O ABANDONO À DIVINA PROVIDÊNCIA
pelo
P.J.P de Caussade, S.J
CAPÍTULO
III
Como
a santidade se tornaria mais fácil,
se fosse considerada deste ponto de vista.
Se
a obra da nossa santificação nos oferece dificuldades tão insuperáveis na
aparência, é porque não temos dela uma idéia exata. De fato, a santidade reduz-se
toda a uma só coisa, — a fidelidade à vontade de Deus. Ora esta fidelidade
está ao alcance de todos, tanto na sua prática ativa como no seu exercício
passivo.
A
prática ativa da fidelidade consiste no cumprimento das obrigações que nos são
impostas, quer pelas leis gerais de Deus e da Igreja, quer pelo estado
particular que abraçamos. E o exercício passivo consiste na aceitação amorosa de
tudo o que Deus nos envia a cada instante.
Destas
duas partes da santidade, qual é a que está acima das nossas forças? Não é a
fidelidade ativa, pois as obrigações que ela nos impõe cessam de ser
obrigações desde que o seu cumprimento excede realmente as nossas forças. O estado
de saúde em que vos encontrais não vos permite ir assistir a missa? Não estais
obrigados a ouvi-la. E o mesmo se diga de todas as obrigações positivas, isto é
daquelas que nos prescrevem o cumprimento de algum ato. Só as que nos proíbem de
fazer coisas que são más em si mesmas, é que não sofrem exceção alguma, pois
nunca é permitido fazer o mal.
Haverá,
portanto coisa mais fácil, e mais razoável?... Que desculpa é que poderemos
alegar? Ora, é precisamente isso o que Deus exige da alma, no trabalho da sua
santificação. Exige-o aos grandes e aos pequenos, aos fortes e aos fracos, numa
palavra, a todos, em todo o tempo e em todo o lugar. Por conseguinte, é muito
verdade que não exige da nossa parte senão o que é possível e fácil; pois basta
possuir este fundo tão simples, para chegar a uma santidade muito elevada.
Se
para além dos mandamentos nos aponta os conselhos, como alvo mais perfeito para
o qual havemos de tender, tem contudo o cuidado de acomodar a prática desses
conselhos a nossa situação e ao nosso caráter. Como sinal principal da nossa
vocação para os seguir, dá-nos os auxílios da graça que nos facilitam a sua
prática. Nem chama a ninguém senão na medida das suas forças e no sentido das
suas aptidões. Mais uma vez ainda: poderia imaginar-se alguma coisa mais
razoável?
Ó
vós todos que tendeis à perfeição e vos sentis tentados de desânimo à vista do
que ledes nas vidas dos santos e do que certos livros de piedade vos
prescrevem; ó almas que vos afligis a vós mesmas com as idéias terríveis que
tendes da perfeição; é para vossa consolação que Deus quer que eu escreva
estas palavras.
Aprendei
pois o que pareceis ignorar. Este Deus de bondade tornou fáceis de adquirir
todas as coisas necessárias e comuns na ordem natural, como o ar, a água e a
terra. Nada mais necessário do que a respiração, o sono e o alimento; mas para
também mais fácil. O amor e a fidelidade não são menos necessários na ordem
sobrenatural; por isso a dificuldade em os alcançar não deve ser tão grande
como no-la representamos.
Reparai
na nossa vida de que é que se compõe? De uma série de ações de bem pouca monta.
Ora destas coisas de tão mesquinha importância é que Deus se digna contentar-Se.
Essa é a parte que toca à alma no trabalho da perfeição. E para que não
pudéssemos ter disso dúvida, quis explicar-no-lo bem claramente: “Temei a Deus
e observai os seus mandamentos; isso é convosco”. Quer dizer: eis tudo o que o
homem deve fazer pela sua parte, eis em que consiste a sua fidelidade ativa.
Cumpra o homem o que lhe toca, e Deus fará o resto. A graça divina reserva
para si mesma a realização de maravilhas: que ultrapassam toda a inteligência
do homem. Porque nem os ouvidos ouviram, nem os olhos viram, nem o coração
sentiu o que Deus concebe na Sua idéia, resolve na Sua vontade e executa pelo Seu
poder, nas almas que a Ele Se abandonam.
A
parte passiva da santidade é ainda muito mais fácil, pois não consiste senão
em aceitar o que na grande maioria dos casos não se pode evitar; e em sofrer
com amor, isto é com suavidade e consolação, o que tantas vezes se suporta com
aborrecimento e desgosto.
Mais
uma vez ainda: eis a santidade toda inteira. Eis o grão de mostarda, cujos
frutos não recolhemos porque não sabemos reconhecê-lo na sua insignificância.
Eis a dracma do Evangelho, o tesouro que não encontramos porque o supomos
muito afastado para o ir buscar.
Nem
me pergunteis qual é o segredo, de encontrar este tesouro. Porque verdadeiramente
não há segredo. Este tesouro está em toda a parte, e a todos se oferece em todo
o lugar e em todo o tempo. As criaturas amigas e inimigas dão-no-lo a mãos
cheias e fazem-no correr pelas faculdades do nosso corpo e alma, até ao mais
fundo do nosso coração. Basta abrir a boca, e ficará repleta.
A
ação divina inunda o universo, penetra todas as criaturas, sobrenada acima de
todas, está em toda a parte onde elas estão; adianta-se a elas, acompanha-as,
segue-as; não temos senão que deixar-nos levar pelas suas ondas.
Prouvera
a Deus que os reis e seus ministros, os príncipes da Igreja e do mundo, os
sacerdotes, os soldados, os patrões e os operários, numa palavra todos os
homens, conhecessem quanto é fácil atingir uma santidade eminente. Para eles
não se trata senão de cumprir os simples deveres do cristianismo e do seu
estado, e abraçar com submissão as cruzes que lhes estão inerentes, e submeter-se
com fé de amor à vontade da Providência, em tudo o que se lhes apresenta para
fazer ou sofrer, sem mesmo o buscarem. Esta espiritualidade foi a que santificou
os profetas, muito antes de que houvesse tantas regras e tantos mestres. É a
espiritualidade de todas as idades e de todos os estados, que certamente não
podem ser santificados de maneira mais elevada, mais extraordinária e mais ao
nosso alcance, do que realizando simplesmente o que Deus, soberano diretor das
almas, lhes dá em cada momento a fazer ou sofrer.