segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

IV- Os remédios do orgulho

Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI.
A Vida Espiritual explicada e comentada 
Adolph Tanquerey

                   

            838. Já dissemos (n.º 27) que o remédio mais eficaz contra o orgulho é reconhecer que Deus é o autor de todo o bem, e que, por conseguinte, só a Deus pertence toda a honra e glória. De nós mesmos não somos mais que nada e pecado, e por conseguinte, não merecemos senão esquecimento e desprezo (n.º 208).

            839. 1.º- Não somos mais que nada: É esta uma convicção fundamental que os principiantes devem haurir da meditação, refletindo lentamente, à luz divina, nos pensamentos seguintes: não sou nada, não posso nada, não valho nada.

            A) Não sou nada: aprouve, é certo, à Bondade divina escolher-me entre milhões e milhões de possíveis, para me dar a existência, a vida, uma alma espiritual e imortal, e por esses benefícios devo-Lhe dar graças todos os dias. Mais:

            a) eu saí do nada, e pelo meu próprio peso tendo para o nada, aonde me precipitaria infalivelmente, se o meu Criador me não conservas: pela Sua ação incessante; o meu ser não me pertence, pois, mas é todo inteiramente de Deus, e a Deus é que eu devo fazer dele homenagem.

            b) Este ser que Deus me deu é uma realidade viva, um imenso benefício, de que jamais Lhe poderei dar graças excessivas; mas, por mais admirável que seja, este ser, comparado ao Ser divino, é um puro nada, “tanquam nihilum ante te[1], tão imperfeito é!    

           1) É um ser contingente, que poderia desaparecer, sem que nada faltasse à perfeição do mundo;
           2) é um ser de empréstimo, que não me é dado senão com a reserva expressa do soberano domínio de Deus;
           3) é um ser frágil que não pode subsistir por si mesmo e necessita de ser sustentado a cada instante por Aquele que o criou. É, pois, um ser essencialmente dependente de Deus, sem outra razão de existir mais que dar glória ao seu autor. Esquecer esta dependência, proceder como se as nossas qualidades fossem completamente nossas e envaidecermo-nos delas, é pois erro, loucura e injustiça inconcebíveis.

            840. E o que dizemos do homem na ordem da natureza, mais verdade é ainda na ordem da graça: esta participação da vida divina, que faz a minha dignidade e grandeza, é um dom essencialmente gratuito, que tenho de Deus e de Jesus Cristo, que não posso conservar muito tempo sem a graça divina, que não aumenta em mim senão com o concurso sobrenatural de Deus (n.º 126-128); é, pois, caso para dizer: “Gratias Deo super inenarrabili dono eius[2]. Que ingratidão e injustiça atribuir a si mesmo a menor parcela deste dom essencialmente divino! “Quid autem habes quod non accepisti? Si autem accepisti, quid gloria ris quasi non acceperis?[3].

            841. B) Não posso nada por mim mesmo: é certo que recebi de Deus faculdades preciosas que me permitem conhecer e amar a verdade e a bondade. Estas faculdades foram aperfeiçoadas pelas virtudes sobrenaturais e pelos dons do Espírito Santo; e mal poderíamos admirar em excesso esses dons da natureza e da graça que tão perfeitamente se completam e harmonizam. Mas de mim mesmo de minha própria iniciativa, não posso nada para pôr em ação e os aperfeiçoar: nada, na ordem natural, sem o concurso de Deus: nada, na ordem sobrenatural, sem a graça atual, nem sequer, formar um bom pensamento salutar, um bom desejo sobrenatural. E, sabendo isto poderia eu envaidecer-me destas faculdades naturais e sobrenaturais, como se elas fossem inteiramente propriedade minha? Ainda aqui seria ingratidão, loucura, injustiça.  

            842. C) Não valho nada: se considero o que Deus pôs em mim e o que em mim opera pela Sua graça não há dúvida que sou um valor: “empti enim estis pretio magno[4]... tanti vales quanti Deus: valho o que custei e custei o sangue de Deus!” Mas a honra da minha redenção e santificação é a mim que deve referir-se ou e a Deus? A resposta não pode oferecer a menor dúvida. - Apesar de tudo, diz o amor próprio vencido, ainda tenho alguma coisa que é minha e me dá valor: é o meu livre consentimento ao concurso e a graça de Deus. Certo que temos nisso alguma parte, mas não a principal: esse livre consentimento não é mais que o exercício das faculdades que Deus nos deu gratuitamente, e, no próprio momento em que o damos, é Deus que opera em nós, como causa principal: “operatur in nobis et velle et perficere[5] E, por uma vez que consentimos em seguir o impulso da graça, quantas vezes lhe resistimos, quantas vezes não cooperamos com ela senão imperfeitamente! Verdadeiramente que não temos neste ponto nada de que nos ufanar, senão de que nos humilhar.
            Quando um grande mestre pintou uma obra-prima, é a ele que atribuímos e não aos artistas da terceira ou quarta ordem que foram seus colaboradores. Com mais força de razão devemos atribuir os nossos méritos a Deus, como causa primária e principal, pois que segundo canta a Igreja, depois de Santo Agostinho, Deus coroa os seus dons, quando
coroa os nossos méritos, “coronando merita caronas dona tua[6].
            Assim pois, seja qual for a luz a que nos consideremos, seja qual for o preço imenso dos dons que há em nós, e até mesmo dos nossos próprios méritos, não temos o direito de nos jactarmos deles, mas o dever de os referir a Deus na mais sentida homenagem de ação de graças, pedindo-lhe ao mesmo tempo perdão do mau uso que deles temos feito.

            843. 2.º- Sou pecador, e, como tal, mereço o desprezo, todos os desprezos com que aprouver a Deus esmagar-me. Para disso nos convencermos, basta recordar o que dissemos do pecado mortal e venial.

            A) Se tive a infelicidade de cometer um só pecado mortal, mereço eternas humilhações, pois que mereci o inferno. Posso ter, é certo, a doce confiança de que Deus já me perdoou; mas nem por isso deixa de continuar a ser verdade que cometi um crime de lesa-majestade divina uma espécie de deicídio e suicídio espiritual (n.º 719), e que, para expiar a ofensa à Majestade divina, devo estar disposto a aceitar, a desejar até todas as humilhações possíveis, as maledicências, as calúnias, as injúrias, os insultos: tudo isso fica muito aquém do que merece aquele que uma só vez ofendeu a infinita Majestade de Deus. E, se O ofendi muitas vezes, qual não deve ser a minha resignação, a minha alegria até, quando tenho ocasião de expiar os meus pecados por meio de opróbrios de curta duração!?

            844. B) Todos nós temos cometido pecados veniais, e, sem dúvida, de propósito deliberado, preferindo a nossa vontade e o nosso prazer à vontade e glória de Deus. Ora isto, como dissemos (n.º 715), é uma ofensa à Majestade divina, ofensa que merece humilhações tão profundas que, nem mesmo com uma vida inteira passada na prática da humildade, poderíamos por nós mesmos restituir a Deus toda a glória de que injustamente O despojamos.
            Se a alguém parecer exagerada esta linguagem, lembre-se das lágrimas e penitência austera dos Santos, que não tinham cometido senão faltas veniais, e que nunca se podiam persuadir que faziam demais para purificar a sua alma e reparar os ultrajes infligidos à Majestade divina. Estes Santos viam nisto mais claro do que nós; se não pensamos como eles, é porque estamos obcecados pelo orgulho.
            Devemos, pois, como pecadores, não somente não procurar a estima dos outros, mas desprezar-nos a nós mesmos e aceitar todas as humilhações que a Deus aprouver enviar-nos.



[1] Sl., 38, 6.
[2] II Cor., 9, 15.
[3] I. Cor., 4, 7.
[4] I. Cor., 4, 7.
[5] Fl., 2, 13.
[6] Prefácio de todos os Santos.