A EDUCAÇÃO SOBRENATURAL
XIV - A EXTENSÃO DA VIDA SOBRENATURAL
Qual é a divisão deste capítulo?
1º- A vocação em geral (art. I);
2º- a vocação religiosa e sacerdotal (art. II);
3º- a vocação para a vida cristã no mundo (art. III).
Artigo I - A vocação em geral
"Ninguém escapa à sua vocação. Está em nós desde o instante em que, pelo nosso primeiro grito, à entrada no mundo, dizemos: Presente!"
(Heeri Lavedan, Bom ano, mau ano, 7ª série, p. 278)
Que é a vocação?
A vocação é o chamamento de Deus.
Este chamamento é multiforme:
1º- Como cristãos, somos todos chamados à perfeição e à salvação neste mundo e à felicidade eterna no outro: é a vocação geral.
2º- Como homens e como cristãos, para nos ajudarmos a atingir o fim natural e o fim sobrenatural da existência, somos chamados a esta ou àquela função especial, a uma ou outra situação, a um certo gênero de vida: é a vocação particular. Não nos ocupamos aqui senão desta última.
Quais são os princípios que esclarecem a questão?
1º- Deus é autor da sociedade.
"Formou-a de condições variadas, de estados diferentes, cuja reunião compôs um todo harmonioso, que corresponde às necessidades de todos e de cada um."
(Mgr.Pichenot, ob. cit., p. 331)
2º- Deus, que nada faz inútil, que não se arreda no caminho, destina e chama os homens a ocupar os diversos estados, cujo conjunto constitui a sociedade e é necessário ao seu bom funcionamento.
3º- Deus, que proporciona os meios ao fim, distribui os Seus dons segundo o destino de cada um.
"Reparte os talentos, os atrativos, as qualidades próprias ao estado que nos destina. Prepara-nos também as graças, as luzes, os socorros próprios deste estado para nos fazer vencer as dificuldades, evitar os perigos e cumprir todos os deveres."
(Mgr. Pichenot, ob. cit., p. 331)
Qual é a conseqüência prática que deriva destes princípios?
É que é da primeira e máxima importância abraçar o estado a que somos chamados:
"Porque é aí, e ai somente, que os nossos gostos serão satisfeitos, os nossos meios utilizados, as nossas aptidões exercidas com proveito; e temos a certeza de encontrar todos os recursos que nos serão necessários."
(Pichenot, ob. cit., p. 331)
Quais são os meios a tomar para cada um chegar a conhecer a sua vocação?
Há três principais:
1º- Recorrer a Deus pela oração.
Foi Deus que escolheu o estado que devemos abraçar; é Ele só que no-lo pode fazer conhecer; daí a obrigação de O consultarmos. É preciso orar com retidão, com docilidade, com recolhimento.
2º- Dirigir-se àqueles que estão no lugar de Deus, quer dizer, primeiramente aos pais; em geral, ninguém se deve afastar da sua maneira de ver; depois ao diretor, que tem a graça de estado para explicar e resolver o problema, com a condição de lhe ser exposto singelamente em todos os seus aspectos.
3º- Estudar-se e consultar-se a si mesmo. Deus, que proporciona os meios ao fim, estabeleceu uma harmonia entre o destino, duma parte, e os gostos, as aptidões e o caráter, de outra parte. Pertence ao homem pesar todas estas coisas, estudando-se e consultando-se a si mesmo, á luz da razão e da fé.
Quantas espécies há de vocações?
Há duas espécies principais de vocação: a vocação que consagra a vida ao serviço de Deus; e a vocação para a vida cristã no mundo.
A vocação para o serviço de Deus é susceptível de três formas:
- A vocação religiosa acrescida da vocação para o estado eclesiástico: é a dos religiosos padres.
- A vocação religiosa sem a vocação para o estado eclesiástico: é a das religiosas e a dos religiosos não padres.
- A vocação para o estado eclesiástico sem a vocação religiosa: é a do clero secular.
A vocação para a vida cristã no mundo considera ordinariamente como normal o casamento e a escolha dum emprego, duma situação, duma profissão manual ou liberal.
Artigo II - A vocação religiosa e sacerdotal
"Se a graça duma vocação sacerdotal bafejar o vosso filho, se a graça da vocação religiosa bafejar a vossa filha... deixai soprar a graça, e, como Maria, humilde escrava, dizei o Ângelus da submissão".
(E. Julien, Do berço à escola, p.105)
Como devem encarar os pais a vocação religiosa e sacerdotal?
1º- Devem considerá-la como uma honra.
Com efeito, a Igreja sempre tem preferido a virgindade cristã ou o celibato religioso ao casamento.
"Se alguém sustentar que o estado de matrimônio deve ser preferido ao estado da virgindade ou do celibato, e que não é melhor nem mais santo permanecer no estado de virgindade ou do celibato do que entrar no estado do matrimônio: seja anátema".
(Concílio de Trento, Sess. XXIV, can. 10)
2º- Devem considerá-la como uma graça ou, antes, como uma série ininterrupta de graças maravilhosas, que se atraem umas às outras, pelo jogo sobrenatural dos votos formulados, e pela fecundidade das funções cumpridas. Uma mãe de família, uma verdadeira cristã, escrevia há pouco tempo, falando de sua filha, que partia para o noviciado:
"Quando considero a delicadeza do seu coração, a elevação da sua alma, e tantas qualidades admiráveis com que Deus a enriqueceu, sinto que me seria bem duro entregar a um homem semelhante tesouro. Jesus Cristo será o seu esposo: eu O bendigo".
Eis aí a linguagem da fé.
3º- Devem considerá-la uma fonte de graça para eles mesmos. Deus, com efeito, nunca Se deixa vencer em generosidade; e a esse pai e a essa mãe, que lhe sacrificaram o que tinham de mais caro, Ele reserva favores escolhidos, cujos benefícios sentem durante a vida e, sobretudo à hora da morte.
Entre todas as graças, a mais preciosa, a mais desejável é, evidentemente, a graça duma boa morte.
"É um fato comprovado pela experiência: os pais que oferecem generosamente os seus filhos para o serviço de Deus, têm, geralmente, uma morte santa. É esta a regra geral é, que eu saiba, não apresenta exceções".
(Charruau, Às mães, p. 269 e 364)
O pai e a mãe têm o direito de impedir os seus filhos de seguirem a sua vocação?
Não, mil vezes não.
Efetivamente, as crianças pertencem a Deus antes de pertencerem a seus pais; e seria uma verdadeira usurpação, cometida em prejuízo dos direitos do Criador, oporem-se ao chamamento divino.
E, se Jesus, na idade de doze anos, faz chorar de inquietação a mais santa de todas as mães, quando Lhe teria sido tão fácil adverti-lA dos Seus desígnios,
"foi para dar a vosso filho a coragem de vos ver chorar, e a vós, sua mãe, a de oferecê-lo generosamente".
(Charruau, Às mães, p. 269 e 364)
Os pais têm o direito de experimentar a vocação de seus filhos?
Sim, os pais têm o direito de experimentar a vocação de seus filhos, para saber se verdadeiramente vem de Deus, porque, até nisto, pode haver engano.
Que qualidades deve ter esta prova para ser legítima?
1º- Deve ser sincera.
2º- Deve ser esclarecida.
Que se deve entender por estas palavras: A prova deve ser sincera?
Deve entender-se que a prova não deve servir de pretexto a nenhuma tentativa de aniquilamento da vocação.
Têm-se visto pais que, sob o pretexto de examinar a vocação de seus filhos, contrariam a piedade e suprimem os melhores exercícios. Outros pedem conselhos, até que hajam obtido uma aprovação do seu olhar interesseiro. Outros impelem-nos para os prazeres e para as distrações do mundo. Outros, enfim, o que é raro, levam-nos pelos caminhos do vício.
São manobras desleais e criminosas.
Que significa estas palavras: A prova deve ser esclarecida?
Estas palavras significam que os pais, que usam do direito de experimentar a vocação de seus filhos, não devem deixar-se influenciar pelas fórmulas especiosas que infiltrem no seu espírito, nem pelos temores quiméricos que atormentem o seu coração.
Quais são as fórmulas especiosas cuja aplicação poderia prejudicar a prova da vocação?
Há quatro principais:
1º- Se a vocação é sincera, resistirá a tudo;
2º- a criança é vítima duma ilusão: os pais devem defendê-la de si mesma;
3º- o meu filho, a minha filha faziam bem melhor, se ficassem no mundo;
4º- eu admitiria uma Ordem ativa; mas uma Ordem contemplativa!... Pra quê?
Que responder à fórmula: "Se a vocação é sincera, resistirá a tudo"?
O seguinte:
"Que diríes do pai de família que fizesse este raciocínio: Mandei deitar o meu filho num quarto muito úmido. É verdade que, passado algum tempo, tossia um pouco. A princípio, isso inquietou-me; mas consultei um médico muito afamado, que me disse que não havia nisso perigo algum. Se seu filho tiver um peito robusto, disse-me ele, não há nada a temer da umidade; se esse jovem perdesse o vigor nesse quarto doentio, é porque a sua constituição deixaria muito a desejar. Aqui não há meio termo; e procederá prudentemente, obrigando-o a dormir nesta espécie de cave. A unidade é justamente a pedra de toque das constituições fortes e sólidas. Após esta experiência, saberá o que tem a fazer."
(Charruau, p. 274)
É luminoso, convincente, peremptório.
Que responder à fórmula: "A criança é vítima duma ilusão"?
Isto diz-se quando um jovem ou uma donzela pedem para entrar num noviciado onde poderão, durante um não, dezoito meses, ou dois anos, estudar de novo, em plena liberdade, uma vocação já provada.
E, quando se trata de casamento, deixa-se, sem escrúpulos, prender por toda a vida uma menina de dezoito anos, que se fia na palavra dum jovem, que ela apenas conhece há dois meses!
Onde está a precipitação?
E quem está em risco de ser vítima de ilusões?
Que responder à fórmula: "O meu filho e a minha filha farão maior soma de bem no mundo; são precisos bons pais e boas mães de família; e depois há tantas obras a sustentar, tantos apostolados a exercer... etc."?
A questão está mal posta.
Não se trata dum bem problemático que se possa fazer aqui ou acolá. Trata-se da vontade de Deus. Qual é a vontade de Deus? Eis a questão. E não é lógico sofismá-la.
Que responder à fórmula: "Admitia uma Ordem ativa, mas uma Ordem contemplativa!... Pra quê"?
Sem querer examinar largamente a questão da excelência relativa das diferentes Ordens religiosas, notemos somente alguns elementos para responder:
1º- Na narração de São Lucas (Cf. Luc. X, 38-42), de que a Igreja tirou o Evangelho para a Missa da Assunção, Marta é a vida ativa; Maria é a vida contemplativa. E Nosso Senhor diz: Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada.
2º- Tem-se dito: Santa Teresa salvou tantas almas, orando e sacrificando-se no seu mosteiro, como São Francisco Xavier, evangelizando reinos inteiros.
3º- A Santíssima Virgem, silenciosa e meditativa em Nazaré, foi, por isso, inútil à salvação dos homens? Os trinta anos de vida oculta de Nosso Senhor terão menos valor, para a redenção do mundo, do que os três anos da vida pública?
Quais são os temores quiméricos que assustam o coração de certos pais, perante a vocação religiosa de seus filhos?
1º- A desonra da família;
2º- a infelicidade do filho;
3º- o esquecimento a que o eleito de Deus votará seus pais.
A família pode, seriamente, considerar como uma desonra dar um dos seus membros ao serviço imediato e pessoal de Deus?
Seriamente, mão; mas há meios de tal modo infectados pelo espírito do mundo, que neles parece considerar-se como uma desonra o que é sobrenaturalmente uma glória, e como uma humilhação o que, cristãmente falando, é um prestígio e uma dignidade.
Em que é quimérico o temor da infelicidade da criança consagrada ao serviço de Deus?
Em que este temor não tem nenhum fundamento. Nada iguala, pelo contrário, a graça que Deus concede àqueles em que Ele desperta uma verdadeira vocação religiosa; é a felicidade na terra para obter a felicidade no céu.
E São Paulo, inspirado por Deus, diz claramente: "Se casardes a vossa filha, fareis bem; mas se a não casardes, fareis muito melhor". (I Cor., VII, 88)
Que vale o temor que têm certos pais de se verem esquecidos pelo eleito de Deus?
"É uma calúnia absurda acusar a vida religiosa de egoísmo. Ela não destrói o coração: pelo contrário dilata-o, eleva-o, purifica-o; e em lugar dum amor natural e terrestre, que se ama a si mesmo, enche-o dum amor todo espiritual e todo divino que só ama a Deus e a salvação das almas. A vossa filha pedirá por vós, será o anjo da guarda da família, o pára-raios da casa paterna. Não, não é verdade que a graça destrua a natureza, e que a castidade enfraqueça a sensibilidade: ela consagra-a e eterniza-a. Quantas piedosas afeições, desenvolvidas ou mesmo nascidas à sombra dos claustros, e que o lar doméstico não conhece!
Recordai-vos da Mãe de Chantal, a jovem baronesa de Thorens. Recordai-vos de Santa Paula, acompanhando o ataúde da filha, chorando copiosamente. Julgavam que morreria, e o velho São Jerônimo não sabia o que fazer para a consolar. Nunca uma mulher pagã chorou tanto os seus filhos, diziam os pagãos."
(Mgr. Pichenot)
(Catecismo da educação pelo Abade René de Bethléem, Livraria Figueirinhas, Porto, continua com o post: A vocação para a vida cristã no mundo)
PS: Grifos meus.