Nota do blogue: O texto que segue é longo, sugiro que seja lido como texto para meditação. Agradeço a alma que enviou-me essa tradução. Conte com as minhas pobres orações.
Letícia de Paula
A Mãe sem o Menino – é, seguramente, uma bem grande mudança nas dores da Santa Virgem. Belém teve suas dores, Nazaré as teve maiores ainda, e sobre o Calvário, a dor atingirá o seu ápice. Mas, em todas essas dores, a Mãe estava com o Filho. Ele era a Sua luz, mesmo em meio às trevas. Nesta terceira dor, porém, nestes três dias de ausência, não foi assim. Quando queremos representar nossa Santa Mãe fazendo referências às Suas graças particulares, como a Imaculada Conceição, nós a desenhamos sem o Menino, olhando para o Céu, como para dizer que Ela é uma criatura sobre a qual o Céu derrama as torrentes da graça emanadas do Criador. Quando desejamos vê-lA tal como é para nós, ou seja, como a Mãe por meio da qual o Filho nos concede Suas graças, A representamos também sem o Menino, os olhos abaixados para a terra, as mãos resplandecendo a luz e o frescor sobre o mundo. Mas, na Escritura, há duas imagens da Santa Virgem sem o Menino, e não são aquelas de que acabamos de falar. Uma delas é a Sua terceira dor, o momento onde, em Seu doloroso espanto, Ela percorre Jerusalém para encontrar Jesus; e a outra é aquela da sétima dor, quando Ela volta, já ao cair da noite, do Santo Sepulcro, deixando o objeto de Seu amor encerrado em Seu abrigo de pedra. Assim, a Paixão e a Santa Infância se assemelham nessa terceira dor, a qual, tanto no que diz respeito a Jesus quanto no que se refere à Maria, é um dos maiores mistérios dos trinta anos da vida oculta.
A calmaria da vida de Nazaré não era interrompida mais do que pelos deveres de religião, os quais, por sua vez, traziam novas bênçãos à Sagrada Família, aumentando-lhe a tranqüilidade. Segundo a Lei, os judeus eram obrigados a peregrinar até Jerusalém três vezes ao ano, para adorarem a Deus, a não ser que estivessem legitimamente impedidos. A primeira vez era na festa da Páscoa, ou festa dos Pães Ázimos, instituída em memória da saída do Egito, e correspondendo à nossa atual festa de Páscoa. Era a maior de todas. A segunda vez era na festa de Pentecostes, ou festa das Semanas. A terceira vez era na festa dos Tabernáculos, ou festa da alegria e do reconhecimento, que devia ser celebrada ao fim da colheita. José ia cada ano a todas essas festas. As mulheres não eram atingidas por essa lei, e alguns santos contemplativos têm dito que, enquanto José ia a Jerusalém três vezes por ano, Maria, e Jesus com Ela, só iam lá uma vez, por ocasião da festa da Páscoa. Cinco anos haviam passado desde o retorno do Egito, e Jesus completara os doze anos. Nessa idade, como o Evangelho nos ensina, Ele foi à Jerusalém, para a Páscoa, com Maria e José, e, conforme a tradição, fez o caminho a pé. No espírito desses três personagens não podia haver mais do que um pensamento. É provável que São José tenha conhecido os mistérios da Paixão da mesma forma que a Santa Virgem, e foi revelado à Joana Maria da Cruz que São José, antes de morrer, recebeu o favor de experimentar, numa medida conveniente, todas as penas da Paixão, duma maneira semelhante àquela que lemos acerca de outros Santos. Assim, tal qual Jesus trazia sempre diante dos olhos aquela que um dia seria Sua última Páscoa, Maria e José também nunca a esqueciam. Ela se apresentava vivamente às suas mentes sobretudo ao irem à Jerusalém. Quando eles caminhavam sobre as colinas, através dos vales, pelas estradas que se estendiam como rios cruzando as montanhas, o Calvário, com suas três cruzes, se deixava ver como o objetivo real de sua viagem. Mas, nem tudo era sempre claro para a Santa Virgem.
Quanto Seu amor por Jesus crescera durante Sua viagem a Jerusalém! O pensamento da dolorosa Paixão se unia, em Seu Coração , à vista do Menino de doze anos, que estava ali diante de Seus olhos exteriores, e o amor se elevava como um mar. A cada momento Ele Lhe parecia infinitamente mais precioso que antes, a tal ponto que Lhe parecia nunca estar mais do que a começar a amá-lO como convinha. Ela sabia bem, Ela o sabia perfeitamente: nunca poderia chegar a amá-lO como Ele merece ser amado. Suponhamos uma coisa além de todas as possibilidades, suponhamos mil Marias – e Elas não poderiam jamais amar a Jesus condignamente. Havia também no Criador se aproximando da adolescência alguma coisa a mais que no Criador Menino. A infância, ainda privada do dom da fala, sua fraqueza, a contradição palpável e visível entre esse estado e as eternas perfeições de Jesus, marcavam-lha como um aspecto mal adaptado num mistério. A natureza humana estava tranqüila, passiva e escondia a natureza divina. As ações que se viam então n’Ele eram apenas as ações mecânicas da vida humana. Eram como a vegetação espontânea. As operações da razão perfeita, das quais as perfeições existiam nEle desde o primeiro momento da Encarnação, sem estarem submetidas à lei normal do desenvolvimento, mas eram invisíveis. Era um mistério evidente, e as coisas são de algum modo menos misteriosas quando se anunciam abertamente como mistérios. Mas, na adolescência de Jesus, Sua vontade humana tornava-se mais perceptível. Tornava-se, assim, a manifestação dum caráter humano todo particular. Seu espírito dava-Lhe uma expressão apreciável à fisionomia. Há uma maneira de andar, de movimentar-se, e muitas outras coisas que tornavam a adolescência mais definida, mais pessoal que a infância. O coração duma mãe não deixa passar nenhum desses detalhes sem os apreciar. São como alimentos do amor materno, no momento preciso onde a primeira independência do adolescente constitui-se uma provação após a doce dependência infantil. É preciso nos lembrar de que tudo isso se dava em Jesus, para podermos bem julgar o que representavam para a Santa Virgem. Quem pode duvidar de que Ele tinha uma beleza espiritual que resplandecia seu clarão sobre tudo o que Ele fazia, uma graça celeste que respirava em todas as Suas ações e que cativava a toda hora, por novas surpresas, o Coração de Sua Mãe? Mas, sobretudo, essas coisas faziam como que aparecer, maravilhosamente, a natureza divina. Parece até uma contradição; mas, se refletirmos, veremos que, quanto mais a vontade humana se manifestava em Jesus, quanto mais se desenvolvia a Sua natureza inferior, mais também a glória da Pessoa Divina se deixava entrever, em virtude da união hipostática. Enquanto o mistério permanecia imóvel no silêncio da infância, ela [a união hipostática] estava como num santuário, sendo adorada. Mas, agora que Ele se move, fala, trabalha, realiza voluntariamente todos os atos e movimentos sem número da vida de cada dia, ela avançava, por assim dizer, para fora do santuário, e se mostrava aos homens. Ela dardejava nos olhos de Jesus; ela falava através de Seus lábios; ela era a música na voz de Jesus; ela se denunciava no andar de Jesus; ela destilava de Seus dedos a mirra mais preciosa. Toda a vida exterior de Jesus passava a ser luz e perfume [também para os outros], quando, Sua Infância passada, chega o dia de Sua adolescência. Ele agia durante todo o dia, e Suas ações traziam em si a marca, o perfume, da vontade humana duma Pessoa Divina. Elas corriam “como a fonte dos jardins, como a mina de águas vivas que correm do Líbano em abundância”. Surpreende então que Maria chegue às portas de Jerusalém, neste décimo segundo ano, menos capaz do que nunca de se separar de Jesus, e que Ela sentisse ser impossível ao Seu Coração o viver longe do dEle?
Chegaram a Jerusalém antes do começo da semana dos Ázimos; e, durante esse tempo, ocupavam-se em fazer suas devoções no Templo, em visitar os pobres e os doentes, e em cumprir outras obras costumeiras de misericórdia. Seria impossível enumerar as maravilhas sobrenaturais que emanaram desses três personagens terrestres durante essa semana dos Ázimos, e se elevaram diante do trono da Santíssima Trindade. Quem ousará comparar algum Santo com José? [Qui oserait comparer aucun Saint avec Joseph?] Naquela estonteante união com Deus, naquelas chamas de amor heróico, naqueles abismos de humildade semelhantes aos de Maria, encontraremos José, essa sombra do Pai Eterno, honrando sempre a sombra que ele lança sobre a Augusta Majestade e a terrível e adorável Pessoa de que era o representante. Quantas gerações de santos hebreus haviam vindo a esse Templo e haviam feito a Deus oferendas de prece e de louvor, mais agradáveis a Ele que todos os perfumes aromáticos queimados durante os séculos anteriores! Todavia, que eram todas essas adorações comparadas à uma só prece de Maria, aos Seus hinos de louvor, ao Seu Magnificat? Quando Maria e José se ajoelhavam no Templo, toda a santidade criada, a dos Anjos e a dos Santos, ficava para traz, como perdida ao longe. O bom velhinho [José] pensava, então, sem dúvida, nos tempos de Davi, e no oceano de adoração que brotaria de seus salmos para sempre, sem jamais parar; eles choravam, talvez, ao pensarem quanto haviam degenerado os tempos de então em comparação dos antigos, e os adoradores de então ao lado dos grandes Profetas e dos cânticos inspirados do antigo Israel, o qual não sabia que estava auxiliando a glória incomparável dos Corações de Jesus e de Maria. Mas o mistério mergulhava no inefável o Deus eternal se ajoelhava ali, entre Maria e José, com doze anos de idade, doze anos humanos, contados pelo retorno das estações e pelas estações da lua! Continuariam os cânticos no Céu enquanto o Verbo rezava sobre a terra? Não se cobririam antes todos os Anjos com suas asas, ouvindo, no temor e no silêncio, a prece do Deus ajoelhado se elevando diante de Seu próprio trono, fazendo desaparecer na sombra as pobres preces das criaturas? Maria e José cessam então de dirigir suas preces ao trono que está nos Céus ou à santa presença anunciada pelo véu do Templo; prostrados e em êxtase, eles adorarão o Eterno posto entre eles dois, e confessarão, juntos, a temível divindade do Menino, do qual a palavra quase lhes arranca a alma do corpo. Algum Templo terá jamais recebido semelhante consagração? Não é surpreendente que a terra continue a girar no espaço como antes; que o sol se eleve e brilhe como de ordinário; que a lua, surgindo atrás das colinas, doure a parte da terra sobre que brilha, e desça de novo ao horizonte oposto, sem que esses globos testemunhassem, mesmo que por um sorriso, que eles percebiam o que estava se passando? Não é também surpreendente que Jerusalém continuasse com seus afazeres, sem sentir instintivamente que ali ocorria então algo mais maravilhoso que os triunfos de Davi ou a corte esplêndida de Salomão? Um filho de Davi, “maior do que Salomão”, mais antigo que Abraão, estava entre a multidão; e Aquele que podia destruir o Templo e o reerguer em três dias, era um Menino de doze anos, belo de se ver, mas que não era, para Jerusalém, mais do que um a mais dentre os numerosos meninos que as mães levavam consigo às festas do histórico santuário.
Mas a semana dos Ázimos se acaba. A multidão estava, segundo o costume, reunida na cidade santa, como em nossos dias ocorre em Roma por ocasião da festa da Páscoa. Cada tribo havia enviado seus adoradores. Eles haviam vindo das cidadezinhas mais meridionais de Simeão, da herança de Ruben além das montanhas de Abarim, da de Manassés do outro lado do rio, das margens de Aser, ou de lá da região onde o Libano vê Neftali a seus pés. Seguindo o costume, a multidão se reunia em grupos separados e deixava Jerusalém em horários diferentes, homens e mulheres separados. Partiam ao meio-dia, os homens por um caminho e as mulheres por outro, para se reunirem apenas à noite, no lugar de repouso da primeira noite. Assim se evitavam confusões. Todos os que eram de fora de Jerusalém deixavam-na sem fazer despedidas, as quais seriam inconvenientes a um tempo tão solene e após uma semana inteira de ocupações religiosas. As estradas não eram tomadas de assalto, senão que a multidão se dispersava tranquilamente, com ordem e com calma. Foi assim que Maria e José foram separados durante o primeiro dia de sua viagem, que não foi, na verdade, mais que a caminhada de uma tarde. Apresentou-se então a Nosso Senhor uma ocasião de se separar deles sem ser notado; de modo que, quando as mulheres, à caravana das quais Maria pertencia, foram reunidas em seu caminho particular, Jesus já não se encontrou mais. É que as crianças podiam ir tanto com as mães quanto com os pais. Logo, Jesus estaria com José. Maria sentia Sua falta, mas, ao mesmo tempo, Lhe era doce pensar que Ele estava então enchendo o coração de José de ondas de alegria e amor. Convinha que Maria aprendesse, enquanto era tempo, a não ser egoísta a respeito de Jesus, pois um dia viria em que Ele Lhe seria tirado. [Il fallait que Marie apprit de bonne heure à ne pas être égoïste au sujet de Jésus, car un jour viendrait où il lui serait enlevé.] Oh! Esse dia havia chegado, dia por Ela nem imaginado, e Jesus havia desaparecido. Ela continuava Sua viagem e, como as revelações dos Santos nos ensinam, e como as vias ordinárias de Deus também nos levam a crer, o Espírito Santo inundava Sua alma duma doçura incomum, preliminar habitual duma prova extraordinária. Seus pensamentos estavam docemente distraídos da ausência de Jesus. Ela estava absorvida em Deus, seguindo a estrada e não respondendo mais que maquinalmente às perguntas que Lhe eram dirigidas. Sua alma estava como que sendo aquecida pelas fornalhas do amor divino, para poder suportar a prova que Lhe estava por vir.
As sombras da noite haviam caído sobre a terra antes que as duas turmas, a dos homens e a das mulheres, se tivessem encontrado no lugar do repouso. José vinha ao encontro de Maria, mas Jesus não estava com Ele. O Coração de Maria desfaleceu antes mesmo que ele Lhe falasse. José não sabia de nada; sua humildade se teria espantado se Jesus preferisse caminhar com ele de preferência à Sua Mãe; ele tinha suposto que Jesus estava com Ela, e nem tinha se inquietado. O tumulto da parada, os gritos da multidão, os preparativos do pernoite, o descarregamento dos animais que levavam as coisas para a viagem, nada disso chegava aos ouvidos de Maria e José então; eles estavam profundamente sós, sós entre a multidão, mais sós do que quaisquer corações haviam estado desde aquela primeira noite em que o sol se pôs sobre Adão e Eva fora do paraíso. José estava esmagado junto à terra; a luz se extinguira no Coração de Maria, sendo seguida duma desolação mais terrível do que a sofrida jamais por Santo algum. O que significava aquele acontecimento? Jesus se fôra! Era isso para Maria uma idéia mais difícil de compreender do que Lhe havia sido o mistério da Encarnação. Se o universo tivesse cessado de girar, ser-lhe-ia menos surpreendente; se as trombetas do Julgamento Final houvessem soado, o Coração de Maria não teria tremido tanto como então. Eles se informaram junto a seus parentes e conhecidos, sobre se Jesus não estava com eles; pois muitos destes dedicavam ao Menino, como que por intuição, um amor cujas aspirações nunca se esgotavam. Maria e José se informam, mas Maria sabe que é inútil; Ela conhece muito bem a Jesus para não estar certa de que Ele não estava por ali, senão já teria vindo até Ela; não seria um acidente tão vulgar que romperia a união de Seu Coração com o de Jesus. Ela sentia, todavia, que a tragédia não havia sido superficial: um abismo se havia aberto, e um vento frio se escapava dele, congelando cada recanto de Sua alma. Continuaram suas buscas, mas não receberam senão respostas negativas, variadas apenas pelo grau de simpatia com que eram dadas. Puseram então um fim a essas interrogações, e uma noite profunda lhes sobreveio; o sol se ocultara para um lado do globo e se levantava para o outro, mas o que o hemisfério da noite jamais escondera, e o que o hemisfério do dia jamais vira, eram dois corações mergulhados numa miséria tão extrema como aquela em que estavam os corações de Maria e de José. Havia nesta noite muitas dores sobre a terra, mas nenhuma como a de Maria; e houve muitas noites desde então, com sua bela obscuridade semeada de estrelas, e muitas dores incríveis sem uma só estrela de consolação; mas não tornou a haver outra dor como a de Maria. Naquela noite as estrelas teriam parado de brilhar, caso fossem dotadas de um coração; as próprias trevas teriam chorado lágrimas de sangue, para se associarem à angústia e ao abandono desta memorável noite. Nem mesmo na noite em que todo o Egito soltou gemidos ensurdecedores, como se fossem uma só voz, chorando a morte dos seus primogênitos, deixou-se entrever uma miséria tão pesada como aquela que agora havia caído sobre o Coração de Maria.
Maria e José retornam para a cidade santa, sozinhos, silenciosos, na escuridão. Seus pés estavam feridos e fatigados – mas que lhes importa? Seus corações estavam ainda mais feridos e fatigados. As trevas que reinavam no espírito de Maria eram mais profundas do que aquelas que cobriam as montanhas. Mesmo que a lua de Páscoa não estivesse brilhando, eles teriam achado o caminho. Mas nenhum atalho se apresentava à dor que sentiam, nenhuma escapatória se deixava ver pelo Coração de Maria. Todo o passado, então, que não fôra certamente um sonho, fôra, todavia, uma coisa passageira? Maria não devia mais tornar a ver Jesus? Ele teria para sempre deixado de iluminar o Coração de Sua Mãe? Haveria Ele de velar para sempre o Seu Coração à Sua Mãe? Esse Coração tão belo, do qual o véu havia sido levantado para Ela durante doze anos? Esse Coração do qual Ela via todos os mistérios, todos os segredos, e na vida do qual Ela vivera quase sempre até então continuamente? Tornara-se Ela indigna dEle? Ela pensava que o era. Seria por isso que Ele A deixara? Ele não faria isso. Mas Maria não via as coisas como antes, e bem podia ter acontecido como temia. Haveria Ele retornado a Seu Pai, abandonando o mundo sem resgatá-lo, uma vez que este não queria saber dEle? Não! Isso era impossível; Ele não havia pago ainda o preço da Imaculada Conceição dEla. Os tiranos raramente desistem: e se Herodes houvesse deixado a seu filho, como um legado, a incumbência de encontrar Jesus e acabar com Ele? E se Arquelau O tivesse achado? Estaria Ela, de repente, no grande dia do Calvário? A data havia chegado? Seu Menino estaria nesse momento mesmo sendo suspenso na Cruz, em meio às trevas da noite, sobre alguma montanha fora da cidade? Que agonia e que trevas incomuns em Sua alma! Ela já havia visto, em Seu espírito, toda a Paixão. Com qual acontecimento mesmo esta havia de começar? Ela não se lembra; Ela não consegue se lembrar; as trevas que invadiram Seu espírito o impedem. Pode ser que, nesse momento mesmo, Jesus esteja morrendo, sem Ela, vertendo Seu Sangue, e Ela não está perto dEle! Que agonia! Teria Ele se entregado à morte sem Lhe dizer nada, de propósito, para poupá-lA? Oh, não! Uma bondade tão cruel seria contrária à união existente entre Seus Corações. Mas, essa separação mesma, sem uma palavra, depois essa obscuridade interior que envolvia Sua alma, como se acordaria isso com a referida união dos Corações? Ah! Ela não tinha mais certeza alguma sobre que se apoiar, a não ser a certeza de que Ele é Deus. Sua dor mesma Lhe dizia que Ela nada devia concluir do que estava se passando; pareceu então que o passado não havia sido um bom profeta do futuro. Que sofrimento para Maria o de então não poder compreender o passado! A obscuridade repentina, após uma claridade excessiva, fere como um raio. A alma de Maria queria ver, mas um véu se lançara sobre Ela, uma cegueira A atingira. Nada Lhe restara agora, exceto aquela misteriosa paz que sempre perdurava no mais fundo de Sua alma. Oh! As águas da amargura se elevavam silenciosamente nos abismos infinitos dessa paz... Essa amargura subterrânea (e quem não a há conhecido ao menos uma vez!), essa amargura nos deixa sem gosto pela vida.
Teria Ele ido para o deserto, a fim de admirar essa maravilha da santidade eremítica que era o jovem filho de Zacarias, João, que mais tarde seria chamado o Batista? João fazia seu noviciado, nessa idade tão tenra, entre as bestas selvagens, vivendo sozinho, atormentado pela fome, perseguido pelo calor e pela sede, pelo vento e pela chuva, se preparando para sua missão, se preparando para ser o precursor de Jesus na pregação. O Filho de Maria teria ido visitar João, para partilhar Seu noviciado? Ela teria entendido que isso não era possível, caso pudesse ver as coisas com a clareza costumeira. Mas o tormento de Suas trevas interiores estava, então, justamente em não poder entender Jesus. E Ele era a única luz de que Ela tinha necessidade. Com Ele, todo o resto do mundo podia se tornar obscuro para Ela, que Seu fardo ainda continuaria fácil de carregar. Mas, o fato de não poder compreender Jesus dava, ao Seu martírio, uma variedade de dores que não podemos sondar. Mas todas as mães não passam um pouco por isso, quando suas crianças, em meio a novas provas, em situações nas quais elas não têm ainda experiência, e justo no momento em que mais necessidade teriam da antiga união com o coração materno, resolvem viver em seus próprios corações, portando mistérios escritos sobre sua fronte? Há corações para os quais essa é uma pena bem viva; mas não se pode comparar àquela que experimenta Maria quando o Adolescente de Nazaré começa a parecer diferente do Menino de Belém. Não poderia ser que Ele agora tivesse ido a Belém mesmo, visitar Seu próprio santuário? Poderia Ele nessa saída ter ido operar coisas relacionadas à redenção do mundo? Ou seria simplesmente por ser essa saída do Seu agrado? Maria estava em grande perplexidade. Algumas horas antes, Ela teria respondido “Não!” [a essas indagações] com a maior confiança. Agora, porém, Ela não estava mais certa; Sua humildade mesma Lhe dava ainda mais incerteza do que as trevas, por si mesmas, o teriam feito. Tudo aquilo concordava tão pouco com o Seu [de Jesus] caráter! Ele poderia fazer o que quisesse que, sem dúvida, seria alguma ação santa. Ora, Ele podia fazer tudo: era isso o mais longe que a inteligência de Maria podia ir nesse caso. Mas, se se tratasse duma saída apenas para satisfazer Sua devoção, Jesus não teria preferido ir acompanhado por Seus familiares? Por outro lado, Ele se ausentaria sem os avisar, sabendo o quanto seria terrível para eles a pena que isso lhes causaria? Maria não podia estar segura de que Ele não agiria assim. Mas, por que Ele se ausentaria? Por que causar essa pena? Isso não seria subtrair-se à autoridade dos pais? E Ele não tem mais que doze anos! Ainda uma vez: se Ele devia agir assim, por que nada falara? Ela não sabia explicar; não podia dizer nada, não entendia nada. Somente sabia disto: Ele era Deus. O Coração sagrado de Maria não podia mais do que se resignar e sangrar silenciosamente. Ela estava crucificada nas trevas, como Jesus o seria um dia. Ele A havia abandonado, como Seu Pai um dia O abandonaria. A primeira luz do dia A encontrou já nas ruas de Sião: a admirável Filha do Altíssimo carregando Seu inexplicável fardo de aflição.
Durante todo esse tempo, onde está Nosso Senhor? Em Jerusalém. Nós sabemos alguma coisa do que Ele fazia ali. A Escritura nos conta a parte mais estranha [la partie la plus étrange]; e as revelações dos Santos nos descobrem o que já adivinhávamos como provável. Ele tinha orado longamente no Templo; depois, havia se dirigido às assembléias dos doutores e dos anciãos, e lá os havia encontrado se esforçando por decifrar o sentido das profecias antigas e por imaginar um Messias glorioso, guerreiro, triunfante, político, que deveria realizar a libertação política de Seu povo oprimido. É isso o que se tornaria o grande obstáculo à admissão de Sua doutrina e do mistério de Sua Encarnação. Era preciso que esse obstáculo fosse removido. Ou, pelo menos, que aqueles que tinham ouvidos para ouvir fossem convidados a aceitar a verdade. A obra de Jesus era a obra de Seu Pai celeste. Assim, portanto, Ele intervém, modestamente, como para fazer questões. Sua doçura ganha todos os corações. Quando Ele fala, os doutores mais graves ficam como suspensos de Seus lábios. Ele apresenta Suas objeções com doçura, sugere um sentido maravilhoso às profecias profundas, anima os que o escutavam a reconhecerem que suas opiniões não eram sustentáveis, e tira deles a verdade espiritual como se fosse Ele a receber uma lição, e não como uma compreensão nova que brilhasse para eles. Quantos corações não terá Ele preparado assim, por si mesmo! Quantas vocações apostólicas não tiveram, então, seus fundamentos indiretamente lançados! Quando Pedro converte milhares de homens com um discurso, quando ele oferece milhares de almas a cada uma das Pessoas Divinas já na primeira vez que ele prega, uma grande parte da obra não poderia estar já adiantada pela doutrina que as questões do Menino de Nazaré suscitara? Durante esses três dias, como nos contam alguns Santos, Nosso Senhor havia mendigado Seu pão de porta em porta, a fim de praticar uma pobreza maior ainda que a experimentada em Nazaré. Por esse meio, Ele havia mesmo dado esmolas aos outros pobres. Tinha também visitado os ricos e cumprido algumas funções servis para com eles [em troca do alimento], além de lhes dirigir palavras de bondade e os orientar para Deus. Durante a noite, Ele dormia sobre o solo nu, ao longo dos muros das casas. A terra, pelo menos, não podia recusar um leito Àquele que a havia tirado do nada. Assim, o Criador de todas as coisas, privado agora dos cuidados de Sua Mãe, vivia de expedientes em Seu próprio mundo, como um jovem mendicante de doze anos. Oh! Sobre quantas circunstâncias da vida nosso bendito Mestre há semeado a consagração dos sofrimentos!
Estamos certos de que Maria e José, quando entraram pela manhã em Jerusalém, foram direto ao Templo, para implorar a benção de Deus sobre o fardo de dor que os prostrava até o chão. Tinham esperança de reencontrar Jesus. Durante todo o dia, percorrem penosamente as ruas de Jerusalém. Maria examinava os passantes como Ela jamais havia feito antes; mas Jesus não aparecia em parte alguma. Buscavam informações em toda parte. Alguns os escutavam pacientemente, mas com frieza, enquanto que outros o faziam com mau humor, como se os aborrecesse; outros, enfim, eram bons e sensíveis, mas nada de consolador tinham a dizer. Uma mulher pede à Maria para fazer uma descrição de Seu Filho, e com que fidelidade Ela não o faz! Ah! Essa mulher tinha visto, sim, um jovem, mas ele não se parecia com Jesus. Ela jamais O poderia esquecer se tivesse a felicidade de encontrá-lO. Outras faziam nascer uma expectativa que logo se esvanecia. Depois, sobre a dor de Maria vinha cair um mundo de bons avisos que não tornavam Seu fardo mais leve. Por que Ela não O buscava por aqui? Por que Ela não O buscava por lá? Boas almas! Ela já havia buscado por toda parte. O havia buscado como as mães buscam suas crianças queridas; não havia esquecido nenhum dos locais por onde essa busca devia se estender. Todavia, alguém havia dado uma esmola a um Jovem pobre que não era muito diferente da descrição que Maria fazia de Jesus, e do qual a beleza e as maneiras haviam feito uma viva impressão sobre a pessoa que O vira. Mas, essa pessoa nada mais tinha a dizer. No entanto, já era um raio de luz para Maria. Era claro que não podia haver no mundo dois jovens pobres que correspondessem à descrição que Ela fazia. Em seguida, uma outra mulher, ao abrir a porta de sua casa pela manhã, tinha visto um Jovem pobre deitado sobre a terra, ao relento. Ela não O havia visto mais do que por um instante, mas pode ver que Ele era belo, e que tinha os cabelos loiros. Outra também havia visto um Jovem pobre semelhante àquele do qual falava Maria; Ele tomava Seu pão na rua, entre dois mendigos, mas ela sabia para que lado Ele tinha ido. Ele estava, portanto, ontem mesmo, em Jerusalém, e talvez estivesse aí ainda. Uma outra pessoa também O vira, pela manhã, junto a um doente. Era uma pista. Maria descobre onde mora essa pessoa doente, a visita e lhe fala. Escuta o pobre afligido descrever as maneiras atraentes do Menino que tinha cuidado dele, Sua voz, Seus olhos, Suas santas palavras que lhe haviam feito derramar lágrimas, e o sentimento em sua alma de uma estranha presença de Deus que o Menino deixara ao sair. O Coração de Maria ardia. Ela ouvia avidamente cada uma dessas palavras. Era Jesus. Não podia ser nenhum outro. Mas, de que lado Ele viera? Para onde havia ido? O doente não o sabia informar. Ele simplesmente veio e se foi. Durante o tempo em que estiveram juntos, o doente se sentira tão absorvido por Ele que nem se lembrara de Lhe fazer perguntas. E o sol já descia no horizonte; ele desaparecia inteiramente, as sombras tombavam e a calma da noite envolvia Jerusalém; mas Jesus não fôra reencontrado. A jornada fôra fatigante; nem Maria nem José haviam comido coisa alguma ainda. Estavam esfomeados pelo Menino. Um coração amargurado tem menos necessidade que os outros de sono e de comida. No exterior, a noite era sombria; mas, na alma de Maria, fazia-se uma noite mais sombria ainda.
Após três dias inteiros, durante os quais Maria permaneceu, por assim dizer, enterrada em Suas terríveis trevas, na manhã do terceiro dia, Ela e José foram ao Templo para mostrar de novo suas dores ao Senhor. Entraram pela porta oriental. Ora, perto dessa porta havia uma sala espaçosa, uma espécie de academia na qual os intérpretes da Lei ensinavam, respondiam às questões, decidiam sobre os pontos duvidosos, regravam as discussões. Em sua defesa diante de Félix, São Paulo falará desse lugar, ao dizer que jamais fôra encontrado disputando no Templo. Seria ali que, aos pés de Gamaliel, o grande Apóstolo dos Gentios aprenderia as tradições da Lei. José e Maria tinham de passar perto da entrada dessa academia. Esse era um lugar nada provável para encontrarem o objeto de suas buscas. Mas, o ouvido de Maria percebe um som que Lhe seria impossível desconhecer. A voz de Jesus! Eles entram. Os Doutores observavam um Menino, tomados por uma mistura de temor e prazer. Jamais tinha havido um Doutor como este entre eles. José e Maria sentem-se estonteados também. Maria ainda não percebera o tom da voz de Jesus e nem visto a luz dos olhos dEste. Na presença dEle, Ela mergulha em adoração no mais profundo de Sua Alma: Ela tinha mais direitos sobre esse Menino que todos os Sábios e Anciãos da Nação. Ela teria ido se prostrar aos pés dEle, mas Ela sabe que este não é nem o lugar nem o tempo. De sorte que Ela avança e Lhe diz: “Meu Filho, por que fizestes isso conosco? Teu pai e Eu Te buscávamos com tanta aflição...” Jesus podia bem a ver, mesmo sem que Maria o dissesse. Ele podia ver a devastação que a dor provocara na face de Maria. Podia ouvir Sua voz fraca e trêmula. Podia ver o estado de fraqueza em que Maria estava, ao ponto de agora quase sucumbir ao peso da emoção. Mas Ele não precisava vê-lA nem ouvi-lA. Ele jamais estivera longe dEla. Ele repousara no Coração dEla durante todo esse tempo. Ele mesmo havia mensurado exatamente a quantidade de força física e de graça celeste de que Ela teria necessidade pra suportar Suas penas. O próprio Coração de Jesus havia sido crucificado junto com o de Maria; mas o mistério ainda não estava todo cumprido. Ele lhes diz: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?” Aqui Ele moveu a espada de Simeão e a pressionou mais ainda. Por que Maria O havia buscado?! Oh! Pensai em Belém, no deserto, no Egito, em Nazaré! Por que Ela O havia buscado?! Pobre Mãe! E poderia Ela ter feito outra coisa senão O buscar? Ela tinha mil razões para buscá-lO. Negareis os Seus direitos de Mãe? Ele irá repeli-los agora, bem em meio à alegria que experimentam por reencontrá-lO? Seus direitos! Mas estes eram um dom dEle... E Ele poderia retirá-lo, se quisesse. Mas, a Sua Carne, o Seu Sangue, o Seu Coração que batia, não eram, em certo sentido, os mesmos de Maria? Não, os de Maria é que eram, antes, dEle. Mas, o direito que Ela tinha de amá-lO – esse o Criador poderia retirar de Sua criatura? Não! Esse direito é inalienável. Seria preciso que a criação fosse aniquilada para esse direito ser destruído. Se Ele vai se separar dEla agora, à porta oriental do Templo, Ela, porta do verdadeiro Oriente, Ela não O amará menos que antes, mas mil vezes mais ainda. Esse olhar, esse tom, embora em meio aos Doutores, penetraram até o fundo da alma de Maria. Para Ela, eram revelações absolutas de Deus.
As trevas foram dissipadas! Longe disso! Jesus acaba de aumentá-las momentaneamente por Suas palavras. “Eles não compreendiam o que Ele dizia”. Mas Ele não vai afastar Maria, não. Ele está em Jerusalém ocupado dos afazeres de Seu Pai Celeste. Agora os mesmos afazeres o reconduzirão a Nazaré. E Ele, ainda mais belo, e Maria, ainda mais santa, e José, mais perto de Deus que nunca, e ainda mais semelhante à sombra do Pai Eterno depois desse último transtorno, eles se põem a caminho de Nazaré, onde, durante os próximos dezoito anos, incluindo as visitas a Jerusalém, Maria, desfrutará da presença santificante de Jesus, e o trabalho de Jesus na oficina de José mostrará que os afazeres de Seu Pai Celeste e os de Seu pai terrestre, podem ser os mesmos. Esses dezoito longos anos foram, para Maria, como ver o livre e magnífico oceano, após haver escalado uma sombria montanha. “Ele partiu, em seguida, com eles, para Nazaré, e sempre lhes foi submisso. E Sua Mãe conservava todas essas coisas em Seu Coração ”.
Descrevendo o mistério dessa Terceira Dor, vimos já muitas coisas sobre as particularidades que ela encerra. Todavia, é preciso que nos estendamos melhor agora sobre seus traços particulares. Em primeiro lugar, ela foi a maior de todas as dores da Santa Virgem. [En premier lieu, elle fut la plus grande de toutes les douleurs de la Sainte Vierge.] Isso procede, em parte porque essa dor acarretou para Maria uma separação de Jesus, e, em parte, por causa duma reunião de outras circunstâncias que iremos examinar agora. Lemos na vida da Bem-Aventurada Bevenuta de Bojano, dominicana, que, durante a doença que a impediu de se levantar durante vários anos, à força de estar sempre na cama ela se pôs a meditar sobre a dor da Santa Virgem durante os três dias de ausência. Ela desejava participar dessa aflição, tanto mais que ela já estava acostumada à dor durante toda a sua vida, e havia mesmo desejado sofrer de fato uma cruel doença, além de fugir de toda espécie de alegria [sensível]. Pediu, portanto, a Nosso Senhor e à Sua Mãe, que lhe concedessem a graça de experimentar em si mesma aquela dor da Santa Virgem. E eis que uma Senhora santa e venerável lhe aparece, com um belo e gracioso Menino, que se põe a correr pelo quarto, mantendo-se sempre perto de Sua Mãe. O aspecto e a conversação desse Menino encheram Bevenuta duma alegria extrema; mas, quando ela quis tocar o Menino, Ele se afastou e, com Sua Mãe, desapareceu repentinamente. Então uma dor violenta se apoderou da alma de Bevenuta, e continuou crescendo sem parar, afligindo-a tão profundamente que nada lhe trazia consolação; e parecia-lhe que sua alma e seu corpo estavam a ponto de separar-se. Foi, pois, obrigada a pedir socorro à Santa Virgem, pois já não podia mais suportar sua dor. Ao fim de três dias, com efeito, a Santa Virgem lhe apareceu, com Seu Filho nos braços, e lhe disse: “Vós pedistes para experimentar a dor que Eu sofri quando da perda de Jesus; e apenas uma parte dessa dor vos foi concedido provar. Mas não façais mais pedidos de tais coisas, porque vossa fraqueza não vos permitiria viver sob tal agonia”. Apenas a sétima dor, a sepultura de Jesus, aproxima-se, em violência, dessa terceira dor. Mas esta foi, por várias razões, ainda mais viva. Todas as duas acarretaram para Maria uma separação de Jesus, mas, depois da sepultura, Maria sabia que Jesus já não podia sofrer. Ela compreendia o mistério que havia acontecido. Via com satisfação o cumprimento da obra da redenção do mundo. Já podia contar as horas que faltavam para a Ressurreição. Nessa terceira dor, porém, Ela havia perdido Jesus sem saber por que; ignorava onde Ele estava e o que poderia estar sofrendo. Ela estava mergulhada em espessas trevas espirituais, e Deus parecia tê-lA abandonada de todo. Assim, as torturas de Seu Coração não atingiriam jamais um grau mais intolerável que durante esses três dias, mesmo em meio aos horrores da Paixão. [Aussi, les tortures de son coeur n’atteignirent-elles jamais à un degré plus intolérable que durant ces trois jours, pas même au milieu des horreurs de la Passion.]
A perda de Jesus foi, em todas as suas circunstâncias, a mais cruel dor para Maria, uma dor que nos é impossível, com nossa fraca graça e nosso amor ainda mais fraco, avaliar com justeza. Ser-nos-ia preciso ter o Coração de Maria para entender a dor de Maria. Mas a circunstância particular que, durante esses três dias de ausência, tornaram a perda de Jesus tão terrível para Maria, foram as trevas nas quais Sua alma esteve mergulhada, como num abismo. Ela, que até então sempre estivera iluminada, se via agora envolta toda em trevas. Ela ignorava, então, como Deus estava agindo nEla; Ela tinha de agir, e não conseguia compreender aquelas circunstâncias nas quais tinha de agir. E não era só o contraste com o passado que tornava o presente tão difícil de suportar. A noite descida sobre Ela trouxera, consigo mesma, uma angústia intolerável. Sempre fixada em Jesus, Ela não percebera ainda, até então, o quanto estava apoiada sobre Ele; e Ele se retira dEla. Ela já não consegue mais enxergar o futuro; o passado está embotado a Seus olhos, e já não Lhe dá luz alguma; o presente está cheio de perplexidade, acompanhado duma dolorosa agonia do Coração e amargura do espírito. A Irmã Maria de Ágreda conta que mesmo os Anjos cessaram, então, seus colóquios com Maria, a fim de não A esclarecerem a respeito da perda de Jesus. [La soeur Marie d’Ágréda rapporte qu’alors les anges même cessèrent leurs entretiens avec Marie, de peur de l’éclairer touchant la perte de Jésus.] Não se pode ter dúvida alguma de que essas trevas de Maria não fossem produzidas por uma operação divina. Para encontrar algo de semelhante, precisaríamos nos reportar às inexprimíveis provas interiores que atingiram alguns dos maiores Santos; sabemos que elas foram enviadas aos Santos como uma purificação espiritual, mas, para o Coração Imaculado de Maria, essa prova não podia ser senão uma nova e maravilhosa santificação, acrescentada à anterior, pois o espírito de Maria não tinha necessidade de purificação. Por isso a obra que precisaria de longos anos para se cumprir na alma dos Santos, podia, na alma da Santa Virgem, realizar-se em apenas três dias, dado que Suas perfeições permitiam à graça operar mais rapidamente e sem sombra sequer de obstáculo. E quem não sabe que nos sonhos, nos acidentes e nos momentos de grandes sofrimentos, o tempo parece como miraculosamente comprimido? Os longos anos da vida desfilam em uma ordem distinta, regular e clara, diante da alma que reflete com inteligência sobre cada um deles e, no entanto, tudo aquilo não dura mais que um momento. Assim também, sabemos de aparições de almas do Purgatório que choravam pelos longos anos de esquecimento em que seus amigos as deixavam mergulhadas nas chamas, sem missas nem preces, enquanto que, na verdade, o sol do dia que iluminou a sua morte ainda nem havia se posto. Também sabemos que o Juízo Particular, que nos espera no fim da vida, não ocupará mais que um momento. E notamos ainda que, às vezes, uma única ação parece cumprir a obra de vários anos, inclusive a respeito da formação dos hábitos. É o caso, sobretudo, das ações heróicas, tais como o sacrifício de Abraão. O mesmo pode ocorrer na profissão dum religioso. E pode haver alguma coisa da mesma natureza na graça especial dos diferentes sacramentos. Haverá algum de nós que nunca tenha sentido alguma operação da graça maravilhosamente rápida, a qual pareceria exigir uma sucessão de tempo para se efetuar? Assim, na alma perfeita de Maria, já elevada, pela graça e pela união, a uma altura tão sublime, essas trevas divinas de três dias podiam produzir os efeitos mais impressionantes, efeitos que não podemos descrever, porque a elevação de Maria, mesmo antes deles, já escapava, e muito, da nossa vista. Essas trevas são uma particularidade da terceira dor, mas várias outras penas também se fizeram presentes.
É-nos impossível dizer, com algum grau de certeza, quando essas trevas cessaram. É importante considerar o fato de que Maria não entendeu as palavras de Jesus na academia do Templo. Vemos esse fato como uma particularidade especial da terceira dor, uma particularidade que não se pode atribuir a outras causas, senão à influência daquela aflição sobre a natureza de Maria. Pode ser, é verdade, que essas trevas tenham se dissipado gradualmente, a contar do primeiro momento em que Maria viu Jesus. Arriscaremo-nos, porém, a conjecturar que elas tenham se dissipado inteiramente, sim, no momento do reencontro de Jesus, mas que algumas de suas conseqüências persistiram ainda. É possível também que a fraqueza e a fadiga que Maria até aí pouco sentira porque as trevas e a dor absorviam todos os Seus sentimentos, se fizessem então sentir a Ela, e se descobrissem por degraus, sob a influência dessa repentina passagem da dor para a alegria, tal como lemos a respeito de alguns Santos em seguida a seus êxtases. Os teólogos tentam dar diversas razões por que a Santa Virgem não compreendeu as palavras de Jesus. Rupert pensa que Ela as compreendeu, sim, mas, por humildade, agiu como se não as compreendesse. Mas essa explicação não é satisfatória, por causa da dificuldade mesma de concordá-la com as palavras diretas do Evangelho. Stapleton pensa que o excesso da alegria de Maria, ao reencontrar Jesus, agiu sobre o Seu espírito de tal maneira que Ela não pôde compreender as palavras de Seu Filho, exatamente como, por uma causa contrária, mais tarde os Apóstolos, por causa do excesso de sua dor, não poderão compreender o que Nosso Senhor dirá a respeito de Sua própria morte. Mas seria difícil estabelecer uma paridade entre nossa bem-aventurada Mãe e os Apóstolos; e a conseqüência dessa hipótese de Stapleton seria difícil de admitir, exceto se boas autoridades a apoiassem, tanto mais que isso seria supor uma interrupção na tranqüilidade da Santa Virgem, e uma perturbação no uso de Sua razão, no momento mesmo em que Ela falava com Aquele cuja voz apaziguava os ventos e acalmava as ondas. Dionísio, o Cartuxo, assinala alguns limites à ignorância da Santa Virgem [acerca do que Jesus, nessa ocasião, dissera]. Ele diz que Ela sabia que Jesus não falava de José, mas sim de Seu Pai Eterno; que Ele fazia referência à obra para a qual viera ao mundo, a qual, em conformidade com a natureza humana de que Ele se revestira, requeria que Ele estivesse sempre se ocupando dela, mas da qual as circunstâncias de tempo, lugar e maneira, ainda não tinham sido reveladas a Maria. Essa suposição é mais honrosa para a Santa Virgem que aquela de Stapleton, e repousa sobre a opinião de que os trinta e três anos e a Paixão se manifestaram gradualmente a Maria, através de revelações sucessivas. Nós temos, porém, em todo o curso desta obra, suposto que Maria conhecesse tudo, ou quase tudo, desde o começo: hipótese que melhor concorda com as visões e revelações dos Santos contemplativos.
Suarez sugere duas hipóteses. Segundo ele, Maria compreendia bem que Jesus falava de Seu Pai Celeste, mas que Ela não sabia exatamente quais eram essas coisas particulares pelas quais Ele os deixara (durante aqueles três dias); ou ainda, Maria não estava certa sobre se, acaso, Jesus não estaria expressando Sua intenção de alterar o tempo de Sua manifestação ao mundo, a qual só deveria ocorrer, todavia, no trigésimo ano. De sorte que, acrescenta ele, não haveria em Maria uma ignorância privativa (grifo do original), mas somente uma ausência do conhecimento de algumas particularidades que não seriam necessárias à perfeição de Sua ciência. Mas, a ser assim, nos inclinamos antes a reportar esse estado da Santa Virgem à continuação das trevas divinas pelas quais Deus A visitara. São Aelred [não conhecemos a tradução do nome desse santo] e alguns outros, sustentam que as palavras de Jesus constituíam uma espécie de sinédoque [isto é, uma figura de retórica] e, assim, elas não se aplicavam a São José e à Santa Virgem senão daquela mesma maneira que o Evangelho diz que os dois ladrões blasfemavam sobre a cruz, enquanto que, na realidade, segundo alguns comentadores, apenas um o fazia. Assim, segundo São Aelred, a Santa Virgem compreendeu as palavras de Jesus e as conservou em Seu Coração , a fim de podê-las ensinar depois aos Apóstolos. Mas, se poderia replicar que não é certo que um só dos ladrões tenha blasfemado, e que, pelo contrário, a opinião que fere os dois é a mais comum. Ademais, São Aelred, com sua interpretação, parece tomar, com as palavras do Evangelho, liberdades que dificilmente seriam justificáveis perante a autoridade, muito maior, da tradição. [En outre, Saint Aelred semble prendre, avec les paroles de l’Évangile, des libertes qui seraient à peine justifiables sans l’autorité, beaucoup plus grande, de la tradition.] Outros pensam que as palavras: “eles não compreenderam”, aplicavam-se ao auditório presente na academia, e não à Santa Virgem, nem a São José. Mas essa opinião não tem muito valor. Os fiéis sempre encontraram dificuldade e mistério nessa passagem, o que não teria acontecido se essa interpretação fosse clara e natural. Novatus pensa que, por uma permissão especial de Deus, Maria não compreendeu de imediato as palavras que Jesus havia pronunciado, mas que Ela veio a compreendê-las depois, ao meditá-las em Seu Coração. Consideramos essa interpretação mais conforme com as palavras do Evangelho, e descobrimos nelas um traço de semelhança entre o que se passava no espírito de Maria e a maneira pela qual os Santos que tinham o dom de profecia preanunciavam o futuro: não por uma luz profética direta, mas comparando uma luz com a outra, e tirando dessa comparação conclusões novas. [(...) non par une lumière prophétique directe, mais en comparant une lumière avec une autre, et en tirant de cette comparaison des conclusions nouvelles.] Entretanto, não se vê o que se tem a ganhar com essa suposição. Ninguém quer negar que a Santa Virgem tenha possuído todos os dons que os Santos possuíram; mas por que supor, gratuitamente, que também alguma imperfeição que acompanhou os Santos no exercício de seus dons, deva ser atribuída a Maria – além daquelas que necessariamente se Lhe atribuem como criatura?
Ousaremos acrescentar mais uma conjectura ao já grande número daquelas que os teólogos hão feito sobre esse assunto. Não se pode supor que cada aumento da santidade era, na Santa Virgem, acompanhado por um aumento proporcional de Sua ciência? Numa natureza perfeita e não decaída como a de Maria, não se pode conceber que as duas operações fossem separadas; no ser que pecou, a dureza de coração pode ser afastada gradativamente, sem que ocorra na mesma proporção um afastamento das trevas do espírito: [chez l’être qui a péché, la dureté de coeur peut être éloignée par degrés sans qu’il y ait exacte proportion dans l’éloignement des ténèbres de l’esprit:] a luz e o amor, embora sempre relacionadas, não são, nos pecadores, tão perfeitas quanto nos inocentes. Assim, supomos que as trevas místicas que Deus enviou como uma provação espiritual sobre a alma de Maria, deram nEla nascimento a atos tão heróicos de amor e de união, que elevaram-nA a alturas prodigiosas de santidade, mais além ainda dos altos cumes que já atingira antes. Supomos que, entre Maria deixando a porta do Templo no fim da Semana dos Ázimos, e Maria ali reentrando na manhã em que encontrou Jesus, havia mais diferença sobrenatural do que jamais houve entre um Santo em sua juventude e o mesmo Santo em sua velhice, muito mais santo ainda. Não podia haver revoluções em Maria, porque Ela nada tinha a destruir em Si, nada a converter, nada a reajustar. Mas as adições novas podiam ser muito imensas ou muito rapidamente acumuladas, ou conferidas duma maneira muito instantânea para produzir uma mudança que intitularíamos de uma revolução em qualquer outra criatura que não a Santa Virgem. É isso o que, sem dúvida, entendem os teólogos, quando falam de Sua primeira santificação, de Sua segunda, de Sua terceira santificação, e assim por diante. Eles não querem negar que Ela merecesse sempre a graça e sempre crescesse nesta; mas sim que, a Imaculada Conceição, a Encarnação, a Descida do Espírito Santo ou a Morte de Maria foram, por assim dizer, momentos de criação na santificação da Santa Virgem, momentos que não seguiam as leis do crescimento comum. Nós olhamos as trevas interiores dos três dias de ausência como um momento desse gênero.
Mas qual a importância que possui aqui o fato de que Maria não compreendesse as palavras de Jesus? É preciso nos reportar, por algum tempo, às mais altas regiões da teologia mística; e ela é uma ciência tão elevada que chega a tocar os confins da ignorância. [(...) il y a une science si élevée qu’elle touche aux confins de l’ignorance.] É o lugar onde o que é humano se aproxima do que é divino; uma altura inexprimível, mas não inacessível, pois um pequeno número de Santos, além dos Serafins, a puderam atingir. [C’est le lieu où ce qui est humain approche de ce qui est divin; c’est à une hauteur inexprimable, mais qui n’est pas inaccessible, puisqu’un petit nombre de saints et les Séraphins y ont atteint.] Pode ser que a Santa Virgem tenha atingido uma altura ainda mais elevada, mas como há limites à capacidade das criaturas, a Santa Virgem atingiria os extremos desses limites e, a partir daí, só poderia lançar o olhar sobre os abismos divinos situados mais além. Lá, as trevas são conseqüência do excesso de luz, e a ciência é ignorância, não somente porque a linguagem não tem termos para suas definições, nem o pensamento moldes para formular suas idéias, mas também porque os olhos da alma estão feridos pela proximidade de Deus. O espírito vê, então, o que ele não sabia, o que ele não podia saber; ele é submergido, e sua luz é uma claridade maravilhosa e indistinta; seu saber perde-se no amor, e seu amor vive mergulhado na alegria. Os mesmos motivos fazem nascer idéias diferentes em espíritos diferentes. Se dizemos que a lua gira em torno da terra, o camponês nos entende, mas o sábio compreende nossa proposição duma maneira diferente, porque a compreende duma maneira mais extensa. E pode ser que um Anjo a compreendesse ainda duma outra maneira. Assim, as palavras que Nosso Senhor pronunciou no Templo não foram compreendidas pelos Doutores, porque eles não sabiam quem era Seu Pai, nem qual era Seu afazer, nem porque Seu pai [adotivo] não devia buscá-lO por estar Ele ocupado nas coisas de Seu Pai [Eterno]. São José não as compreendeu também, porque, embora ele soubesse, sem dúvida, que Jesus falava de Seu Pai Eterno e da redenção do mundo, que era a obra de Seu Pai, ele não sabia de qual parte dessa obra Jesus queria falar, nem porque essa era uma razão para que Este os deixasse sem avisar. Maria não as compreendeu, porque, para Ela, cada uma dessas palavras brotava de algum abismo inimaginável da Sabedoria Divina, transportando a obra da Encarnação para diante dos conselhos eternos da Divindade, estendendo imensamente o alcance da vista da Santa Virgem, sem, todavia, Lhe apresentar imagens distintas, atirando-A mais profundamente nos braços da Sabedoria Divina, até Ela quase tocar o que via e cessar assim de ver, elevando-se, enfim, ao último grau do conhecimento, onde uma ignorância divina é a consumação da ciência da criatura. Eram as palavras, elas mesmas, que impediam Maria de compreendê-las, porque elas A transportaram a uma região onde a inteligência se anulava para se mudar em alguma coisa de melhor, por causa da proximidade de Deus. Foram as trevas anteriores que transportaram a vida da alma de Maria ao ponto onde essa ignorância divina era possível. Tal é, com toda a humildade, a conjectura que ousamos fazer para explicar essa dificuldade. Nossa Santa Mãe sabe quanto de ignorância e de equívoco pode haver nela; mas Ela não se ofenderá com uma conjectura da qual o motivo é o amor e da qual o fim é Seu maior louvor.
Há, nessa terceira dor, uma particularidade que está em perfeita harmonia com os aspectos misteriosos que já mencionamos. A primeira dor fôra infligida a Maria por Simeão, e a segunda, por José; mas a terceira dor Lhe é infligida por Jesus mesmo, sem nenhuma intervenção das criaturas. Esse é ponto mais importante a se considerar quando se medita sobre a terceira dor. Dum certo ponto de vista, essa circunstância a torna mais fácil de ser sofrida, mas, por outro lado, a torna também mais penosa. Maria encontra, assim, mais motivos para se resignar à Sua aflição; mas a pena, em si mesma, é tornada mais cruel. O que Deus se digna fazer Ele mesmo é não só melhor feito do que por qualquer criatura, como também é feito duma maneira muito diferente. Não somente é maior a fecundidade em resultados, como os resultados são duma espécie diferente e trazem uma marca especial. As palavras de Deus, quando são ditas à alma, são substanciais e criadoras; efetuam o que exprimem, e o efetuam simplesmente com o ser pronunciadas. Assim, há alguma coisa de extremamente temível [redoutable] na ação imediata do Criador sobre a alma da criatura. É um contato divino que nos aperta sem nenhum intermediário, mesmo sem aquele da carne que pertence à alma que Ele toca; é uma operação espiritual marcada por algo de cortante e de afiado, e que não se parece com nenhuma outra. Essa é a causa por que a ação direta de Deus sobre a alma dos Santos é muito mais santificante para eles do que o seria a perseguição das criaturas, a pena das austeridades, ou a pressão da Providência exterior de Deus. Essa ação tem também o caráter particular que distingue a ordem mais elevada dos milagres, o que quer dizer que é instantânea em seus efeitos. Quando a intenção de Deus em Sua ação imediata é causar sofrimento, é preciso que Ele atinja Seu objetivo duma maneira da qual o pensamento nos faz tremer. É assustador contemplar uma coisa criada, que há sido tirada do nada, pela Onipotência Divina, unicamente com o fim de infringir a tortura. Tal é o fogo do inferno, e a ação misteriosa desse fogo sobre as almas separadas de seus corpos, tanto no inferno quanto no Purgatório. Quem poderia pensar sem tremer? Ele não tem nenhuma função benéfica; ele não possui nenhum resultado indireto no qual, por assim dizer, possa repousar; ele foi criado para torturar; não é, de modo algum, um elemento desviado de seu fim primeiro: ele tem seu objetivo, e ele o cumpre; por toda a eternidade ele arderá sem descanso. Multiplicai, tornai mais profunda e mais extensa, condensai a massa sobre a qual esse fogo é destinado a agir, e ele estará pronto para exercer sua ação sobre essa massa, sem se desviar, sem se assustar, sem se cansar; ele sabe o que tem a fazer, e ele o faz com uma fidelidade terrível, e com um sucesso irreprovável. E, no entanto, esse fogo não é mais do que uma causa secundária. Que deve ser, pois, o contato direto com Deus, e esse contato infringindo o sofrimento sob o impulso do amor? Oh! Há vários martírios nesses três dias de ausência! Não somos dignos de relatá-los, nem de concebê-los. Que todas as criaturas se ponham de lado, ou melhor, que elas permaneçam prosternadas, enquanto Deus faz o que Ele quer da alma de Sua Mãe. Entretanto, a natureza criada não é, em Maria, estranha ao Seu martírio; pois a Mãe natural estava sendo crucificada, em Seu Coração , pelo Filho que Ela mesma havia gerado. As duas naturezas de Jesus se haviam unido para fazer Maria sofrer: a beleza da Face de Jesus, a luz de Seus olhos, os atrativos de Seu Coração humano, faziam Sua Mãe sofrer torturas e angústias ao pensar que havia perdido tudo isso; enquanto que, como Deus, Jesus A visitava por essas terríveis provas interiores, que, como já dissemos, formavam a parte principal da terceira dor. E seria inútil falar aqui de oceanos de dor; as infinidades exprimiriam melhor apenas nossa própria inabilidade em falar.
Quando Maria vem a tomar Seu lugar legítimo em nosso espírito, encontramos nEla muitas coisas das quais o alcance é diferente do que seria em algum dos Santos. A idéia de Maria, tal como no-la ensinam os Evangelhos interpretados pela teologia católica, não é, em nossos espíritos, uma visão puramente intelectual. Embora essa idéia seja, em certo sentido, uma conclusão teológica, ela é, entretanto, algo mais que isso; é um produto da fé e do amor, e penetra em nós pelo hábito da prece. Assim, além do conhecimento dos mistérios do Evangelho, há na alma do crente piedoso uma apreciação, uma concepção, uma vista real, instintiva e quase intuitiva, [une vue réelle instinctive et presque intuitive] de Jesus e de Maria, que tem sua certeza, suas associações, suas percepções e suas analogias próprias. É verdadeiro que o espírito individual dá a essas coisas alguma cor e alguma consistência; no entanto, quando, na popularidade de escritos variados, no espírito das devoções, nas contemplações dos Santos, e de alguma outra maneira, tais idéias atingem uma espécie de universalidade, elas tornam-se o senso dos fiéis, e exprimem a verdadeira idéia católica. A preocupação de cultivar em nós justos sentimentos para com Nosso Senhor e Sua Mãe é, evidentemente, uma coisa de grande importância, por causa de sua ligação necessária com a santidade, e também por causa da influência que essa preocupação exerce sobre nossa adoração ao Santíssimo Sacramento, sobre diversas outras devoções e sobre o espírito com que observamos as grandes festas da Igreja. Agora que temos em nosso espírito uma idéia clara e fixa sobre Maria, certas coisas que entendemos e vimos nos espantarão e nos parecerão como que inverossímeis. Se elas não repousassem sobre a autoridade da fé, sendo apenas o ponto de vista de algum pregador, o ensinamento de algum livro ou a contemplação de um Santo isolado, nós as afastaríamos como inconvenientes, porque temos mais confiança, e com razão, em nossa idéia da Santa Virgem, tornada uma parte de nossa vida espiritual, do que no pregador, no livro ou no Santo em particular. Não o condenamos; simplesmente o deixamos de lado. Mas, se o que nos espanta nos vem pela autoridade da Igreja, então é preciso que reformemos a idéia que está em nosso espírito; é preciso que nos esforcemos por encontrar, naquilo que nos surpreende, alguma significação profunda e desacostumada. Ora, há nessa terceira dor, uma ou duas coisas desse gênero que devem ser enumeradas entre suas particularidades.
Em primeiro lugar, não nos parece conforme ao caráter da Santa Virgem o permitir à Sua dor o arrancar-Lhe alguma demonstração exterior de mágoa. E, não somente Ela mostra Sua dor por Sua conduta exterior, como Ela diz a Jesus que estava buscando-O, junto com José, com muita aflição. Ela o diz quase em tom de repreensão. Ora, os Santos hão suportado as maiores aflições num silêncio completo, heróico e sobrenatural. Tal maneira de agir é sempre uma característica deles. Eles desejavam que ninguém mais, além de Deus, conhecesse as suas aflições. A Santa Virgem teria sido, então, inferior a algum dos Santos no que se refere ao dom do silêncio? Pelo contrário; o silêncio era uma de Suas principais graças. A tradição diz que os três habitantes da santa casa de Nazaré não falavam quase nunca. [Le tradition dit que les trois habitants de la sainte maison de Nazareth ne parlaient presque jamais.] Os doces entretenimentos celestes, que podemos nos figurar como uma parte da vida da Sagrada Família, podem ter lugar em nossa imaginação, mas eles nunca existiram. Reinava ali um silêncio mais profundo que numa solidão de lágrimas ou numa casa de Cartuxos, onde os ventos dos Alpes mugissem através dos corredores e balançassem as janelas, enquanto que todo o resto permanece tão silencioso quanto um túmulo. As palavras de Jesus eram raríssimas. Essa é a razão pela qual Maria as conservava em Seu Coração : porque, tais como tesouros, elas eram raras e preciosas. Se nós refletíssemos, veríamos que isso não poderia ser diferente. Deus é muito silencioso. E, no que se refere à Maria, a récita do Evangelho confirma a tradição. O pequeno número de palavras de Maria que ali se encontram narradas é impressionante. Quer Ela esteja em movimento ou em repouso, Ela parece-se com uma bela estátua, da qual a beleza é a única linguagem. Isso é tão impressionante que alguns Santos contemplativos hão suposto que Maria, em Sua humildade, havia pedido aos Evangelistas que suprimissem, no que se referia a Ela, tudo o que não fosse absolutamente necessário à doutrina de Nosso Senhor. São João, que deles foi quem mais viveu com a Santa Virgem, não diz quase nada dEla; São Marcos não faz menção dEla mais que uma vez, e somente duma maneira indireta. Sem dúvida alguma, nenhum Santo há praticado o silêncio como Ela o fez. Seu silêncio para com São José é uma prova maravilhosa. Mas como poderia Ela não ser silenciosa? Uma criatura que vivia há tanto tempo com o Criador não podia falar muito; Seu Coração estava cheio; Sua alma estava reduzida ao silêncio. Ela estava com Jesus há doze longos anos; longos anos relativamente à formação dos hábitos, embora tenham passado para Maria como um êxtase santo, cheio de um doloroso amor. Ela tinha portado Jesus em Seus braços. Ela havia velado sobre Ele enquanto Ele dormia. Ela O havia alimentado; O havia guardado sob Seus olhares. Havia, sem cessar, desvelado o Coração dEle. Tinha, assim, aprendido a compreendê-lO. Todas as analogias [das criaturas] com Deus, haviam passado pela alma de Maria. Sabemos quanto Deus é silencioso. Entre o Criador e a criatura, em relações tais quais as que existiam entre Jesus e Maria, o silêncio, melhor que as palavras, serve de linguagem. Que poderiam ter feito as palavras? Que poderiam elas dizer? Elas não poderiam suportar o peso dos pensamentos da Mãe, e menos ainda os do Filho. Falar seria um esforço, uma condescendência, um descer da montanha, da parte de Maria tanto quanto da de Jesus. E por que descer? São José também não tinha necessidade. Ele também morava bem alto entre as montanhas do silêncio, muito alto para que alguma voz – eu diria quase que o menor eco da terra – pudesse retinir junto a ele. Ele não tinha necessidade, como a multidão, de que a verde montanha, a planície ou a margem do mar de Genezaré, lhe servissem de escola. Quanto a Nosso Senhor, mesmo no tempo de Seu ministério, que era o tempo de falar [grifo do original], assim como a vida oculta fôra o tempo de calar [grifo do original], Ele era muito silencioso. De que maneira marcante São João no-lo dá a entender no fim de Seu Evangelho! O texto ressoa como se houvesse mais a falar de obras que de palavras: “Ora, há ainda muitas coisas que Jesus há feito; e se as contássemos em detalhe, creio que o mundo mesmo não seria suficiente para conter os livros que se escreveriam”. Falava ele dos trinta e três anos, ou estava finalizando seu Evangelho por onde começara, isto é, pelos atos eternos do Verbo?
Mas tudo isso não torna mais surpreendente, na verdade, que a Santa Virgem se haja permitido essa demonstração de Sua dor, essa demonstração exterior e quase feita em tom de repreensão? Há aqui, com efeito, algo de muito misterioso. Depois do livro de Jó nós sabemos qual audácia nos prantos, qual aparência inconveniente de familiaridade e de amor, Deus permite a Seus servos entregarem-se. Ele parece mesmo experimentar prazer e encontrar adoração nessas expressões francas que brotam das últimas profundezas da natureza que Ele mesmo há formado. É a consolação do afligido, quando ele pensa em Deus. Mas nada disso se poderia aplicar à Maria. Suas palavras de mágoa teriam sido um ato heróico de humildade, pelo qual Ela exprimia a dor de José se unindo a este? Poderia ser isso. Um tal ato seria digno de Maria; mas há uma veracidade tão grande nas palavras do Evangelho que nós não gostamos de diminuir o sentido delas através de interpretações tais como essa, a menos que sejamos forçados por uma necessidade evidente. Não conhecemos mais que algumas palavras da Santa Virgem. E desejaríamos que essas palavras encerrassem alguma explicação sobre si mesmas. Teriam essas palavras destinado-se simplesmente a nos fazer compreender o sofrimento extremo da terceira dor, sem implicarem para Maria em nenhuma necessidade ou satisfação? Encontramos no Evangelho alguns exemplos em apoio dessa suposição. Assim, quando Nosso Senhor reza e uma voz vem do céu, Ele dizia aos Apóstolos que era por eles que Ele pedira ao Seu Pai a fim de O glorificar. Mas essa interpretação apresenta a mesma dificuldade da última. Seguramente, havia humildade nas palavras da Santa Virgem; e Ela estava unindo a grande, mas bem inferior, dor de São José à Sua. As palavras que Ela pronuncia nos revelam, é verdade, a grandeza de Sua aflição, mas isso por sua própria veracidade e em sua aceitação literal. Foi o excesso de Sua angústia que Lhe arrancou essas maravilhosas palavras, não numa exaltação sentimental repentina, mas sim numa perfeita tranqüilidade e numa posse de Si jamais interrompida. Não havia aí nenhuma imperfeição. A idéia de imperfeição não poderia se apresentar senão junto com a idéia de desproporção. Se nos queixamos é porque somos fracos. Nossa dor é fora de proporção como nossa força e, assim, sem ousarmos nos revoltar, nós preferimos uma queixa, e nossa queixa vem duma imperfeição que não é culpável. Os Santos sofriam e não se queixavam, porque sua força interior era proporcionada à sua dor, e seu silêncio era uma perfeição. Mas há ainda um degrau mais elevado. A palavra, na aflição da criatura, é seu recurso necessário para com o Criador. A queixa dirigida às criaturas é uma queixa; mas a queixa dirigida a Deus é uma adoração. As dores dos Santos nunca eram estendidas a um ponto que já não pudessem agüentar; mas supomos que isso não tenha sido assim com Maria nos sofrimentos dessa Sua terceira dor. Estes ultrapassaram não apenas o poder, mas até os direitos do silêncio. Entranharam-se na natureza de Maria até os últimos limites de Sua capacidade de sofrer, por mais sublime e venerável que fosse essa natureza. Forçaram-nA a fazer o que era proporcional à sua violência, ou seja, a buscar o último refúgio da criatura: abrir inteiramente o coração ao Criador. A perfeição de Nosso Senhor, em Sua natureza humana, atingiu seu ponto mais alto numa palavra. Seu silêncio era, sem dúvida, uma adorável perfeição, mas houve ainda mais sublimidade naquele grito que escapou de Seus lábios: ‘Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonastes?’ Foi então que a Paixão atingiu os derradeiros limites de Sua humanidade. É assim também que nossa querida Mãe teve Sua Paixão no fim da infância de Jesus, e depois Sua Compaixão por ocasião da Paixão de Nosso Senhor, no fim de Seu ministério público. As trevas da terceira dor foram o Getsêmani; a perda de Jesus foi a crucificação da alma da Santa Virgem; e a queixa de Maria foi Seu grito sobre a cruz, quando o tormento desta chegava ao fim. Acontecia, então, com Maria, o que, mais tarde, deveria acontecer com Jesus.
Há ainda, na terceira dor, uma coisa que nos espanta, como concordando-se pouco com o que sabemos sobre a Santa Virgem: é que Ela ousa questionar Nosso Senhor sobre as razões da conduta dEste. Em meio a Seu amor por Jesus, o pensamento dominante no espírito da Santa Virgem, a lembrança que jamais adormecia nEla, o fato que era Sua adoração, era a divindade de Jesus. É a essa, com efeito, que se devia a grandeza do amor de Maria. Parece muito provável que Nosso Senhor já tivesse manifestado Sua natureza divina à Maria; mas, em todo caso, a Santa Virgem via sem cessar, pela fé, a divindade de Jesus. Era esse o aspecto proeminente que Ela contemplava sem cessar nEle. E, portanto, parece que seria impossível que Ela O questionasse. Sua humildade e Sua inteligência de quem era Ele o impossibilitavam. Ela tinha, é verdade, o feito uma vez, imediatamente antes de consentir na Encarnação; mas, então, era a um Anjo que Ela endereçava Sua questão, não a Deus; agora, a situação era outra. Por que, pois, Ela parece pedir a Jesus, e isso em público, que se explicasse e justificasse o que Ele havia feito? Essas palavras de Maria, contadas pelo Evangelho, não tem nada de semelhante em outra parte. Elas estão à parte, e como que em relevo, chamando a atenção, e, todavia, cheias de mistério. O espírito [isto é, a inteligência] de Maria não estava perturbado pelas trevas interiores de Sua alma; ele jamais foi perturbado por estas; o termo ‘perturbado’ não é, aqui, um termo conveniente. Por outro lado, as trevas dissiparam-se assim que Maria reencontrou Jesus. Mas isso também não quer dizer que foram os transportes de alegria, que nesse momento penetravam todas as partes da alma de Maria, que A fizeram falar sem nem se dar conta do que dizia, como Pedro sobre o Tabor falando de montar três tendas. Nem a alegria nem a aflição poderiam jamais fazer oscilar a balança da tranqüilidade de Maria. Jamais houve um conflito nEla; a luta teria profanado Seu Coração Imaculado. E também não seria exato pensar que Ela tivesse necessidade de saber o que inquiria. Sua ciência era tão vasta que Ela já não tinha desejo de aumentá-la – pelo menos enquanto ciência simplesmente, e não acompanhamento beatífico de um amor que aumentava sem cessar. A ciência de Maria era tal qual convinha à Sua excelência como Mãe de Deus. Ela sabia não apenas tudo o que Lhe era devido, não somente tudo o que Lhe era conveniente, mas também tudo o que pudesse engrandecer Suas perfeições ao limite de uma criatura. Sim, porque cada coisa em Maria tinha seus limites. Cada coisa nEla era imensa, mas limitada. Sua beleza tinha limites. Ela permanecia uma criatura; assim, Sua ciência era perfeita e não tinha outra imperfeição a não ser aquela que é inevitável num ser criado. Só Deus é ilimitado, só Deus é onisciente, só Deus é a perfeição absoluta, independente e intrínseca. Por que, então, Maria questionaria assim a Jesus? É preciso que ousemos respeitosamente fazer uma conjectura. Maria agia sempre por um impulso do Espírito Santo, por uma atração de Jesus mesmo, e por uma vontade que Ela lia no Coração mesmo de Jesus. Maria acabava também de ser elevada a uma nova altura de santidade; havia sido atirada para mais perto de Deus. O tempo da coragem [‘hardiesse’: audácia] segue as grandes graças, assim como o tempo das grandes graças segue-se às grandes provas. A piedade adora familiarmente, quando está em contato atual com Deus. Vemos isso nos Santos; mas, que será um fenômeno análogo na santidade de Maria? Era Jesus que convidava Sua Mãe a questioná-lO, a fazer valer Seus direitos e Sua autoridade sobre Ele, e tudo isso em público, diante dos Doutores. Assim Ele queria proclamar solenemente que Ela era Sua Mãe e que Ele queria honrá-lA diante de todos, embora os que A escutaram não tenham entendido tudo o que implicava essa proclamação real. Tal como se concedia uma graça imensa a São José, para tornar sua humildade capaz de governar a Seu Deus e Lhe dar ordens, assim concedia-se agora uma graça imensa à Maria para que Ela fizesse valer Seus direitos sobre Jesus. Mas Ela o fez com a mesma calma e a mesma simplicidade que tinham presidido a Seu consentimento à Encarnação; e, nesse momento agora, Ela estava posta sobre uma montanha mais elevada ainda [que no momento da Encarnação], a qual servia de pedestal a essa graça maravilhosa. A glória da obediência, o triunfo da humildade, a magnificência da adoração – tudo isso estava contido naquele questionamento ousado da Santa Mãe.
Precisamos também mencionar, como uma particularidade dessa terceira dor, que ela foi um dos principais sofrimentos de Nosso Senhor, e, pode ser mesmo, mais até que seu principal sofrimento. [Il nous faut aussi mentionner, comme une particularité de cette troisième douleur, qu’elle fut une des principales souffrances de Notre-Seigneur, et peut-être même plus que sa principale souffrance.] Havia, no século XVII, uma religiosa da Ordem da Visitação, em Turim, que vivia num estado de união a mais perfeita com Nosso Senhor. Seu nome era Joana Benigna Gojos. Ela tinha uma devoção especial pela Sagrada Humanidade de Jesus Cristo, e a forma particular de sua espiritualidade consistia na oferenda de todas as suas ações ao Pai Eterno, em união com aquelas de Jesus. Tinha lhe sido revelado que essa era a devoção particular de Maria e de José sobre a terra, “amorosa invenção” – dizia ela, pela qual eles tinham ganhado graças imensas. Ao repassar em seu espírito os variados mistérios dos trinta e três anos da vida de Nosso Senhor, ela se sentia levada, duma maneira sobrenatural, a unir sua alma com os mistérios desses três dias de ausência que agora comentamos. Isso tornou-se sua ocupação interior, até que, enfim, aprouve a Nosso Senhor revelar-lhe, sobre esse assunto, alguns segredos de Seu Sagrado Coração. Ele lhe disse que, na terceira dor de Maria, Ele havia sofrido mais do que em todas as outras penas de Sua vida. Pois, na aflição de Sua Mãe, aflição causada pela separação, Ele via com antecedência a dor que devia ser para Ela o martírio sobre o Calvário e, tanto aqui como lá, o corpo e a alma de Maria teriam sido separados pela agonia da dor, se não fossem sustentados pela Onipotência Divina. Assim, durante os três dias de ausência, Seu amor todo-poderoso havia mantido Maria e José unidos à Sua Pessoa, e a violência da dor deles havia sido tal que, sem Seu socorro secreto, nem um nem outro teria podido continuar a viver. Ele acrescentou ainda que a dor de Maria e José fôra realmente incompreensível, e que ninguém, a não ser Ele mesmo, a podia compreender. Meditemos isso sem ousar nada ajuntar.
Os autores da teologia mística, pelos quais temos nos conduzido nessa terceira dor, não devem, todavia, nos fazer omitir algumas outras considerações que se aproximam mais de nosso próprio nível. Não há necessidade de buscar uma gradação nas coisas divinas. [Il n’est pas besoin de chercher une gradation dans les choses divines.] As coisas pequenas não se tornam menores ao lado das grandes, desde que a presença de Deus se veja tanto numas quanto noutras. É por isso que temos o direito de apontar esta particularidade dos três dias de ausência. Se podemos falar assim, a dor que Maria sofreu então A tornou mais capaz de compreender quanto são miseráveis aqueles que caíram no pecado.
A Santa Virgem devia ser a Mãe de Misericórdia e o Refúgio dos Pecadores. Ela devia amá-los tanto quanto uma mãe jamais há amado seu filhinho inocente. Devia ser um santuário de tal modo fortificado pelo amor, que a Onipotência Divina mesma dificilmente Lhe pudesse arrancar das mãos as vítimas à Sua Justiça. E para Maria não ter uma visão fantástica [maravilhosa/merveilleuse] do pecado, Ela precisava experimentar o que sentem aqueles que desgraçadamente pecaram. Mas como isso poderia ocorrer? Que é que o pecado tinha a ver com Ela? Era preciso, porém, retirar-Lhe Seu Filho, para poder dar-Lhe uma multidão de outros filhos. A sombra do pecado [do mundo] havia caído desde o começo sobre a alegria de Seu Coração, não poupando nem Aquele que era Sua alegria viva e que Ela via se mover em torno dEla na casa de Nazaré, nem esta alegria interior que era Sua vida. De resto, em Maria, o pecado não tinha parte alguma; ele jamais passara por Ela. O decreto pelo qual ele havia sido previsto não atingia a Ela; Ela havia sido objeto de um decreto anterior. Ela via bem a malícia do pecado, quando Ela olhava para Jesus e sabia que o pecado é que causaria a morte dEle. Mas, como poderia Ela conhecer os sentimentos dos pobres pecadores, mesmo conservando sempre Sua alma pura? O meio para tanto foi essa Sua terceira dor. O pecado é a perda de Jesus. E isso se tornava, a partir de agora, uma miséria que Ela conhecia bem. O pecado é uma perda de Jesus anteriormente possuído. Maria tinha também essa experiência: aliás, era aí que estava o aguilhão da terceira dor. A incerteza de que Ela estava presa, enquanto as trevas sobrenaturais pairavam sobre Sua alma, essa incerteza, que A fez duvidar se Sua própria indignidade não A teria afastado de Jesus, A fez provar alguma coisa que, ao menos, se aproxima do terror daquele de quem a graça é retirada e que, por sua própria culpa, perdeu Nosso Senhor. Maria conheceu, então, pelo menos a natureza dessa dor. Mas, perder Jesus após havê-lO uma vez possuído, e não sentir essa perda, e mesmo ser-lhe completamente indiferente, reconhecê-la e não buscar nenhuma ajuda – eis aí, após a provação de Maria, o que revela, da maneira mais lamentável, a desgraça tão grande, a privação tão cruel, que afeta o miserável pecador. Doravante, se Maria medir o pecado pelo Calvário, Ela medirá, no entanto, Seu amor aos pecadores pela dor dos três dias de ausência; e não temos já dito que essa dor foi a maior de todas as padecidas por Maria?
Mas há ainda outra particularidade nessa dor. Ela fez o que jamais se poderia esperar; ela fez eclodir no Coração de Maria um novo amor por Jesus, o amor daquilo que foi perdido e chorado, e depois se reencontrou. A afeição não tem uma consagração maior que essa; é ela uma flor que cresce com naturalidade sobre as dores humanas, mas da qual todas as variedades são duma beleza eminente. Eis uma mãe debruçada sobre a cabeceira de seu menino que está morrendo; seu coração está ao ponto de desfalecer. Pudesse ela deter a mão de Deus, ela não o faria, tanta é sua conformidade entre sua vontade e aquela do alto. Mas seu coração! Oh! A submissão da vontade faz cair sobre seu coração, violentamente, a aflição toda inteira. A flor fenece; ela a vê, sob seus olhos, murchar de hora em hora. A ciência humana declara que já não há nada a esperar, e melhor lhe valeria declarar que carece de confiança em si própria. É inútil falar a uma mãe da perda de toda esperança; é essa uma linguagem que ela não entende. A dor da morte está em sua alma, mas ela espera sempre. Ela fez seu sacrifício a Deus, mas ela espera sempre. Ninguém mais espera, mas ela espera sempre. É a esperança, unicamente, que impede, com toda a justiça, o seu coração de desfalecer. Mas faz-se uma mudança na face do menino; parece que a vida esteja perto de abandoná-lo. A mãe quereria quase revogar seu sacrifício, mas ela não o faz. Ela é filha de Deus, tanto quanto é mãe de seu menino. Ela o vê recair em seguida, seus olhos se cerrarem, e seu fraco peso o crava, todavia, mais profundamente no travesseiro. Será a morte? É a morte para o coração da mãe; é a esperança se retirando, e o mundo desabando sob seus pés; não é mais o solo que a sustenta, é o braço do Pai Celeste. Mas, para o menino, ainda não é a morte; é o sono, é a esperança. Ainda alguns dias e, fraco, pálido, silencioso, o menino está deitado sobre os joelhos de sua mãe, sorrindo delicadamente ao olhá-la; ele poderia falar, mas não lhe é permitido. O silêncio de seu sorriso é uma música tão deliciosa para o coração da mãe! Mas, amará ela ao seu menino como o amava antes? Oh! Não! É um novo amor. Ela é agora duas vezes sua mãe, porque seu Pai Celeste duas vezes lhe há dado. Alguns de nós foram duas vezes os meninos de suas mães, e Maria deve ser agora duas vezes uma mãe para eles, uma vez que sua mãe terrestre já se foi. Pobre mãe terrestre! Quem és tu, portanto, comparada a Maria? Quem é teu menino, comparado a Jesus? Assim, dispomos de meios para compreender o novo amor que experimenta essa bendita Mãe pelo Filho que o Pai Eterno duas vezes Lhe há dado. Endireitamos nossas pequenas escalas, estabelecemos comparações com nossos amores mais doces, mas não conseguimos mostrar tudo. Em verdade, se Maria teve cruzes numerosas em Sua terceira dor, Ela teve também numerosas coroas, das quais a mais preciosa há sido uma nova maneira de amar a Jesus.
Tais foram as particularidades dos três dias de ausência. Possa nossa querida Mãe nos perdoar o termos tentado sondar as profundezas dessa dor que Nosso Senhor mesmo há declarado incomensuráveis! Maria há prometido àqueles que “lançassem luzes sobre Ela possuiriam a vida eterna”. Os esforços que temos feito com amor não ficarão, portanto, inteiramente sem recompensa. Mas é preciso que passemos agora das particularidades desse mistério às disposições com as quais Maria o sofreu. A grande disposição que permaneceu em Maria durante Sua terceira dor consistiu numa mistura de desejo ardente e desprendimento que nos é impossível compreender. Uma semelhante mistura desses dois sentimentos não poderia existir mais que uma vez no mundo, e em uma só criatura, a Mãe escolhida de Deus. Maria desejava ardentemente reencontrar a Jesus, porque Ela era Sua Mãe. Ela desejava Sua presença sensível por causa de Sua beleza visível. [Elle désirait sa présence sensible à cause de sa beauté visible.] Esse desejo era tanto mais ardente em Maria, quanto Seus pensamentos não estavam habituados a separar o Eterno do Menino. Por que Ela poria um limite à Sua devoção, ou tornaria Sua adoração menos simples, em desunindo no pensamento o que Deus havia unido, e unido pelos laços tão serrados da união hipostática? Mas, embora desejando com um tal ardor, Maria procedia com uma perfeita conformidade à Vontade de Deus. Ela praticava a difícil virtude do desapego no grau mais heróico que se há conhecido, e isso de modo algum por frieza, mas, antes, com o Coração destroçado. Não que o desejo de Maria fosse acompanhado de algum desapego para com a Divindade de Jesus. O desapego tem por objeto as criaturas, e quando se refere aos dons criados de Deus é uma virtude ainda mais elevada. Mas o desapego que tem a Deus por objeto é um horror que não pertence mais do que à impenitência e ao inferno. Depois de Maria e de José, e pode ser que também depois de São João Batista, São Pedro ama provavelmente a Nosso Senhor mais que qualquer outra criatura, mais mesmo que os ardentes Serafins, e, depois dele, São João Evangelista, o discípulo que Jesus amava. Mas, no amor dos Apóstolos, todo profundo, todo ardente e todo glorioso que era, havia ainda alguma coisa que não era inteiramente perfeita. Ele se unia a algum interesse terrestre. Era-lhes, pois, “útil que o Senhor se fosse”. Era necessário, para a completa santificação deles, que a preciosa presença sensível do Senhor lhes fosse tirada. Ora, as operações da graça purificam as imperfeições não apenas as afastando da alma, mas as substituindo por algum dom importante ou pela presença particular de Deus. Esse dom que elas deixam na alma e que a purifica não é inseparável da purificação mesma, embora as duas coisas andem sempre juntas nos Santos. A Santa Virgem, porém, nada tinha a purificar. Ela não tinha para com Jesus uma ternura puramente natural que não fosse sobejamente absorvida pela ternura sobrenatural e santificada por esta. Nada de indigno, nada de terrestre em Seu amor. Mas a subtração da presença sensível de Jesus proporcionou a Maria, pode ser, o mesmo dom que aos Apóstolos, sem que esse dom tivesse para Ela a virtude purificante da qual Ela não tinha necessidade; e é possível que, em proporção de Sua excelência, Maria tenha mesmo recebido esse dom numa proporção mais elevada que os Apóstolos. Tal qual nessa terceira dor Maria tinha encontrado um novo amor por Jesus, a graça dessa dor podia também elevar mais alto todo o Seu amor por Nosso Senhor, tornando esse amor ainda mais digno, embora infinitamente distante, dos méritos de Seu objeto. Ora, é assim que se passa com um grande número de graças na Santa Virgem. Elas avançam através do deserto desconhecido do infinito. Elas nunca podem atingir a outra extremidade, pois isso é impossível. Entretanto, elas A levam para mais perto de Deus.
Temos já assinalado uma outra das disposições da Santa Virgem, a saber: Sua extrema humildade no Templo. Com efeito, cada momento dos três dias de ausência fez nascer, em Maria, os atos de humildade mais impressionantes. Quando Sua alma se viu cercada duma noite profunda, e Sua tranqüilidade entre trevas tão próprias a perturbá-la, o que impediu que isso ocorresse foi Sua grande humildade. O temor de que Jesus A houvesse deixado por causa da indignidade dEla mesma, não era senão o fruto desse abaixamento que, em exagerando os próprios defeitos, se aproxima vantajosamente da verdade divina. Mas a humildade de Maria foi provada e triunfante sobretudo quando Ela proclama em público Seus direitos sobre Jesus, aos pés do qual, todavia, Ela quereria prostrar-se para O adorar como a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade – o que Ela fez, nos diz Maria de Ágreda, assim que chegaram fora das portas de Jerusalém, longe das vistas dos homens. Seu silêncio quando Jesus Lhe dá Sua resposta, que não era na verdade uma resposta, mas sim parecia uma réplica estranha na boca de um Menino de doze anos, o silêncio de Maria, como dizíamos, era a continuação dessa mesma maravilhosa humildade. Tudo isso está inteiramente de acordo com o que sabemos sobre nossa querida Mãe. Isso nós o entendemos, isso nós o reconhecemos. É a imagem que nos é familiar; e respiramos aqui mais à vontade que quando gravitávamos com esforço nas alturas elevadas que não se destinam a criaturas tais como nós. Maria nos impressiona sempre. Há para nós doces surpresas em Suas graças as mais comuns; a beleza destas é, a um só tempo, tão heróica e tão agradável! Essa beleza está bem longe de nós, mas não nos parece tão afastada. Ela nos atrai. E parece que podemos atingi-la. Ao menos, ela nos atira após si e nos mostra também a melhor rota sobre a qual podemos marchar. Não é estranho que, encontrando Deus, nos tornemos mais humildes, mesmo quando, por isso mesmo, nos sintamos felizes e elevados ao mais alto? A humildade é o perfume de Deus; é o último perfume a exalar dAquele que não pode se humilhar, porque é Deus. É o odor, a marca, o sinal, que o Criador deixa na criatura, quando a apertou durante um momento. É preciso que a humildade seja uma lei do mundo da graça, pois a encontramos em Maria, nos Santos, e, duma maneira muito fraca e quase imperceptível, em nós mesmos. De Deus mesmo é ela inseparável. Por ela, descobrimos no Antigo Testamento o Altíssimo, Aquele que é incomunicável. Por ela, descobrimos Jesus no Novo Testamento. A glória da humildade está na natureza humana de Nosso Senhor, sobre a qual a pressão da Natureza Divina permanece sempre. É esse inevitável perfume que Deus deixa que nos impede de nos afastarmos de Seus passos. É “a mirra, o aloés e a canela de Suas mansões de marfim”. Maria a reencontrara agora, e há então repousado no mais baixo vale da humildade – e o mais florido – e o perfume de Deus há perfumado Suas vestimentas, Suas “vestimentas enriquecidas de ouro, semelhantes a diversos ornamentos” (Sl 44).
Outra disposição da Santa Virgem em Sua terceira dor foi Sua resignação, a qual simplificava, por assim dizer, por um sofrimento único, as aflições variadas e numerosas que Ela se encontrava padecendo. Não há absolutamente nenhuma disposição da alma, nenhum dom, nenhuma graça, para se suportar o sofrimento, que possam ser comparadas à simplicidade. A simplicidade ameniza a dureza do coração e dos olhos. Ela não se espanta; não se precipita jamais; não se deixa distrair por coisas variadas. Ela é acompanhada por uma espécie de discrição, da qual nem se dá conta, mas que é muito útil em tempos de aflição. O esquecimento de nós mesmos é a lição mais difícil e mais necessária que temos de aprender em tempos de pena, e, para tudo isso, a simplicidade nos ensina o caminho. Por outro lado, a simplicidade fortifica a nossa fé, mantendo nossos olhares docemente fixados em Deus, e isso quase sem esforço. É da natureza da simplicidade o ser muito esperta para se deixar, de improviso, cair como presa dessas tentações sutis que nos assaltam na aflição, e que, sob pretexto de prudência ou de um bem maior, nos afastariam artificiosamente de Deus para nos fazer repousar nas criaturas. A simplicidade é envolvida por um círculo de luz, mesmo nas trevas, como a lua que brilha através de um nevoeiro. Se ela não tiver, então, luz suficiente para guiar a marcha, tê-la-á, pelo menos, para garantir-nos contra as surpresas. Tal foi a simplicidade de nossa querida Mãe. E essa simplicidade A fez lutar contra uma assustadora complicação de dores. Um sofrimento cruel é muito próprio para nos confundir e extraviar. A dor parece sempre dividir nossa natureza em numerosas frações, cada uma com sua própria dor. Assim, em Maria, o sofrimento corporal era devido à aflição interior tanto quanto à fadiga, à fome e à falta de repouso. Sentar-se e morrer ajudaria, se isso fosse permitido. Mas era preciso trabalhar, pensar, projetar, considerar, se mover, e a atividade era quase insuportável numa conjuntura tal qual essa em que Ela se encontrava: e era esse o momento que Deus escolhera para sobrecarregá-lA, duma maneira sobrenatural, de provas interiores. Ela se encontrou em trevas. Uma mudança repentina fez-se sentir na vida de Sua alma. Teve de combater não contra um só mal, mas contra um grande número de males; não contra um mal que Ela soubesse onde estava e como combater, mas justamente contra as incertezas, as conjecturas, as suspeitas, uma cruel perplexidade, uma ignorância desacostumada, e trevas que A desconcertavam, que vinham ao encontro dos Seus pensamentos, e A esmagavam. Maria sofria tudo isso a um só tempo. E, no entanto, Sua vontade não cessa de ser mais calma que um lago durante o verão. Como o lago repousa no seio do verde vale, assim Sua vontade repousa no seio de Deus. Jamais foi agitada. Nem o primeiro movimento, nem o sopro irrefletido do amor-próprio, hão enrugado jamais, mesmo que duma maneira imperceptível, a superfície dourada de suas águas. Essa calma era devido à simplicidade. Durante os sessenta e três anos da vida de Maria, essa virtude realizou muitas maravilhas; mas, à parte o momento da Encarnação, nada houve que pudesse ser comparado ao amoroso silêncio dos três dias de ausência. Parecia, mas sem dúvida isso não podia ser mais que uma aparência, que a perda do Filho A tivesse conduzido a se repousar mais profundamente no seio do Pai.
(Ao desejo de agradar o mundo se aplica perfeitamente o que nesse parágrafo se diz...) |
Embora essa terceira dor esteja situada, em grande parte, sobre alturas que nos são inacessíveis, ela é, pelo menos, tão cheia de lições para nós, que é difícil fazer uma escolha entre os ensinamentos que ela nos dá. Ela nos ensina, por exemplo, que a perda de Jesus, embora de curta duração, é o maior de todos os males. Tal perda foi intolerável até para a Santa Virgem, e nós não temos menos necessidade de Jesus do que Ela, pois, afinal, Ele é absolutamente necessário a todas as criaturas; somente que, para nós, é duma necessidade ainda mais premente, em razão de nossa fraqueza e nossos pecados. A grandeza da aflição de Maria nessa dor é, para nós, uma medida visível da grandeza do mal que é essa perda. E, no entanto, quão pouco sentimos esse mal! Quanta alegria vemos mesmo nos homens que perderam Jesus, ignorando quase essa perda, mas que continuariam indiferentes mesmo que a conhecessem bem! Nós pensávamos que a perda de Jesus era um mal tão terrível que nada o poderia piorar, mas, não compreender a grandeza dessa perda é um sinal de miséria ainda maior. É uma triste coisa, com certeza, que a voz do mundo seja mais agradável aos nossos ouvidos do que a voz de Nosso Senhor. Se o mundo é tão miserável, tão detestável, é justamente porque ele não possui a Jesus. Jesus não pertence ao mundo. Jesus se recusou a orar pelo mundo. Nosso amor pelo mundo é uma verdadeira declaração de guerra contra Jesus; assim Nosso Senhor mesmo há declarado. É isso que faz desfalecer nossos corações ao olharmos para o mundo e considerarmos que ele é estranho a Jesus. É, para nós, como a vista desolada de árvores estéreis ou de tristes pântanos. É uma região que nenhum sol pode dourar, lúgubre mesmo durante o dia mais brilhante, e mais hedionda ainda quando o sol sobre ela brilha. O mundo é assim, por não possuir a Jesus. E nós também somos assim, na mesma proporção em que somos amigos do mundo ou em que fizemos as pazes com ele. Jesus e o mundo são incompatíveis. Os prazeres, a hilaridade, a moda, o luxo, ousaremos nós, mesmo em pensamento, supor essas coisas no Coração de Jesus? Sorriria Ele ao ouvir as palavras mundanas? Desejaria Ele agradar aos corações que O cercassem, embora estes não se dessem o menor trabalho por agradar a Seu Pai? Buscaria Ele se tornar popular na sociedade, mantendo-Se nas boas graças daqueles cujos interesses nada têm a ver com o único interesse de Seu Coração? Deixaria Ele os Seus princípios de lado pelo medo de causar algum desgosto aos outros e faltar, assim, com essa polidez das relações sociais que toma o lugar da caridade? Oh! O pecado é um mal; o excesso de prazer é um mal; dar a Deus o segundo lugar é um mal; adorar o rico é um mal; ocultar os sentimentos cristãos para acostumar-se às frivolidades mundanas e às conversações levianas e pouco caridosas, é um mal. Mas, pelo menos, ali estão os maus que não usam máscara. Sabemos, então, portanto, o que fazemos. Renunciamos a Jesus com pleno conhecimento do nosso sacrifício. Optamos por um partido, escolhemos nosso lado com conhecimento de causa. O desejo de agradar! Eis o perigo que ele é para uma pessoa piedosa. A idéia, por si mesma, já representa uma separação de Cristo. Ao que, com efeito, desejamos agradar? Ao mundo, que é inimigo de Jesus. A quem desejamos agradar? Àqueles que não estão preocupados em agradar a Deus, e nos quais Jesus também não põe a Sua complacência. No que desejamos agradar? Nas preferências, nas conversações, nos empreendimentos que não têm nada haver com Deus, que não têm o perfume de Jesus Cristo, que não têm tendências religiosas. Quando desejamos agradar? No tempo em que fazemos menos por Jesus Cristo, pois a prece, a fé, a esperança, a caridade e uma dor permanente pelo pecado seriam inoportunas. Onde desejamos agradar? Nos lugares onde Deus parece mais distante, onde cada circunstância reflete sobre nós a imagem do mundo como a luz dum lustre. Entretanto, nós não vemos mal algum. Queremos que tudo seja como é preciso: polido, inofensivo – simplesmente, que Deus seja mantido discretamente de fora. Deus disse que Ele e Mamon não podem morar juntos. E, até certo ponto, nós forçamos Deus a morar com um ídolo. Queremos que Ele, afinal, mantenha-se em paz com o mundo, que Ele aprenda a se mover à margem deste, em Sua própria esfera, sem rivalidade, sem disputas. Coisa terrível! O inferno não se vislumbra já nessa simples tentativa? E, no entanto, quão pouco os homens a percebem! É como um miasma malfazejo que se espalha no ar e não afeta mais que os pulmões. Mas as luzes começam a se obscurecer, e depois elas vão se apagando, uma após a outra, e nós ficamos nas trevas, incapazes de escapar, atingidos já pela letargia e sufocação. Em outros termos: os princípios elevados se abaixam pouco a pouco, ou então os reservamos para as grandes ocasiões, tais quais a quaresma ou a companhia de um padre. Depois, começamos a sentir vivamente o enojo que nos causa a conversação daqueles que são cristãos antes de tudo, e declaramos então que eles são indiscretos e, tendo satisfeito assim nossa consciência, os louvamos, todavia, mais que nunca, porque, em meio ao julgamento circunspecto que pronunciamos sobre eles, descartamos o que, neles, nos fazia sentir-mo-nos mal, anestesiando ainda mais o que nossa consciência conserva de inquietude através da vivacidade desses louvores ao que neles ainda nos agrada. Em seguida nos vem o pensamento de que é um dever o estarmos bem com o mundo, e que isso seria mesmo do interesse de Deus. Mas, estar bem com o mundo já é quase ser amigo deste. Então, começam os sintomas de duas vidas distintas em nós. Mas não vemos em nós mesmos esses sintomas. Depois, sentimentos de inquietude nascem em nós, prejudicando o prazer que encontramos em certas pessoas, em certas coisas, em certos livros, em certas conversações. Mas nos reanimamos e nos representamos, duma maneira intelectual, a vantagem que há em ser sempre doce, em nunca ser ofensivo, em estar sempre em bons termos com o mundo. Essa idéia nos consola, e tudo recomeça a nos ir bem, e as bênçãos de Deus, Suas bênçãos espirituais, se evaporam e se afastam de nós, de nossas crianças, de nossos lares, de nossos corações, de tudo o que nos cerca, por degraus, e quase imperceptivelmente. Mas o sol da prosperidade brilha tão luminoso que nós não vemos o nevoeiro produzido pela evaporação que se eleva da terra e se retira para o céu. Pode ser até que a luminosidade desse sol jamais nos tenha favorecido tanto. O desejo de agradar tem propriedades entorpecentes. Somos, assim, envolvidos, sem sequer suspeitar até que ponto o fato nos distancia de Deus. Podemos então até morrer sem conhecer nosso estado: mas o conheceremos após a morte, imediatamente após.
Podemos perder Jesus de três maneiras. Podemos nos separar bruscamente dEle pelo pecado; podemos nos afastar dEle tranqüila e docemente, ao confessar que os atrativos do mundo são melhores que os dEle; e podemos nos retirar de Jesus, lentamente, e por degraus sucessivos, embora sempre olhando para Ele, tal como nos afastamos de um monarca sem voltar-lhe as costas, e isso porque nosso princípio já não é Ele, mas sim o desejo de agradar. Mas, se nos aconteceu de perder Jesus por alguma dessas três maneiras: o pecado, a mundanidade ou o desejo de agradar, e Ele nos revela isso por Sua graça, que devemos então fazer? A terceira dor de Maria nos ensina. Nossa perda deve ser uma dor para nós. Devemos, como Maria, buscar Aquele que nós perdemos. Ele poderá permitir que não O reencontremos imediatamente, e isso é o mais provável, mas devemos tudo deixar para prosseguir nossa busca; é preciso que todas as outras coisas estejam subordinadas a essa; é preciso que elas se dobrem e cedam. Não é preciso que sejamos precipitados em nossa busca: não é preciso correr, basta caminhar; não encontraremos Jesus se corrermos. Não devemos fazer coisas violentas, mesmo contra nós mesmos, embora bem o mereçamos. Esse não é o momento de fazer novas penitências. A perda de Jesus já é uma pena assaz grande, agora que a temos reconhecido. Devemos ser doces, e a dor nos dá a doçura. Nossa busca deve ser uma busca dolorosa tal como aquela de Maria. Devemos buscar a Jesus com lágrimas, e não com gritos; com um coração dilacerado, mas calmo. Devemos buscá-lO no endereço que Lhe convém: em Jerusalém, no Templo, isto é, na Igreja, nos sacramentos e na oração. Ele não está jamais entre os parentes; Ele nunca se esconde nas doçuras inocentes de nossos pacíficos lares – é uma palavra dura, mas a terceira dor a diz. Tais são as condições duma busca eficaz. Foi assim que Maria buscou a Jesus, e assim que Ela O reencontrou. Precisamos ter coragem. Cada coisa pode se curar. A mundanidade mesma, pode ser curada e, no entanto se, entre as doenças, há alguma que seja quase incurável, é esta. Quando mesmo toda nossa vida não tenha sido mais que um desejo de agradar, e esse veneno tenha impregnado cada um de nossos pensamentos, de nossas palavras, de nossas ações, de nossos olhares e de nossas omissões, não deveríamos, por isso, nos desencorajar. Se a mudança de hábito é muito difícil, mudemos então de objeto: coloquemos Jesus no lugar do mundo. Quem jamais conheceu pessoas mais inteiramente de Deus do que algumas almas que antes pertenciam totalmente ao mundo, e que pareciam pertencer-lhe tanto mais quanto agora são todas de Deus?
Entretanto, devemos também, como essa dor nos ensina, nos precaver contra uma tentação que provavelmente nos assaltaria em nossa busca. Perdemos rapidamente o sentimento de nossa culpabilidade quando percebemos que nos tornamos melhores; é uma conseqüência de nossa natureza superficial. Não teremos ido muito longe em nossa busca por Jesus, sem sentirmo-nos dispostos a atribuir Sua perda não tanto à nossa própria falta, quanto a alguma provação misteriosa e sobrenatural que Deus nos tenha enviado, e da qual a chegada foi, por si mesma, um sinal de nossa virtude. Parece-nos que nossos corações, que sentimos arder dolorosamente por Nosso Senhor, não podem ser os mesmos que, algum tempo antes, pareciam poder viver satisfeitos sem Jesus. A mudança de sentimento não foi repentina nem assinalada, portanto não pode ser algo novo. É assim que pensamos. Oh! A verdade é que nossa própria inconstância é tão grande que nós mesmos não o podemos crer, exceto no momento mesmo da mudança e quando o vemos com nossos próprios olhos. Não nos façamos vãs ilusões a respeito de castigos sobrenaturais; eles são raros, e raros sobretudo para pessoas como nós. [Ne nous faisons pas de vaines illusions au sujet des châtiments surnaturels; ils sont rares, et rares surtout pour des personnes telles que nous.] Nós pecamos – isso é tudo. Nosso castigo é ter de buscar Aquele que, antigamente, morava conosco, e o que não nos impede o regresso. Estejamos seguros de que tudo o que nos concerne é muito ordinário. Nós perdemos Jesus, não em meio a místicas trevas da alma, mas pela fraqueza dum coração mundano. Nós O reencontramos, não numa visão, nem numa possante operação interior da graça, mas sim retomando as antigas orações, e freqüentando de novo os sacramentos. É aqui que o espírito maligno engana muitas pessoas. Elas buscam ver Nosso Senhor duma maneira mais marcante do que anteriormente. Assim, elas chegam junto dEle, mas não O reconhecem e passam adiante. E não acontece sempre de os homens recomeçarem suas buscas que falharam. E se essas almas de que falamos o tentassem, todos não vêem que elas teriam então diante de si um deserto onde podem morrer, mas que, seguramente, não atravessarão jamais? Maria teria podido pensar que Sua perda de Jesus era uma provação sobrenatural, e Ela estaria tendo um pensamento justo; mas, entretanto, Ela pensa que essa perda foi por Sua própria culpa e, exatamente por isso, Ela atinge uma verdade muito mais elevada.
É verdade que há, também para nós, uma perda de Jesus que não é inteiramente por nossa culpa, e que é antes uma provação que uma punição. É quando não O perdemos realmente, mas Ele nos vela a Sua face. Chegamos a crer que O perdemos, pois não O vemos mais. Isso nos acontece muitas e muitas vezes na vida espiritual; e, se prestarmos bem atenção, é certo que descobriremos a ação de alguma lei nessas desaparições. Podemos conhecer as circunstâncias em que elas ocorrem, aquelas que regulam sua duração, e aquelas que acompanham o retorno de Jesus a nosso olhar. Pois é preciso que tudo se dê com peso, número e medida, – mais ainda, se isso é possível, no mundo de nossas almas do que no mundo material. Deus tem Sua via com cada um de nós, e é importante que nós a conheçamos no que nos concerne; mas, em todos, Suas vias são um sistema que tem suas leis e seus períodos, e que é tão regular em suas desviações, tão pontual em suas catástrofes, quanto na paz e harmonia de seu movimento. Pode ser que não haja um meio infalível de saber quando a desaparição de Jesus é culpa nossa. Pode ser que nessa questão sempre encontremos, até certo ponto, alguma culpa nossa. Se fosse somente uma provação, se estivéssemos seguros de não ser mais que uma provação, ela deixaria de ser muito eficaz. Mesmo nesse caso, não devemos ser passivos; mesmo então devemos nos afligir, mesmo então devemos buscar. É preciso não esperar que Jesus volte a nós, é preciso que O busquemos e descubramos onde Ele está. Mas, até que O tenhamos achado, não busquemos consolação nem em nossos diretores, nem em nós mesmos, e menos ainda na simpatia das criaturas ou nas consolações da terra. Só Deus é nossa verdadeira consolação. Seria a mais triste das coisas poder experimentar então outra consolação que a de reencontrá-lO. Eis o que a terceira dor nos ensina; pois ela, em sua superfície, reflete as relações da alma com seu Senhor e Salvador, sem que suas profundezas causem confusão.
Há uma espécie de egoísmo nos sentimentos com os quais nos afastamos de um leito de morte quando a obra terrível está terminada. Experimentamos um sentimento de calma e de repouso que, no primeiro momento, parece-se quase com uma alegria pessoal; mas isso não devia ser assim, por mais que seja difícil à nossa natureza evitá-lo. Essa angústia de ver uma pessoa querida sofrer horrivelmente, de a ver lutar contra a sombria inimiga, e de sermos incapazes de a ajudar, a não ser por preces que estaríamos muito distraídos para fazer convenientemente, se não fosse que Deus aceita como prece os votos caridosos do afligido. Tantas coisas dependem dessa luta, tantos interesses estão pendentes da balança; se já faz ao mal ao coração só o pensar nisso, mais mal ainda faz o ver o prato ora subir, ora descer, nessa hora terrível. Agora, tudo está acabado; tão longe quanto nossa vista pode se estender, bem acabado, alegremente acabado, bem por toda a eternidade. O corpo daquele que amamos já não pode sofrer, e sua alma foi recebida. É como se não houvesse nada mais para afligi-lo nem para fatigá-lo, nem mais nada para atormentar nosso amor por ele. É uma bela mudança para ele, uma mudança consoladora para nós. Nossos corações estão cheios e transbordantes: é a dilatação do verdadeiro repouso. Tais são nossos sentimentos quando vemos Jesus e Maria sobre a soleira da casa de Nazaré, reunidos de novo, os dois Corações não fazendo mais do que um, sobre as margens deste vasto e tranqüilo mar de dezoito anos, durante os quais Eles não se separaram mais. O Coração de Maria está sempre ferido, e não pode deixar de o estar; mas ele bate num outro Coração que não A deixará mais durante anos, e há em Sua dor essa luz calma e pensativa de um belo crepúsculo, em lugar das trevas, da corrida errante e da fadiga dos três dias de ausência. Maria reencontrou Jesus. É uma paz tão boa para nós quanto para Ela. Em verdade, Ela é digna de inveja agora, por causa de Suas alegrias, mesmo em meio à multidão de Suas dores.
(Próximo capítulo a ser traduzido: “Quarta Dor: O encontro com Jesus carregando Sua Cruz”)