Bispo Paul W. Von Keppler
Mais alegria
(Edição de 1923)
Assim pregou no século XVIII aos eclesiásticos o magnânimo Ambrósio de Lombez1: “A alegria é principalmente o privilégio do vosso estado e um anexo do vosso encargo e do vosso ministério, ó servos do Senhor, que deveis fazer-vos tudo a todos! Evitai, portanto, aquela mesquinha pusilanimidade, aquela teimosa má disposição e a tristeza consumidora; fazei honra à religião pela conversação da vossa vida. Testemunhai, mais ainda pela vossa conduta, do que pelas vossas predicas, que na virtude não tem cabimento nem a misantropia, nem a melancolia, e procurai conquistar todos os corações pela amabilidade do vosso comportamento. Fazei compreender, principalmente, às almas tímidas e apavoradas, que Deus, de modo algum as chamou para dura servidão, mas para santa liberdade; que esta liberdade é a marca característica do Seu espírito, que nelas habita, mas cuja eficácia elas impedem e embaraçam pela sua angustia timorata; que esta liberdade é a fonte da nossa felicidade nesta vida, e se aumenta ao passo que fazemos progressos na virtude, semelhantemente como ao subir-se às montanhas se respira também um ar mais e mais puro, experimentando-se em todos os nervos um jogo mais natural e mais livre.”
Nós outros, os sacerdotes, a quem Deus confiou formoso ministério da cura de almas, apliquemos, primeiro que tudo, a nós quanto foi dito aos pedagogos, aos educadores da mocidade, aos diretores de associações, intimamente convencidos que a nossa dignidade de pastores das almas também encerra em si o dever de cuidar da alegria. Para isto aliás dispomos de meios, forças e dons como ninguém outro os possui. Já os nossos trabalhos apostólicos em si e, em sentido mais restrito, o ministério e magistério no púlpito e no confessionário, a dispensarão dos meios da graça, formam a contribuição mais importante, mais preciosa e mais necessária para a garantia e o aumento do capital de alegrias da humanidade. Mesmo ao pregarmos penitência, conforme o exige o nosso ministério, mesmo ao insistirmos na abstinência, na abnegação, na moderação, na castidade, mesmo nestes casos, e nestes sobretudo, trabalhamos para a verdadeira alegria, contrabalançando os seus inimigos.
Nos tempos de hoje é só talvez para o caso a exortação que pelas muitas experiências tristes, pelos cuidados e apreensões opressoras do coração, pela miséria toda do presente não seja abafado nimiamente o tom da alegria na prédica, na catequese e na parenese; que o pessimismo não meta a sua mão morta na nossa vida interior e na obra da nossa missão - aquela verdadeira manus mortua que desfolha, desanima, enregela, esteriliza tudo quanto toca; mas que fique conservado aquele sadio e caloroso otimismo, esta grande força vital, que nunca abandonou os santos. Se à colheita não corresponde, de modo algum, à nossa semeadura zelosa e laboriosa, devemos perguntar-nos: Faltou, por acaso, a luz solar da alegria? E se, não obstante todos os esforços, as relações entre o pastor e a comunidade não se encaminham a tornar-se suaves e cardeais, um pouco mais de alegria e de amabilidade não poderia fornecer o melhor adubo? Não esqueçamo-lo nunca: Não se pode e não se deve jamais extirpar o mal sem implantar o bem; para a extirpação podem ser proveitosas e às vezes necessárias chuvas de pedras, tempestades com relâmpagos e trovões: mas as novas searas e plantações precisam de muita luz do sol.
Não só devemos desempenhar alegremente o nosso ministério, alegremente pregar e catequizar, mas devemos pregar e falar da alegria às crianças O Apóstolo a enumera entre os frutos· do Espírito Santo (Gal. 5, 22). A Igreja quer que os domingos e dias santos sejam dias de alegria. Explicar ao espírito o tesouro das verdades do cristianismo é sobremodo importante e necessário; mas é igualmente importante e necessário fazer sentir ao coração o tesouro de alegrias do cristianismo, das verdades dogmáticas, dos sacramentos, do ano eclesiástico, da virtude e da graça; com isto se conquista o coração para Cristo, abstraindo-o dos prazeres do pecado e do século. Pondere-se e repare-se bem na palavra de Fénelon: “Quando o menino (e o povo) recebe uma impressão triste e negra da virtude, ao passo que a liberdade e a leviandade se lhe apresentam sob uma forma agradável, tudo está perdido, todo o trabalho baldado.” Bem entendida, é verdadeira a palavra de Nietzsche: “A virtude precisa de ser libertada do acido moral.”
Não nos deixemos paralisar nos nossos esforços em favor da sublimação da arte religiosa, do canto sagrado, da formosura da casa de Deus e da liturgia; tudo isso contribui para a glória do Altíssimo e para a alegria do povo. Cultivemos igualmente com verdadeiros cuidados do coração o canto em língua vernácula na igreja, dentro daqueles limites que as prescrições litúrgicas traçaram.
Exortemos o nosso povo a entretecer também no lar doméstico o canto religioso, e outras cançonetas dignas e nobres nos trabalhos e nas recreações. Uma boa cançoneta, em lugar oportuno e em tempo oportuno, produz efeitos libertadores e recreadores, purificando os ares e afastando modinhas insensatas e lascivas. Belamente diz Lombez2: “Semelhante a uma Babilônia é este mundo para o servo de Deus; como poderia, portanto, entregar-se aqui a alegria? Não deve antes exclamar com os Israelitas cativos: Como poderíamos entoar cânticos de Sião numa terra estrangeira? De certo, mas não é isto mesmo um verdadeiro cântico? O profeta representa o povo de Deus como cantando a dizer que não tem vontade de cantar. Há cânticos de luto e cânticos de alegria, conforme as variadas inspirações do Espírito de Deus, mas sempre acompanha o canto um suave alívio do coração. A tristeza, isto é, a apatia e a acídia, nunca nos induzem a cantar.”
Não tenhamos nenhum receio de pronunciar estes conselhos também no púlpito e na catequese. Seguimos nisto apenas o exemplo apostólico: “E não vos embriagueis de vinho, no que está a luxuria, mas enchei-vos do Espírito Santo, entretendo-vos com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e salmodiando nos vossos corações ao Senhor” (Efés. 5,. 18). “Está alguém entre vós afligido? ore; está alguém contente? Salmodie” (Iac. 5, 13).
Seguimos nisto o exemplo dos cristãos dos primeiros séculos. Devem-se relembrar principalmente as descrições idílicas de Santa Eustochium e Santa Paula, companheiras de viagem de São Jerônimo, sobre a vida em Belém. “Para onde olhares, ouves louvores de Deus; o lavrador detrás do arado canta o seu Aleluia; o ceifador, a quem o suor goteja da fronte, se alivia pelos seus salmos confortantes; e quando o vinicultor com a sua foice procede à amputação das vides, um canto davídico ressoa da sua boca. Os salmos são os únicos cânticos amorosos desta terra; os pastores não conhecem outras canções pastorais e os trabalhadores não têm outra defesa contra a impaciência que não seja alguns versos do saltério.”3
Seguimos o sensato exemplo da idade medieval. Já nós Capitulários de Carlos Magno achamos o preceito que os pastores, no caminho para os pastos, assim na ida como na volta, cantem hinos eclesiásticos, para que todo o mundo neles reconheça bons cristãos. “Quando dois ou três se acham juntos”, assim se diz num velho livro religioso do ano de 15094, “devem cantar, e cantem todos durante o trabalho, em casa e no campo, com oração e com piedade, na alegria e na dor, no luto e no banquete. E isto é agradável a Deus, quando é honesto; e quando não é honesto, torna-se pecado, que se deve evitar. Cantar em louvor de Deus e em honra dos Santos, como o faz o povo cristão nas igrejas, e nas vésperas dos domingos e dias santos nas famílias, com os filhos e criados, esse é um belo costume; torna o coração alegre, e um coração alegre é amado por Deus.”
1. Traité de la joie de l'âme.
2. Traité de la joie de l'âme.
3. Epist. 17 ad Marcellam.
4. Ein cristlich ermanung zum frumen Leben, Maença 1509. Cf. Janssen, Geschichte des deutschen Volkes I18, Friburgo 1897, p. 273 sg.