domingo, 26 de agosto de 2012

Senhor, deixa-me ver o meu pecado!

Abel Correia Pinto (Franciscano)
Bem-aventurados os pobres


Senhor, deixa-me ver o meu pecado! Fita-me com os mesmos olhos com que me viste na noite da Agonia e da Flagelação e do Alto da Cruz, ao expirar. Alumia-me por dentro! Morra embora de paixão, consente-me a descoberta do que fui e daquele que devia ter sido. Peço-Vos! Pelas sete espadas de Maria! Pelas dores de Paulo e de Francisco de Assis!
... Que é o meu pecado?
Na tarde do primeiro crime, andava a Mãe Eva à busca de Abel. O coração pressagiava-lhe qualquer coisa de inaudito, de insólito, de horrendo.
- Onde estará o meu filho? Onde?!
Ao passar entre duas fragas, oculto em ramagens, que vê? Abel dorme ... Dormia? ... E aquele sangue? e aquela rigidez? e aquele frio?
- Meu Deus que quer isto dizer? que vejo eu?
- A Morte! responde-lhe na alma voz bem conhecida.
- E que é a Morte?
- O teu pecado! ...
O pecado é morte.
A breve expressão encerra um mundo: mundo que Deus não criou, mundo misterioso como o universo ao revés, universo de sombra, de ilogismo, de mentira; invenção do homem revoltado contra o seu Deus; caos semeado na Ordem; firmamento negro de constelações satânicas; caverna funda onde redemoinham serpentes; jardim da soberba, da avareza, da luxúria, da inveja, da intemperança, que, ao abrir, floresce no ódio, na guerra, na enfermidade, na morte!
Há momentos propícios na aprendizagem do mistério; quando percorremos de avião a amplidão dos continentes, atravessamos de barco a imensidade dos mares, voamos de estrela a estrela nas asas da imaginação, ou assistimos duma colina à vida rumorejante dos seres circunvizinhos, se, abismando-nos em nós próprios e olhando a multiplicidade das coisas, dizemos refletidamente: só o homem é capaz de pecar!...
Os elementos não pecam. As árvores não pecam. Os irracionais não pecam.
Sem dúvida, consoante diz S. Paulo, toda a natureza geme no pecado; mas porque o homem, rei da criação, a constrange, a violenta, desvirtuando-lhe os fins. A projeção cósmica da culpa é obra do homem, pois só o homem é pecador.
O pecado implica necessariamente a pessoa. É a afirmação dum ser livre, autônomo, consciente do próprio destino, cuja sorte lhe incumbe.
O puro reflexo orgânico ou passional, enquanto a pessoa o não aceita, não é pecado. Com mais razão, a doença ou desgraça mental. Só pode pecar o homem como tal, apto a assumir responsabilidades, centro de imputabilidade, o homem no pleno exercício das suas funções sacerdotais.
«Mas os filhos de Heli eram uns filhos de Belial que não conheciam o Senhor nem as obrigações de sacerdotes», porque roubavam das vítimas oferecidas pelo povo o melhor bocado para si. E o Senhor os desprezou e ambos morreram no mesmo dia...
Corpo e alma, consciência e liberdade, o homem é, por definição, um sacerdote; o traço de união entre o Céu e a terra.
Tudo lhe foi dado: Omnia vestra sunt; porém ele não se pertence: autem Christi. Eco no tempo do Verbo-louvor, do Pai eterno, do Filho Unigênito.
Para este fim, o Criador o constituiu pessoa.
Pecado é toda a ação, pensamento ou desejo, pelos quais o homem desvia deliberadamente para si o que, de verdade, é propriedade de Deus.
E, por isso, o pecado é morte. Ao preferir um prazer que vai esterilizar a minha vida mais pessoal, ao desviar o poder de me determinar ao Sumo Bem, atinjo-me, firo-me no mais íntimo de mim mesmo. A minha atividade e a minha vida deixam de ser atraídas pelo que era a minha razão de ser.