas relações recíprocas, Nós mesmo redigimos, há alguns anos, uma declaração sobre a ordem desses fins, indicando aquilo que a estrutura interna da disposição natural revela, aquilo que é patrimônio da tradição cristã, aquilo que os Sumos Pontífices ensinaram repetidas vezes, aquilo que depois nas formas requeridas, foi fixado pelo Código do Direito Canônico. Ademais pouco depois, para corrigir as opiniões contrárias, num decreto público a Santa Sé declarou não se poder admitir o pensamento de vários autores recentes que negam seja o fim primário do casamento a procriação e a educação do filho, ou ensinam que os fins secundários não são essencialmente subordinados ao fim primário, mas lhe são equivalentes, e deles são independentes.
Querer-se-á com isso negar ou diminuir tudo o que há de bom e de justo nos valores pessoais que resultam do casamento e da sua realização? Certo que não, visto como à procriação de uma nova vida no casamento o Criador destinou seres humanos, feitos de carne e de sangue, dotados de espírito e de coração, e, na qualidade de homens e não de animais sem razão, são eles chamados a ser os autores da sua descendência. Foi com este intuito que o Senhor quis a união dos esposos. Com efeito, a Sagrada Escritura diz que Deus criou o homem à sua imagem, e o criou homem e mulher, e - como repetidas vezes é afirmado nos Livros Santos - quis que "o homem abandone seu pai e sua mãe e se una à sua mulher, e que eles formem uma só carne".
Tudo isso é, pois, verdadeiro e querido por Deus, mas não deve ser separado da função primária do casamento, isto é, do serviço em prol da vida nova. Não somente a obra comum da vida exterior, mas ainda todo enriquecimento pessoal, mesmo o enriquecimento intelectual e espiritual, até mesmo tudo o que há de mais espiritual e profundo no amor conjugal como tal pela vontade da natureza e do Criador foi posto a serviço da descendência: Pela sua natureza, a vida conjugal perfeita significa também o dom total dos pais em proveito dos filhos, e, na sua força e na sua ternura o amor conjugal é por sua vez um postulado da mais sincera solicitude para com os filhos e a garantia da sua realização.
Reduzir a coabitação dos esposos e o ato conjugal a uma pura função orgânica para a transmissão dos germes seria como que converter o lar doméstico, santuário da família, num simples laboratório biológico. Por isto, em a Nossa Alocução de 29 de setembro de 1949, ao Congresso Internacional dos médicos católicos, Nós excluímos formalmente do casamento a fecundação artificial. Na sua estrutura natural, o ato conjugal é uma ação pessoal, uma cooperação simultânea e imediata dos esposos, a qual, pelo próprio fato da natureza dos agentes e do caráter do ato, é a expressão do dom recíproco, que, segundo a palavra da Escritura, realiza a união "numa só carne".
Isso é mais do que a união de dois germes, a qual pode efetuar-se mesmo artificialmente, isto é, sem a ação normal natural dos esposos. O ato conjugal, ordenado e querido pela natureza, é uma cooperação pessoal, e, contraindo casamento, os esposos permutam entre si o direito a essa cooperação.
Por conseguinte, quando essa prestação na sua forma natural é desde o início e de maneira duradoura, impossível, o objeto do contrato matrimonial acha-se afetado de vício essencial. E eis aqui o que dizíamos então: "Não se esqueça isto: que só a procriação de uma nova vida, segundo a vontade e o plano do Criador, comporta, num admirável grau de perfeição, a realização dos fins colimados. Ela é ao mesmo tempo conforme à natureza corporal e espiritual e à dignidade dos esposos, ao desenvolvimento normal e feliz do filho".
Estes valores pessoais, quer no domínio dos corpos ou dos sentidos quer no domínio do espírito, são realmente autênticos, mas na escala dos valores, o Criador os colocou não na primeira linha, mas na segunda.
UM HEDONISMO ANTICRISTÃO
Acrescentai outra consideração que corre o risco de cair no esquecimento: todos esses valores secundários da esfera e da atividade geradora entram no quadro do papel específico dos esposos, que é serem os autores e os educadores da nova existência. Sublime e nobre papel, o qual, entretanto, não pertence à essência de um ser humano completo, como se, não sendo realizada essa tendência natural para gerar, de algum modo ou em algum grau se produzisse uma diminuição da pessoa humana. Renunciar a essa realização especialmente se isso se faz por motivos os mais nobres - não é mutilar os valores pessoais e espirituais. Dessa livre renúncia feita pelo amor do reino de Deus, o Senhor disse: "Non omnes capiunt verbum istud, sed quibus datum est. Nem todos compreendem esta doutrina, mas somente aqueles a quem é dado compreendê-lo".
Exaltar fora de medida, como muitas vezes se faz nos nossos dias, a função gerativa, mesmo na forma justa e moral da vida conjugal, não é apenas um erro e uma aberração; comporta também o perigo de um desvio intelectual e afetivo capaz de sustar e de sufocar sentimentos bons e elevados, especialmente na juventude, ainda desprovida de experiência e ignorante das desilusões da vida. Porque, afinal de contas, que homem normal, sadio de corpo e de espírito, aceitaria pertencer à categoria dos deficientes de caráter e de espírito?
INSTINTO E DIGNIDADE HUMANA
Contudo, incompleta seria a Nossa exposição do exercício do vosso apostolado profissional, se não aditássemos ainda uma palavra rápida a respeito da dignidade humana no uso da tendência a dar a vida.
O próprio Criador, que, na sua bondade e sabedoria, e para a conservação e propagação do gênero humano, quis servir-se do concurso do homem e da mulher, unindo-os no matrimônio, estabeleceu também que nessa função os esposos experimentassem um prazer e uma satisfação do corpo e do espírito. Portanto, nada de mal fazem os esposos procurando esse prazer e fruindo dele. Aceitam aquilo que o Criador lhes destinou.
Sem embargo, ainda aí devem os esposos saber manter-se nos limites de uma justa moderação. Tal como no gosto dos alimentos e das bebidas, assim também no prazer sexual não devem eles abandonar-se sem freio ao impulso dos sentidos. A justa regra é, pois esta: o uso da função geradora natural só é moralmente permitido no casamento, a serviço e segundo a ordem dos fins do próprio casamento. Daí ainda resulta que, só no casamento e observando essa regra, é que o desejo e o gozo desse prazer e dessa satisfação são lícitos. Porquanto o gozo está sujeito à lei da ação de que ele deriva, e não vice-versa, a ação à lei do gozo. E esta lei, tão razoável, visa não somente a substância mas ainda as circunstâncias da ação, de tal maneira que, mesmo salvaguardando o essencial do ato, pode-se pecar no modo de cumpri-lo.
A transgressão desta regra é tão antiga quanto o pecado original. Entretanto, na nossa época corre-se o risco de perder de vista o princípio fundamental. De feito, atualmente as pessoas habituam-se, pela palavra e pelos escritos (mesmo oriundos de certos católicos), a sustentar a autonomia necessária, o fim próprio e o valor próprio da sexualidade e do seu exercício, independentemente da finalidade da procriação de uma nova vida. Querer-se-ia submeter a um novo exame e a uma nova lei a própria ordem estabelecida por Deus. Não se quereria admitir outro freio no modo de satisfazer o instinto a não ser o de respeitar o essencial do ato instintivo. Assim a obrigação moral do domínio das paixões seria substituída pela licença de obedecer cegamente e sem freio, aos caprichos e aos impulsos da natureza: o que, mais cedo ou mais tarde, só poderá redundar em detrimento da moral, da consciência e da dignidade humana.
Se a natureza tivesse tido em vista exclusivamente, ou pelo menos em primeiro lugar, um dom e uma posse recíprocas dos esposos na alegria e no prazer e se houvesse regulado esse ato unicamente no intuito de levar a experiência pessoal deles ao grau mais elevado da felicidade, e não no intuito de estímulos ao serviço na vida, então o Criador teria adotado outro plano a formação e na construção do ato natural. Mas, pelo contrário, esse ato é, em suma, todo ele subordinado e ordenado para essa única e grande lei da geração e da educação do filho, "generatio et educatio prolis" isto é, para o cumprimento do fim primário do casamento como origem e fonte de vida.
VAGAS DE HEDONISMO INVADEM O MUNDO
Ai! Vagas incessantes de hedonismo invadem o mundo e ameaçam submergir na mare montante dos pensamentos, dos desejos e dos atos toda a vida conjugal, não sem criar sérios perigos e grave dano para a função primária dos esposos.
Esse hedonismo anticristão, sobejas vezes as pessoas não se envergonham de erigi-lo em doutrina, inculcando o desejo de tornar sempre mais intenso o gozo na preparação e na realização da união conjugal; como se nas relações conjugais, toda a lei moral se reduzisse ao cumprimento regular desse ato e como se tudo o mais, de qualquer maneira que o façam, se achasse justificado pela efusão do amor mútuo, santificado pelo sacramento do matrimônio, digno de louvor e de recompensa perante Deus e perante a consciência.
Com a dignidade do homem e com a dignidade do cristão, que põem um freio nos excessos da sensualidade, com isto ninguém se preocupa!
Pois bem! não. A gravidade e a santidade da lei moral cristã não admite uma satisfação desenfreada do instinto sexual, nem essa tendência exclusiva ao prazer e ao gozo: ela não permite ao homem racional deixar-se dominar até esse ponto, nem no que diz respeito à substância nem no que concerne às circunstâncias do ato.
Alguns quereriam sustentar que a felicidade no casamento está na razão direta do gozo recíproco nas relações conjugais. Não: pelo contrário, a felicidade no casamento está na razão direta do respeito mútuo entre os esposos; mesmo nas suas relações íntimas; não porque eles julguem imoral e repilam aquilo que a natureza oferece e o que o Criador deu mas porque esse respeito e a estima mútua que ele gera são um dos elementos mais sólidos de um amor puro e, por isto mesmo, tanto mais terno.
Este nosso ensinamento nada tem a ver com o maniqueísmo e com o jansenismo, como alguns querem fazer crer para se justificarem. Ele é pura e simplesmente uma defesa da honra do casamento cristão e da dignidade pessoal dos esposos (1).
(I) Discurso sobre o apostolado das parteiras, 29 de outubro, 1951.
Fonte: Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Marins, 2.ª Edição, edições Melhoramentos.