Por um cartuxo anônimo
Intimidade com Deus
É ao próprio Deus que o homem se deve unir para realizar o seu destino. Se pudermos atingir o ponto mais alto do ser e a sua causa primeira, vamos porventura perder tempo com desejos mesquinhos? Para atingirmos a nossa pátria é necessário perdermo-nos no bem supremo: dirijamos desde já para Ele todas as nossas ações, e que a nossa alma respire finalmente o seu elemento natural. À medida que reconhecemos a vontade de Deus em todas as coisas, e que acostumamos a nossa vontade a consentir nela, vemos diminuir em nós a necessidade das coisas criadas, até que delas nos libertamos definitivamente. Uma alegria essencial, que reside no fundo da alma, tira todo o atrativo aos bens acidentais.
Porque a verdade, a luz divina, dá a cada objeto o seu verdadeiro valor. Uma vez encontrado o seu centro divino, a alma deixa de oscilar entre o desejo e o temor: ela conhece agora o puro equilíbrio do amor. Sabe que a união com Deus é inseparável da calma e dum profundo silêncio da vontade própria; por isso tem o cuidado de evitar tanto a solicitude como a negligência.
Non in commotione Dominus (III Reis, XIX, 11).
Porque a verdade, a luz divina, dá a cada objeto o seu verdadeiro valor. Uma vez encontrado o seu centro divino, a alma deixa de oscilar entre o desejo e o temor: ela conhece agora o puro equilíbrio do amor. Sabe que a união com Deus é inseparável da calma e dum profundo silêncio da vontade própria; por isso tem o cuidado de evitar tanto a solicitude como a negligência.
Non in commotione Dominus (III Reis, XIX, 11).
A verdade, aceita primeiro com humildade e simplicidade pela fé, e vivida na paciência quotidiana, torna-se agora evidente: a alma pode saboreá-la sem intermediários, na experiência do amor. Gustate et videte quoniam suavis est Dominus. - «Provai e vede como o Senhor é doce!» (Salmo XXXIII, 9).
A submissão ao que Deus nos ordena eleva-nos continuamente para Ele: a humildade exalta-nos e permite-nos olhar livremente, do alto das perspectivas da graça, o pequeno mundo dos interesses humanos. Aqui o coração abre-se ao amor de todos os homens e gostaria de derramar sobre eles rios de água viva de que está inundado: católico no sentido pleno da palavra, não tem desprezo por nenhuma alma nem põe de lado nenhuma miséria. A preocupação de agradar sempre ao Pai celeste dá um caráter sobrenatural a tudo o que o homem faz neste estado de união, até mesmo nos mínimos pormenores do seu comportamento. E Deus sente-se mais glorificado, e compraz-Se e reconhece-Se nele muito mais do que em toda a Sua criação, cujas maravilhas proclamam, contudo, a Sua sabedoria e o Seu poder. Uma confiança ilimitada, absoluta, assegura à alma interior a sua união com o Pai: ela sabe que nenhuma potência do mundo ou do inferno tem o poder de a abalar. Nada do que foi criado tem poder sobre uma vontade sinceramente abandonada, pois o amor apodera-se dela para estabelecê-la para sempre em Deus.
A união espiritual confere ao homem a sua mais alta dignidade: dar um filho ao Pai na própria Pessoa do Filho. Com esta filiação divina a alma recebe a liberdade - Ubi Spiritus, ibi libertas (II Cor., III, 12); recebe poder que vai exercer sobre o coração do Pai e em todo reino do amor; e recebe a beleza que irradia da conformidade com Cristo. Sente-se amada por Deus como se fosse o único objeto do amor divino e ama a Deus como único objeto do seu amor. Nada pode reter o seu afeto senão for com Deus e em Deus. A união torna-se tão pura que o homem se sente alheado de si próprio e já não pensa em voltar para trás no seu vôo interior. «Dai-me asas como as de pomba, para que eu possa voar e descansar» (Salmo LIV, 7).
A alma deixa de pertencer a si própria se é de fato um bem de Deus como Ele o é da alma: o amor, purificando-se, leva-a para Ele num movimento cada vez mais pronto e mais direto. Amar a Deus por Ele próprio é o derradeiro fruto da graça que eleva o homem à ordem sobrenatural, lhe entrega as riquezas da essência e o faz participar da vida de Deus. «Eu amei-te com amor eterno, por isso, compadecido de ti, te atrai a mim» (Jerem.; XXXI, 3).
As potências da fé germinaram e desabrocham agora na plenitude da caridade. Não há nada que tenha o poder de unir como o amor divino, e nenhuma profundidade é comparável àquela a que ele arrasta os que uniu para sempre. Todo o amor atrai e, em certo sentido, devora aquele que ama, mas o nosso coração não pode absorver Deus: e assim este amor arranca-nos a nós próprios e absorve-nos no objeto amado: «o meu amado é para mim e eu para ele» (Cânt., II, 16).
A caridade leva, deste modo, à fusão dos corações. Deus eleva-nos infinitamente acima da nossa natureza para tornar possível essa consumação. No fim do nosso trabalho e das súplicas duma humilde oração, o Amor faz-nos atravessar um espaço em desproporção com o nosso esforço, e leva-nos a um ponto que os nossos desejos não tinham sequer concebido. «Ninguém pode vir a mim se o meu Pai o não atrair» (João, VI, 44).
Com sublime violência, Deus une-Se, assimila-Se e transforma em Si próprio a alma que vive com verdadeiro amor. «Porque o nosso Deus é um fogo devorador» (Hebr., XII, 29). E o espírito conduzido por Deus não encontra em Deus nada que o faça parar: pode sondar livremente os seus abismos. É sem temor que se entrega ao seu elemento. «O amor lançou-me ao fogo.» A obediência a todas as ordens de Deus conduz a alma à sua morada eterna: mergulha nela, já nesta vida, uma raiz inabalável e pode começar a crescer em paz no amor. O progresso na caridade dá ao espírito um conhecimento mais íntimo de Deus, e esse conhecimento inflama por sua vez a vontade numa caridade mais intensa, de onde brota uma nova luz. O divino é tão familiar a essa alma, que a sua realidade lança na sombra a dos objetos terrenos: vê estes últimos com os olhos do corpo como coisas estranhas, enquanto contempla diretamente a verdade divina, misteriosamente ligada à sua substância por uma comunhão constante. O amor de Deus domina então toda a vida do homem e faz cessar rapidamente a inquietação do espírito e a agitação do coração. Ordinavit in me charitatem. - «Ordenou em mim a caridade» (Cânt., II, 14).
Assim que a amada se apaixona por Deus, procura por todos os meios conhecê-lO melhor para mais completamente se perder nEle. Por não ser mais que uma somente do Reino de Deus, o que ela achou é tão precioso que esta resolvida a não se desfazer dEle por nenhum preço. O conhecimento de Jesus faz-nos sedentos de um conhecimento mais imenso, e o gosto do Seu amor faz-nos famintos de um amor maior. A coragem aumenta com a consciência do tesouro possuído, que será deferido, se for necessário, numa luta contínua contra tudo.
A forma de Cristo deve acabar de se realizar na alma até à plenitude da idade nupcial. O recíproco abrir dos corações cria entre as vontades e os pensamentos, entre as próprias naturezas, um acordo inesgotável. É um crescimento que não pára e não se acaba neste mundo: continuamos toda a vida a despojar-nos do acidental, segundo as inspirações da graça, para que o amor essencial se torne firmeem nós. Mas já não fazemos nada que não tenda para Deus, a nossa vontade torna-se cada dia mais pronta e o Seu caminho mais direito: a obediência filial liga-nos a toda a hora mais intimamente à vida do Pai, único objeto do nosso esforço e único apoio do nosso abandono. «Outrora éreis trevas, mas agora sais luz no Senhor. Andai como filhos da luz» (Efés., V, 8).
A forma de Cristo deve acabar de se realizar na alma até à plenitude da idade nupcial. O recíproco abrir dos corações cria entre as vontades e os pensamentos, entre as próprias naturezas, um acordo inesgotável. É um crescimento que não pára e não se acaba neste mundo: continuamos toda a vida a despojar-nos do acidental, segundo as inspirações da graça, para que o amor essencial se torne firme
Por mais diferentes que sejam as nossas ocupações espirituais ou materiais, os nossos atos têm o mesmo valor profundo e o mesmo sentido. Cada um dos nossos passos leva-nos do Filho para o Pai: a nossa existência inteira está compreendida na serena vida da Trindade. Numa comunhão de fé e de amor com a pessoa de Cristo, cuja obra é nossa, bebemos a vida divina na Sua própria nascente. «Conhecemos que estamos nele e ele em nós: porque nos comunicou o seu Espírito» (I João, IV, 13).
A energia sobrenatural brilha na alma com uma espontaneidade forte e suave, da Pessoa de Cristo: o Espírito Santo é a fornalha em que se alimenta constantemente o seu fervor. A marca deste amor encontra-se, como uma assinatura, em todos os seus atos, em todo o seu ser. «O que nos confirma em Cristo convosco, e que nos ungiu, é Deus, o qual também nos imprimiu o seu selo, e deu em nossos corações o penhor do Espírito Santo» (II Cor., I, 21-22).
O Espírito Santo, na unidade da essência com o Pai e o Filho, vive na nossa alma, reza conosco e santifica-nos. «Não sabeis que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? É santo o templo de Deus, que sois vós» (I Cor., III, 16-17). O sopro do Pai e do Filho, o dom infinito, a testemunha da palavra de Deus, o selo da Sua unidade, desceu em nós para completar a obra do Salvador e coroá-la de glória. «Tínhamos esperado em Cristo... no qual também vós esperais, tendo ouvido a palavra da verdade, o Evangelho da vossa salvação, e tendo crido nele, tostes marcados com o selo do Espírito Santo, que tinha sido prometido, o qual é o penhor da nossa herança, para redenção do povo, adquirido em louvor da sua glória» (Efés.; I, 12-14).
O Espírito Santo, emanação do amor eterno entre o Pai e o Filho, transmite este amor à criatura que Ele habita e assimila; vida abundantíssima, inunda-nos de vida, de paz e de consolação, de alegria, de força e de santidade: o excesso de plenitude divina brota de novo do nosso coração em ondas de caridade. Unidade viva das Pessoas, é-nos dado o Espírito para que, segundo a promessa do Verbo, sejamos compreendidos nessa unidade. «Eu dei-lhes a glória que tu me deste, para que sejam um, como também nós somos um» (João, XVII, 22).
Dom mútuo do Pai e do Filho, o Espírito Santo inspira-nos o dom mais perfeito de nós mesmos, em que se resumem toda a bondade e toda a santidade, Como Ele é o amplexo entre o Pai e o Filho, retém-nos prisioneiros do seu amor e protegidos pelo seu amplexo. A alma sente-se espantada e maravilhada com as riquezas que o Paráclito derrama quotidianamente sobre ela, com a maneira como é guiado por ela em todas as circunstâncias, de maneira que tudo contribua para o seu bem espiritual. Por mais pobre e defeituosa que se considere, respira agora a vida da Trindade. «O que nos formou para isto mesmo, foi Deus, que nos deu o penhor do Espírito» (II Cor., V, 5).
Será necessário repetir que o milagre da graça desafia as palavras, visto que se trata de uma realidade divina, e que os termos criados só podem medir objetos finitos? Querer incluir numa fórmula as liberalidades do amor, é proceder como aquela criança de que nos fala Santo Agostinho, que estava a brincar na praia e julgava que era capaz de esvaziar o oceano. Como as línguas dos homens são frias, pesadas e desajeitadas para falar destas larguezas! Só o texto inspirado possui o tom da plenitude e nos anuncia o que Deus tem reservado para os seus, «para que abundem na esperança do Espírito Santo» (Rom., XV, 13).
O mundo sensível não deixará de nos bater à porta e há-de tentar até à última hora perturbar a nossa alma. Mas esta, sob a ação contínua da graça, sabe transformar todos os obstáculos em meios, e até mesmo o fracasso numa ocasião para se unir com mais pureza à vontade do Pai. «Nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus» (Rom., VIII, 28).
Não haverá um só instante desta vida que seja perdido, se as emboscadas e os golpes do adversário contribuírem para a doce vitória do coração, que é justamente a de Deus. A alma saboreia este amor com uma gratidão cada vez maior, à medida que a linguagem celeste se lhe torna mais familiar, e que ela goza de maneira mais imediata a realidade divina. «Ouvirei o que o Senhor diz em mim» (Salmo LXXXIV, 9).
A alma começou a viver a sua vida eterna: o desejo da união perfeita faz que ela se funda no cadinho do amor; é uma chama no coração de Deus e a única coisa que faz é amar. «A minha alma liquefez-se ao som da sua voz» (Cânt.; V, 6).
E Deus irradia sobre ela uma glória que nenhuma criatura pode conceber ou suspeitar. «Como és bela, minha amiga! Como és bela e graciosa!» (Cânt.; VII, 6).