sábado, 30 de abril de 2011

Sinal da Cruz - Terror para os inimigos infernais

Sinal da Cruz - Terror para os inimigos infernais


"É com o Credo e com o Sinal da Cruz que é necessário correr o inimigo. Revestido destas armas, o Cristão sem dificuldade triunfará do antigo e soberbo tirano. A Cruz basta para desfazer todas as maquinações do espírito das trevas." (lib. de Symb., c. I. - Santo Agostinho)

"O Sinal da Cruz torna impotentes todos os artifícios da magia, ineficazes todos os encantos e ao abandono todos os ídolos. Por ele é moderado, abatido, extinto o fogo da voluptuosidade mais brutal; e a Alma, curvada para a terra, levanta-se para o Céu. Outrora os demônios enganavam os homens, tomando diferentes formas; postados à beira das fontes e dos rios, nos bosques e nos rochedos, surpreendiam por artificiosos enganos aos insensatos mortais. Mas, depois da vinda do Verbo Divino, basta o Sinal da Cruz para desmascará-los todos. Quer alguém a prova do que digo? Não tem mais que colocar-se no meio dos artifícios dos demônios, das imposturas dos oráculos e os embustes da magia e, feito o Sinal da Cruz, verá como por virtude dele fogem os demônios, calam-se os oráculos e se tornam impotentes todos os encantos e malefícios." (Lib. de Incarnat. Verb. - Santo Atanásio)

"O Sinal da Cruz é a armadura invencível dos Cristãos. Esta armadura que te não falte ó Soldado de Cristo, nem de dia nem de noite, nem um só instante, seja qual for o lugar em que te aches. Quer durmas, quer vigies, quer trabalhe, quer comas, quer bebas, quer navegues, quer atravesses rios, sempre andarás revestidos desta couraça. Orna e protege teus membros com este Sinal vencedor e nada te poderá fazer mal. Contra as setas do inimigo, não há escudo mais poderoso. A vista deste Sinal, trêmulas e aterradas fugirão as potências infernais." (S.Eph. de Panophia ot de poenitem, apud Gretzer p. 580,581 e 642. - São João Crisóstomo)

(Frases retiradas do livro: O Sinal da Cruz por Monsenhor Gaume, Protonotário Apostólico, livro que de Pio IX mereceu um “Breve” especial, primeira tradução brasileira cuidadosamente calcada sobre a 4ª edição francesa, 1950.)

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Devotos do Sagrado Coração de Jesus



... Um outro sequaz do pobre de Assis, no desprezo das verdades mundanas, no amor da vida penitente e na contemplação do mistério da Cruz, foi o Beato Jacopone de Todi (+ 1306). Na seleta das suas poesias sacras, achamos pedaços, em que nos fala do amor do Coração de Jesus pelas almas e do incêndio da caridade ateado na sua alma.

Citamos dentre elas algumas estrofes:

Olha-Me esposa um momento
Nu na Cruz pregado
Com tão horrível tormento
Para dar-te em alimento Meu divino fogo.

No Meu Coração estais escrita
Com letras de sangue;
Porém se torna exangue
Por tua causa, morre pouco a pouco.

Teu amor Me forçou
A este mundo baixar;
Com Meu Coração Santo e puro
A morte não pôde acabar.

Em outro canto:

Ó alma bendita
Do Supremo Criador,
Olha que teu Senhor
Espera-te Crucificado.

Observa aquela chaga
Que tem ao lado direito;
Vê o sangue no Seu peito
Que teu delito paga.

Pensa que Eu fui aflito
Por uma lança cruel
E tive por cada fiel
O Coração transpassado.

Em um outro:

Vôa ao alto coração enamorado
Passa e vai ardente ao Redentor
E vai ao lado
Que conserva a ferida por amor;
Entra até o Coração com grande ardor
Depois não sai por coisa vã
Dessa doce fonte
Que toda gente cura e faz sarar.

(Sorio - Poesias escolhidas - Verona 1838.)

(Citado no livro: Eu Reinarei, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus no seu desenvolvimento histórico, pelo Pe. Fernando Piazza, da ordem de São Camillo, obra traduzida pelo Dr. Alberto Saladino Figueira de Aguiar; impresso nas "Escolas profissionais do Lyceu Coração de Jesus", ano de 1932.)

domingo, 24 de abril de 2011

Avante

Avante


Levantai-vos, soldados de Cristo;
Eia avante! na senda da glória;
Desfraldai no pendão da vitória
O imortal Coração de Jesus.

Não nascemos senão para a luta;
De batalha amplo campo é a terra;
É renhida e constante esta guerra.
Apanágio dos filhos de Adão.

No combate esforçados, valentes.
Não temais, ó soldados de Cristo;
O triunfo será nunca visto.
Se souberdes cumprir sua lei.

Amparai-vos no escudo da graça.
Fortaleza circunde vossa alma;
Pela fé no Senhor, vossa palma
É segura na eterna mansão.

É Jesus nosso Rei soberano;
Seu amor de atrair-nos não cessa,
De vencer dá-nos firme promessa,
E prepara fiel galardão.

Oh! segui d'este Rei tão amante
O estandarte divino, glorioso;
Contra as forças do inferno teimoso
Ele só à vitória conduz.

De Jesus Coração sacrossanto,
Guardai pura esta santa bandeira
No combate esperança fagueira;
Do triunfo seguro penhor!

(Retirado do livreto: Manual do Coração de Jesus, 
26ª edição brasileira, 1951.)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Os últimos gritos

Nota do blogue: Antecipei esse capítulo, do livro que vem sido transcrito em seqüência, pela data de hoje. Perdoai-nos Senhor as nossas ingratidões e falta de amor por Vós mesmo quando temos diante de nós, a Vossa Santa Cruz.

Os últimos gritos


A partir desse primeiro grito da Sua grande angústia interior, - pois, segundo São Matheus, aquele apelo súplice foi lançado ao céu com grande grito: Et circa horam nonam clamavit Jesus voce magna dicens: Eli, Eli, lamma sabactani (MT. 17, 46) – a partir desse primeiro grande grito as coisas vão-se precipitar.


Chegamos à nona hora: as trevas estão no mais espesso, a natureza se conturba, a terra parece comover-se.

Maria, João, as santas mulheres, que aquele grito de angústia alanceou, chegam-se mais para perto da Cruz.

Olham todos para cima. Pode-se dizer que o rosto do Senhor já não existe: é bem agora que, consoante a palavra do profeta, ele está como suprimido e, de todo ponto, desprezível.

Lívido, afinado, imerso em sombra e em sangue, de olhos já fixos e vidrados, Ele só tem de dolorosamente saliente a boca, que haure o Seu sopro com dificuldade, uma boca seca e moribunda: é o fim.

Jesus o sabe. Mas conserva ainda ereta a cabeça, regiamente ereta: só a abaixará quando quiser.

Com uma lucidez de espírito a que nada escapa, Ele percorre no longínquo do passado tudo o que os profetas disseram dEle: nenhum ultraje Lhe faltou e, num terrível e pungente escorço, revê e ressente todos os sofrimentos preditos que O trouxeram àquele cume e O cravaram naquela Cruz. Tudo está cumprido, salvo um ponto entretanto.

Falando daquelas intoleráveis dores e do desprezo que delas se havia de fazer, David dissera no salmo 68: - Na minha sede horrível, deram-me só vinagre.

Teria faltado um traço à ingratidão humana e à sua crueldade sábia se Jesus, sedento, carpindo a mais horrível tortura da crucificação” (Fouard), tivesse achado a gota de água refrescante que se não recusa, no entanto, ao último dos criminosos.

Vai Ele, pois, externar essa angústia da sede, mas para atrair a Si um mais cruel sofrimento.

Não se queixou dos cravos, nenhum grito pelos espinhos, e a horrenda tensão que Lhe separa todos os membros e Lhe desarticula todos os ossos não Lhe arranca nenhum murmúrio.

Só dois gritos, no Calvário, traem as Suas dores.

Ele se queixa de ser desamparado por Deus, e clama lastimosamente: - Tenho sede!...

Esta sede justificava-a de sobejo o horrível trabalho do Seu corpo e do Seu espírito. Tudo devia acender-lha: o sangue derramado aos borbotões, as lágrimas correntes, os suores estranhos de Getsêmani, a noite insone, a incrível flagelação, e, sobretudo aquele desamparo interior de Deus, cuja justiça implacável O abrasava ainda mais do que a febre da crucificação que Lhe inflamava as veias.

- Tenho sede! Gemia Ele mansamente.

Este queixume, este murmúrio, caiu primeiro sobre o grupo comovido das santas mulheres. Maria deve ter-Se voltado, indo de um a outro e procurado, com o olhar, a bebida mitigante pedida com tanta humildade. Madalena, Maria Cleófas, João, todos os Seus amigos diletos olham para a boca ressequida... Ai! Nada, no Calvário, tirante dos rochedos que vão fender-se e a terra ensangüentada.

Entretanto, também os soldados ouviram os queixumes do moribundo.

Do vinho misturado com mirra que, havia duas horas, o Cristo recusara, nada mais devia restar, dado que os dois ladrões deviam tê-lo absorvido todo. E eles, os soldados, teriam ainda vinho para seu uso? Talvez. Em todo caso, a sua disposição de espírito não nos permite supor que eles o tivessem oferecido a Jesus a não ser por escárnio, quando, conforme a palavra de São Lucas, eles se aproximavam da Cruz e estendiam as taças cheias à vitima, parecendo dizer-lhe: Vem tomá-la, e, se és o Cristo, salva-te da cruz.

Havia, porém, ali um vaso cheio de vinagre. Costumava-se trazer vinagre para aspergir o rosto dos pacientes que desmaiavam às vezes à simples vista da horripilante crucificação, ou que empalideciam e perdiam os sentidos logo às primeiras marteladas a enfiarem os pregos. Ao lado desse vaso estava uma esponja que servia aos algozes ou para lavar as mãos e os braços manchados de sangue, ou mesmo para friccionar o rosto descorante dos condenados. Estava essa esponja no chão, cheia de sangue, lambuzada de água e de pó.

Quem foi, entre os soldados, que teve a cínica idéia de matar a sede ao agonizante com aquela beberagem? O texto sagrado deixa-nos entrever que vários se puseram nessa tarefa. Sem dúvida, um embebe a esponja no vinagre, enquanto outro procura como atingir a boca do paciente, e um terceiro toma de um pedaço de cana para adaptar nele a esponja úmida. Tudo se faz, aliás, com precipitação odienta.

De onde vinha aquela cana? Quem a trouxera? Como ali se achava? Nada de imprevisto nos desígnios de Deus.

Quem sabe? Não seria uma das canas que tinham dado na cabeça de Jesus no pretório? Quiçá aquela mesma que Lhe haviam posto entre as mãos régias por ocasião da paródia ridícula no seio da corte?

Tinham trazido até o Calvário a coroa de espinhos: por que não teriam trazidos também o cetro real? O Traje devia estar completo.

Seja lá como for a esponja cheia de vinagre foi aproximada da boca ressecada de Jesus. Ele aspirou algumas gotas do áspero líquido, e, quando retiraram a esponja, os lábios do moribundo remexeram-se um pouco, e este murmurou debilmente: - Agora, tudo está consumado.

Sim, estava tudo acabado. O ciclo doloroso dos suplícios está esgotado, o abandono não pode ir mais longe, as trevas estão espessas, o céu retirou as suas complacências, o corpo do condenado já não tem uma gota de sangue, e malícia humana toca o seu auge, a taça está cheia: bebeu-a Jesus até as fezes eram aquele áspero vinagre que haviam sabiamente reservado para o fim.

A morte paira, por conseguinte, sobre aquela Cruz: estende-Lhe a mão; mas não poderá agarrar a sua vítima senão quando está o permitir. Só eu tenho o poder de depor a Minha vida, dissera Cristo; Ele é o Senhor absoluto até o fim, bem o fará ver daí a pouco.

Jesus quer morrer por Sua plena vontade e com toda a Sua dignidade. Nunca Ele foi mais Rei do que em face da morte: morramos com Ele, e, se Ele o quiser, morremos como Ele.

A morte mais bela dos eleitos é a que se calca sobre a morte de Jesus.

Findar na Cruz, isto é, no abandono total, findar no silêncio, cercado de sombra e, se o permitir Deus, com uma última gota de fel nos lábios, ó morte preciosa aos olhos do Senhor!

Qual será a minha, ó meu Deus, ignoro-o.

Mas, tanto quanto depender de mim, quero-a simples, esquecida, silenciosa. O homem sonha com aparato até nessa última cena; pode-se levar mais longe a vaidade? As palavras desse último são, às vezes, arranjados e preparadas com antecedência... Calemo-nos, calemo-nos, baixemo-nos a cabeça, humilhemo-nos, e ocultemos a nossa invencível esperança na sombra que a mão de Deus fará quando vier para nos tocar.

Pode suceder que nesse último instante, na nossa sede suprema de ternura e de afeto, não nos seja apresentada mais do que uma amarga beberagem misturada com vinagre. Deus é tão cioso da Sua imagem, que, sem ofensa do próximo, se compraz em lhe imprimir os traços na alma dos Seus melhores eleitos. Havemos de sofrer então até mesmo daqueles que nos amaram e a quem nós amamos: é a dor bendita.

Contentemo-nos com olhar amorosamente o nosso Jesus crucificado, não nos distraiamos deste olhar, e finemo-nos com a alegre severa de morrer na cruz, esquecido, desamparado e desconhecido talvez no meio dos nossos próximos.

Repito, ó morte desejável e preciosa aos olhos dos anjos, para quem ela é então como que um decalque maravilhoso e fiel da morte do dulcíssimo Jesus!

Senhor, meu Deus, desde já aceito de bom grado e com justiça, da Vossa mão, o gênero de morte, qualquer que seja, que Vos aprouver infligir-me, com todas as suas angústias, penas e dores”.

(Oração de São Pio X – Indulgência plenária aplicável só no momento da morte – Decreto de 9 de março de 1904 -. Para obter esse favor é preciso, depois de se confessar, fazer a sagrada comunhão e pronunciar essa oração.)

Consummatum est. Está tudo acabado.

Hei de dizê-lo um dia, digo-o hoje por antecipação conVosco, ó meu Deus.

Essa última palavra de Cristo pareceu roçar apenas pelo Calvário: parecia dita aos anjos comovidos antes que aos homens, caía no segredo da justiça de Deus para sempre satisfeita.

Quase não a ouviram os soldados, entregues de todo à sua última e sinistra irrisão.

Galhofavam eles ainda a respeito da esponja cheia de vinagre, e de Elias que sem dúvida viria livrar o Rei dos Judeus, quando, de repente, um brado imenso e profundo rasgou a noite que se envolvia. Eles se voltaram todos para o lado da Cruz do meio, de onde irrompera aquele intenso clamor.

Viram então aquela vítima, expirante e agitada por um tremor estranho, erguer-Se, de algum modo, sobre as Suas feridas, como para desafiar a morte, e alçar um vôo sublime para alturas desconhecidas; e, através do silêncio de estupefação e de terror, uma voz forte e cheia lançou no espaço esta última palavra:

- Pai, nas Vossas mãos entrego a Minha alma.

Estas palavras vencedoras pareceram varar o céu e abalar a terra.

João, que estava pertinho da Cruz, viu então o semblante do Senhor, feito mais lívido ainda, inclinar-se brandamente: a cabeça pendeu sobre o peito, e ele percebeu o último suspiro de Jesus.

Et inclinato capite tradidit spiritum (Jo. 9,30).

Finda aqui a subida do Calvário.

A grande obra da redenção está consumada: Cristo reconciliou o céu com a terra;

Ó irmãos meus do mundo inteiro, vinde, acorrei todos, cheios de esperança, a este cimo ensangüentado: agora podeis salvar-vos... se quiserdes. Amém.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O dia Eucarístico - Sacrifício

O dia Eucarístico 
Sacrifício


I - Dizia São João da Cruz: - “È importante em sumo grau que a alma se exercite no amor, para que, consumindo-se rapidamente, não fique limitada a esta terra, mas se esforce por contemplar a face do seu Deus”.

Porém a angélica irmã de Santa Terezinha do Menino Jesus, acrescentou: - “Oferecer-se ao Amor como vítima não quer dizer oferecer-se às doçuras, às consolações; pelo contrário, é oferecer-se às angústias e a todas as amarguras, porque o Amor só vive pelos sacrifícios... Quanto mais queremos nos abandonar ao Amor, tanto mais devemos nos abandonar à Dor...” (História de uma alma- cap. XII).

Que sabedoria nas palavras do Mestre! Que exposição admirável nas palavras da discípula!

Eis porque a alma eucarística, filha privilegiada do amor, também é (e por força) filha privilegiada da dor. Tardamos já em bem dizê-lo: a Eucaristia não é somente sacramento do amor, é também sacramento da dor. Jesus Sacramentado é o Deus da dor; Seu amor por nós é o amor da dor.

II – Hoje um só sacrifício existe na nossa religião, é a santa Missa, que é essencialmente o sacrifício do Calvário. Do sacrifício do Calvário se distingue como o rio da fonte: ao sacrifício do Calvário nada acrescenta à fonte de onde brotou.

No universo, que é o grande templo de Deus, o Calvário foi o verdadeiro primeiro altar; depois, cada altar tornou-se Calvário. Sem Cruz, hoje não haveria Eucaristia, não haveria sacrifício. A Cruz e a Hóstia! Ó palavras santas que resumem um único mistério de dor e de amor!

Não se pode achar a Cruz, viva e verdadeira, senão na hóstia; e não pode haver hóstia sem cruz.

Na Eucaristia, pois, ou na santa Missa, o conceito da dor entra por três modos: como sacrifício em gênero; como sacrifício da Cruz; e, por fim, como sacrifício eucarístico.

III – Qualquer sacrifício não importa somente em dor, mas dor suprema, porque, em qualquer sacrifício, para que seja perfeito, é indispensável que a vítima, realmente, ou, pelo menos misticamente, se imole e se consuma. Portanto onde não há imolação ou consumação não há sacrifício. E vice-versa, quanto mais a vítima é imolada, tanto mais o holocausto é perfeito.

Assim, a perfeição do sacrifício se mede pela perfeição da imolação e da consumação.

Até quando a ovelhinha se debate e estrebucha, até quando bala e se lamenta, recebeu o golpe, mas ainda não morreu. Já é vítima, já seu sangue corre aos borbotões.

Mas, somente quando não se lamentar mais, somente quando não balar mais, somente quando estiver perfeitamente morta há de ser perfeita vítima, porque, então unicamente (consummatum est!) há de ser perfeitamente imolada e destruída.

Tudo isto é indispensável a qualquer sacrifício, visto que dele constitui a essência; tudo isto é indispensável à santa Missa, mesmo considerada como sacrifício em gênero.

IV- Muito mais ainda se for considerada como sacrifício da Cruz.

Toda a vida de Jesus já fora uma imolação, iniciada no momento em que, fazendo-Se homem, não desdenhou o seio de uma virgem.

Desde aquele instante, Sua imolação cresceu e progrediu ao mesmo tempo em que os anos de Sua idade.

Sua existência inteira foi uma Missa única, posso dizer assim: em Belém estava no Gloria; o santo velho Simeão, apertando-O nos braços, recitou o Offertorio. A entrada triunfal em Jerusalém foi o Prefacio... Porém o momento soleníssimo daquela Missa de trinta e três anos foi sobre o Calvário, quando a augusta Vítima, inclinando a cabeça, entregou o espírito...

Cristo foi sempre vítima em toda a Sua vida; mas só quando nEle tudo ficou consumado tornou-Se a vítima perfeita. E tudo nEle ficou consumado quando se realizaram aquelas palavras há um tempo terríveis e amáveis, que para sempre alegrarão e farão chorar a humanidade: crucifixus, mortuus est sepultus est!

V – Não menos comovente é a santa Missa como sacrifício eucarístico.

Como já foi dito, ela é idêntica ao sacrifício do Calvário, quanto ao sacerdote, e quanto à vítima. Na verdade falta a morte real (*); porém o aniquilamento eucarístico é de fato uma morte, mística e incruenta, sim, mas inefável e única possível a Deus.

São Paulo, medindo o abismo da encarnação, diz que o Filho de Deus exinanivit semetipsum – “fazendo-Se homem, aniquilou-Se a Si próprio”. (Fil. II, 7).

Expressão esta digna do grande Apóstolo!

Ora, a Eucaristia, se é lícito falar assim, é um passo adiante, é o último passo da Encarnação.

Na Encarnação, o Filho de Deus tomou uma forma ainda mais humilde, a forma de comida e bebida. Na Cruz, só estava escondida a divindade; na Eucaristia também o está à humanidade. Por isto podemos dizer que a Eucaristia é um passo mais adiante, o último passo da Encarnação. Santo e divino mistério nunca estudado suficientemente!

Já o próprio ato da consagração, considerando em si mesmo, é terrível, porque reduz Jesus Cristo a este estado de aniquilamento. A língua do sacerdote, quando pronuncia as palavras sublimes da consagração, é como uma espada de dois gumes, a fazer morrer moralmente o Cristo; separa-Lhe o corpo do sangue, e o sangue do corpo, consagrando em separado as duas espécies.

VI- Resumindo, temos que a santa Missa é o único sacrifício propriamente dito da religião nossa; é o sacrifício da Cruz; é o sacrifício eucarístico. São três as razões ou motivos que, na santa Missa, encerram o conceito essencial da dor, antes da dor suprema que é a imolação e a consumação mística ou real da vítima.

Eis porque a sagrada Eucaristia não é só o Sacramento do amor, mas também é essencialmente o Sacramento da dor.

E Jesus que é o nosso Jesus no Seu adorável Sacramento?

É essencialmente vítima, e, portanto, essencialmente o Deus da dor.

Não é preciso provar isto, sendo corolário e conseqüência de tudo o que dissemos até aqui.

No conceito geral de sacrifício, Jesus entra como único Cordeiro que rigorosamente possa aplacar, agradecer, glorificar o Pai Celeste, e obter graça para todos.

No sacrifício do Calvário, Ele entra como Protagonista crucificado, no sacrifício eucarístico entra como Hóstia Santíssima, Cordeiro, Crucificado, Hóstia, eis o Deus da dor.

VII – Coisa admirável, com efeito, todos os deuses do paganismo se rodearam de flores, de prazeres, de alegrias. Só um Deus se coroou de espinhos e de humilhações, o Deus do Calvário, o Crucificado.

Tirando-Vos a dor, que Vos resta adorado Jesus? Que Vos resta de belo, de amável, de grande, se não és mais o Cordeiro, Crucificado, Hóstia?

Que seríeis Vós sem feridas, sem coroa de espinhos, sem Cruz? Que seriam Vossas mãos e Vossos pés sem pregos, Vosso coração sem aquela abertura que formou o gozo dos santos? Dirão que sem a dor Vos restaria o amor. Ah! Mas sem a dor, que é o próprio amor senão um fogo fátuo, uma moeda desvalorizada, um dom vão? Não é a dor que forma o brilho, a força, a vida do amor?

Não é a dor que eleva o amor, e o faz grande, nobre, divino? Enfim, não é a dor que torna mais bela a beleza, mais santa a santidade, mais inocente a inocência, mesmo?

Não me digas, pois, ó Diletíssimo meu, que sem a dor Vos restaria o amor, quando é principalmente a dor que Vos faz belo, que Vos faz querido e amável. Por isto, a dor Vos precede, Vos acompanha; Vos segue, por isto és o Vir dolorum – “o Homem das dores” por isto és o Deus do amor, do qual a dor é a prova, a vida e a coroa!

VIIISe assim não fosse, Vos, ao saíres do sepulcro, assim como deixaste o sudário e as faixas, terias deixado também o sinal das Vossas chagas.

Mas, não! Ressurgis-Vos com todos os estigmas, para seres compreendido em Vossa beleza. Sim, ó Jesus, são os sinais da dor, que fazem belíssima para sempre Vossa humanidade deificada, já que as chagas ficaram em Vossa carne como rubins preciosíssimos em coroa de ouro.

O mesmo que os selos no xerografo ou nos decretos do rei, tal são Vossas chagas, selos de Vossa Paixão. Sem as cinco chagas, sem aqueles divinos selos, não serias hoje um Jesus timbrado, isto é, um Jesus autêntico; nem autêntica seria Vossa lei; nem autêntica Vossa religião e Vossa Igreja.

Sem os sinais de Vossa dor, não terias comovido, convertido e atraído a Vos a humanidade inteira, porque Vos, sem aqueles sinais, não terias sido tão grande, tão nobre, tão magnífico como És. Não terias sido o Salvador, o Redentor do mundo.

Nem mesmo terias sido um simples herói. Que são os heróis senão grandes desventurados? e não são somente os heróis da história, porém mesmo os heróis da fábula...

Assim, agora compreendo porque, quando o Divino Ressuscitado, pela primeira vez, Se apresentou a Seus apóstolos, Seus irmãos, reunidos no cenáculo, sentiu a necessidade de acompanhar com um gesto divino a divina saudação da ressurreição.

A saudação da ressurreição foi esta: “Pax vobis” – “A paz seja convosco!” e o gesto do Ressuscitado foi enquanto saudava, apresentar-lhes as mãos e o lado: Et cum hoc dixisset ostendit eis manus et latus (João, XX, 2º).

Ó Deus da dor, prostro-me aos Vosso pés e suplico perdão, de tanta coisa que disse sobre o sofrimento e sobre o sacrifício, quando bastava citar unicamente esta cena evangélica. Bastava só o Vosso gesto, ó ressuscitado Senhor.

Se Vós próprio apresentastes Vossas mãos, se Vós próprio mostrastes Vosso lado, que posso dizer ainda, que posso excogitar de mais para fazer compreender a força, a grandeza, a divindade da dor?

Ah! Basta, já não falo mais; emudeço, Senhor. Para sempre resôe em Vossos lábios a saudação: “A paz seja convosco!” E para sempre fiquem-nos presente Vossas mãos e Vosso lado: Salvete, Christi vulnera, immensi amoris pignora – "Ó chagas de Cristo, penhor de eterno amor, eu Vos saúdo”. (Hino de louvor na festa do preciosíssimo sangue). – “Ó Coração de amor, inclina fonte de água límpida, vem; ó Coração, delícia dos celestes, e esperança dos mortais, atraídos por Vossos convites, vamos a Vos suplicantes.” (Hino da festa di Sagrado Coração de Jesus).

IX- Avante, ó almas eucarísticas, vossa hora já chegou; chegou o momento de vossa ação sobre a terra. Quantas lágrimas caíram já, nas chagas de Jesus! Quantos beijos lhes foram dados! Quanto bálsamo nelas derramado!

A consideração destas chagas benditas e o amor para com elas formou os santos, isto é, formou almas de imolação e de sacrifício, filhas privilegiadas da dor, as vítimas. Os crucificados, as hóstias da Igreja.

E formou-as pela virtude da Eucaristia.

Os dons de Deus como todas as Suas obras não podem ser espedaçadas nem deformadas.

Assim, não se pode deformar nem espedaçar a Eucaristia. Tentar isto seria destruí-la, como seria destruir o Crucificado ousar modificá-lO ou corrigi-lO. Destruíram-nO de fato em Sua verdadeira imagem todos os infelizes incrédulos que ousaram cometer tão sacrilégio atentado. Jesus Cristo ou se aceita todo inteiro ou dEle nada se aceita. Dá-se o mesmo com Suas obras e com Seus dons, dá-se o mesmo com Sua obra prima que é a Eucaristia. Como é essencialmente sacramento, é essencialmente sacrifício, a divina Eucaristia; antes é sacrifício, e depois é sacramento.

Mas, onde está o sacrifício, a imolação, está a dor, mesmo a dor suprema. Uma Eucaristia que não admite imolação, não é mais sacrifício, e, se não é mais sacrifício, é falsa Eucaristia. Como falso seria o Cristo que não fosse Vítima Crucificado, Hóstia. Um Cristo que não é o Deus da dor, já não é verdadeiro Cristo, já não é verdadeiro Deus. Seria um deus do paganismo.

X- Tirando a conseqüência, devemos imediatamente concluir que é falsa alma eucarística a alma que só aceita a Eucaristia como sacramento, e não como sacrifício, que na Eucaristia só busca o amor e não a dor; que dela aprecia o gozo e recusa à pena. Falsa é a alma eucarística que em Jesus Sacramentado procura o Esposo dileto e não o Esposo crucificado, que se agrada das carícias e não das provas; das flores e não dos espinhos; dos sorrisos e não das cruzes. Estaria no engano uma tal alma, se se julgasse alma eucarística, ainda que fizesse a santa Comunhão todos os dias. Oh! quantas vezes se é obrigado a fazer a sagrada Comunhão todos os dias, mas isto quando se é livre, e se ama as flores e os prazeres, e se aborrece a dor, a mortificação, a cruz! Neste caso, ficai certos, não durará muito a comunhão quotidiana.

A alma verdadeiramente eucarística é a que faz cada dia a santa Comunhão, mas cada dia aspira ao sacrifício, à crucificação, à imolação; e aspira a isto por virtude, e como fruto da mesma Eucaristia que cada manhã recebe.

Esta alma, quanto mais é sacrificada, imolada, crucificada, tanto mais é eucarística, e vice-versa.

Entre uma e outra coisa há conexão de causa e de efeito, de premissa e conseqüência, tanto que sem medo de errar pode-se dizer: - “É alma verdadeiramente eucarística? Então será uma alma verdadeiramente imolada. É uma alma imolada? Só pode ser uma alma eucarística”.

XI – Ó almas aflitas, atribuladas, infelizes, falta-vos a resignação, a força, a calma? Arrastai-vos sob o peso da cruz, levando-a a força e, talvez, em desespero, como os dois ladrões? E por quê?

Ou não fazeis a santa Comunhão, ou a fazeis raramente, ou a fazeis mal. A divina Eucaristia possui e dá a força da imolação e do sacrifício. Se fazeis a santa Comunhão cada dia, e cada dia com empenho, oh! também vós adquirireis a calma na dor, a força na desventura, o conforto na Cruz. Também vós em breve vos tornareis uma vítima digna de Deus.

Oh! se o mundo compreendesse esta verdade!

Quantos desesperados de menos ele teria, se mais e melhor fosse freqüentada a santa Comunhão, que possui como virtude própria a força de tornar grandes as almas, conforme a necessidade que têm.

Ó Vós que sofreis indizivelmente ou no corpo ou na alma, ou em um e outro ao mesmo tempo; ou na pessoa ou na família, e na substância, mas que sofreis com o sorriso nos lábios, com a força na alma, com a calma no coração, em suma, que sofreis com a coragem dos santos, não faleis, ficai silenciosos, não é preciso que me manifesteis o segredo da vossa força, eu o adivinho e percebo: fazeis cada dia a santa Comunhão... respirais Eucaristia... viveis da Eucaristia...

Basta isto; nada é preciso acrescentar. Podeis ser mártires, possuindo a força de Deus, de Deus crucificado.

Sim, almas afortunadas, como na época dos mártires, a passagem era fácil dos ágapes, dos banquetes santos das catacumbas às fogueiras, aos circos, ais dentes dos leões, esfaimados no anfiteatro Flavio, assim hoje a passagem é fácil da mesa eucarística, às lutas da vida, aos combates espirituais, produzidos pela enfermidade, pela indigência, pelas perseguições, por qualquer desventura.

Quereria levantar a voz e fazer ouvir e uma extremidade do mundo à outra esta verdade tão doce: “a santa Eucaristia basta para fazer mártires...”


XII – Eis o grande atleta São Inácio.

Condenado às feras, de Antioquia, onde era bispo, transportaram-no à Roma. E a viagem foi toda um martírio, glorioso prelúdio de gloriosíssimo fim.

Roma pagã não se mostrou tão ávida de assistir ao cruel espetáculo quanto ele de lh’o oferecer; os leões do anfiteatro Flavio (o Coliseu) não sentiram tanta fome de devorá-lo quanto ele se ser devorado. Foi esta a sua única oração durante o trajeto: Utinam fruar bestiis... tantum ut Christo fruar!... Que palavra sublime! – “Queira o Céu que só para gozar de Cristo eu goze das feras!

Mas sublime é seu grito quando, na arena do anfiteatro, em presença de oitenta mil espectadores, se encontra com os leões, soltos na jaula. Enquanto as feras rugidoras e furiosas o fitam e preparam o salto... o grande confessor de Cristo se ajoelha, junta as mãos, e exclama: “Frumentum Christi sum, dentibus bestiarum molar ut panis mundus inveniar Sou o frumento de Cristo; serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me pão muito puro...” Não acabara de falar e os leões já o haviam devorado.

Quão nobres e delicados são os corações dos santos!

Estes três pensamentos, ou melhor, este pensamento único e completo de Santo Inácio mártir é propriamente divino.

Mais se medita nele, e mais se lhe goza a doçura. Sobretudo o pensamento de Santo Inácio é deveras um cântico eucarístico: - Desejar ser frumento, para ser triturado, e tornar-se pão de Cristo, puro e sem mácula, triturado pelos dentes dos leões... Que pensamento pode haver de mais elevado e delicado?

Que desejar de mais nobre e generoso?

Melhor ainda: Que pedir a Deus e obter de mais eucarístico que pede e obtém Santo Inácio mártir? Ele adivinhou o desejo de todos os santos; exprimiu em forma nobilíssima a aspiração de todas as almas verdadeiramente eucarísticas. E a aspiração é esta: “Ser frumento, para ser triturado pela dor e tornar-se pura hóstia de Jesus Cristo.”

Ao menos especialmente concedei tal graça às almas enamoradas de Vós, ó Senhor, para que todas de todo coração digam e repitam: “Frumentum Christi sum, dentibus bestiarum molar ut panis mundus inveniar!...”

Da dor, porém, não nos podemos afastar tão depressa. A alma verdadeiramente inflamada pela Eucaristia, sobre o Calvário, ao lado de Jesus Crucificado, deve aprender todos os ofícios dolorosos de qualquer alma eucarística.

* Nota do blogue: (Morte real no sentido de físico, natural.)

(A alma Eucharistica, por Padre Antonino de Castellammare, capuchinno, tradução feita por uma filha de Maria, Sociedade Editora São Francisco das Chagas, 1929.)

PS: Grifos meus.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

II – Maria

Terceira parte
II – Maria


Maria, Sua Mãe, antes que todos.

Há o recordar dos nossos amigos e o de nossa mãe: o recordar das mães é mais vivo, mais extenso, mais amante. Só às mães é dado reencontrar no filho já homem os olhares cândidos e sedutores da criança. Elas não esqueceram com que dor e com que alegria deram aquele ser frágil ao mundo.

As mães quereriam conservar sempre pequenino o filho, tomá-lo nos braços, estreitá-lo ao seio, numa palavra, ser sós para ele só, a fim de que o filhinho querido ainda tenha precisão delas. E, como o tempo que marcha não mais o permite, então elas revivem nas suas recordações aquelas cenas encantadoras da infância do estremecido.

Maria não escapou a esta doce tirania do amor materno.

Maria auten conservabat omnia... hace in corde suo (Lc. 2, 19,51).

Maria conservava todas essas coisas no Seu coração.

É por isto que, quando, erguendo os olhos angustiados, Ela divisava no cimo da Cruz a face lívida e sangrenta de Seu Filho querido, ó Deus, como tornava a ver, através daqueles traços aviltados, o rosto encantador da criança de Belém e de Nazaré!

Quem de nós não há sentido, em alguma hora de tristeza e de lágrimas, subitamente passarem diante de si os antigos quadros da sua ventura? É o contraste cruel do passado e do presente; são os tons claros da aurora que se maravilhara ao lado da noite brusca em que a tormenta estala e escurece o pleno dia.

Belém, os seus terraços, as suas oliveiras escalonadas, os pastores que acorriam ingênuos e confiantes, dando tudo – tudo, aquele pouco que lhes fazia a riqueza: - Belém, a noite que se ilumina, os anjos que cantam por cima do caro Menino enfaixado... Mas é forçoso fugir, Herodes lá está: partamos, levemo-lO depressa... Tomou-O Maria; e a estrada do exílio traça-se penosamente na areia do deserto.

Eis o Nilo, “uma água tranqüila e pálida” (Lc. 2,19); as longas pirâmides, a esfinge irônica e silenciosa, os obeliscos rígidos, e os deuses acorados no fundo dos templos.

Maria tem a fronte inclinada sobre o amado rostinho, é quanto Lhe basta.

Sorri o Menino, o Menino cresce: aquela boca que hoje obstruem o sangue e a escuma da morte, aquela boca pronunciou o nome de Maria – e com doçura! – pela primeira vez.

O exílio já não é exílio quando se tem Jesus. Desfruta-O Maria, não quisera sair do deserto, sobretudo se é para ir ter àquele cimo do Calvário. Está realmente ali o contraste doloroso entre o passado e o presente.

E depois a Virgem Mãe revê Nazaré: a casinha escondida, a oficina, o Menino que brinca por entre a madeira e os cavacos, e toda a obscuridade dos dias felizes. Só se lhes vê a felicidade depois: seguiam-se aqueles dias, sem arruído, como as horas doces que se não ouvem soar, e parecendo-se todos. No entanto, o semblante querido mudou: o oval tão puro revestiu os seus primeiros tons de gravidade em seguida a uma palavra incompreensível:

- Então não sabíeis que eu devo ocupar-me primeiro das coisas de Meu Pai?... (Lc. 2,19). A Mãe obediente não compreendeu: não importa, o Menino é obediente.

Depois, morto o pai nutrício, é o só a só íntimo entre Ela e Ele... Ele, o Menino já feito moço. Ela acompanha com emoção todo o trabalho do pensamento divino naquela fronte que se alarga e se ilumina. Antes, Ela dava carícias e beijos: Ele era pequenino; agora, recebe luzes: aqueles olhos falam, aqueles lábios falam, Ela escuta, tem a melhor parte. À noite, punha-Se aos pés do Filho, para melhor Se fartar.

Em torno dEla ignora-se o grande mistério... Que Lhe importa? Sabe-o Ela, e como o goza! Durara essa dita inefável perto de trinta anos: - parecera curta – até uma noite em que Jesus Lhe dissera, em meio às Suas lágrimas, que Eles iam deixar-se. E a partida tivera lugar no dia seguinte; a Mãe contemplando o Filho tão querido partir pelas grandes estradas da Galiléia, sozinho, sem discípulos ainda, e Ela sem poder segui-lO: estava finda a Sua ventura.

Durante os três anos de vida pública, raro o havia Ela visto só a só; a grande missão absorvia o Messias: o rosto, crestado pela fadiga e pelo sol, tornara-se-lhe mais grave, a Mãe via a sombra da Cruz ensombrar pouco a pouco e de antemão aquela fronte que Ela beijara.

E, hoje, também Ela estava à sombra daquela Cruz, nela se mantinha de pé.

E, quando ao cabo desses quadros vivos e fugazes que se Lhe aceleravam nas reminiscências, Ela via por que horrenda realidade terminava a Sua antiga ventura, uma angústia indizível confrangia-A toda, Ela cambaleava quase, e, na escuridão do Calvário, Suas mãos, que Lhe procuravam um apoio e se estendiam ainda para o Seu amor, encontravam só e sempre a Cruz onde morria Jesus.

Consolar-se da Cruz pela Cruz; arrimar-se nos desfalecimentos àquela Cruz que nos oprime; deixar-se banhar pelo sangue de Jesus, ao qual misturamos o nosso; não ter nenhum outro confidente e não ser o Deus que fere, e sob os Seus golpes redobrados conservar-se ainda de pé como a Mãe das dores, stabat Mater: poucos cimos mais elevados na subida do Calvário. Porém as almas que são chamadas nos sofrimentos do dileto têm de galgá-lo, nele manter-se ainda, e, pelas suas chagas mais do que pelos seus lábios, cantar o cântico do amor indefeso.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Madalena, a perdoada)

PS: Grifos meus

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Semblante do Senhor

Terceira parte
O Semblante do Senhor


O antigo semblante

É nesse momento que os nossos olhos devem elevar-se até aquele vértice sangrento da Cruz, para aí contemplarem, num misto de pasmo, de assombro e de amor, o Semblante do Senhor.

Vimo-lO, exclama dolorosa e antecipadamente o profeta Isaías. Non erat aspectus, não era de ver-se, pois era só horror, e pensávamos com aflição e com saudade no que fora outrora aquele Semblante... Et desideravimus eum (Is. 53).”

É coisa natural, quando se está em presença de um semblante amado, mas desfigurado, coberto da vergonha dos escarros, sulcado de sangue, é coisa natural pensar em como o vira a gente outrora.

Quantum mutatus ab illo (Eneida, Virgílio, I. II, v. 274.): não é este o grito que escapa então de todos os lábios? Como está mudado!... Faz-se então uma comparação entre aquilo que se vê e aquilo que se tinha visto. Reflexão dolorosa, mesclada de admiração, de tristeza profunda; e, através dos palores da morte, e em meio aos apagamentos e aos tons lívidos que aquela morte produz, remontamos – bem longe talvez – até à beleza antiga, até ao encanto penetrante dos olhos e do sorriso. Quantum mutatus ab illo: ó Deus, como está mudado! non est species ei negue decor. Hoje, nem encanto, nem beleza, nem esplendor: porém a palidez, o sangue e a morte.

Esta reconstituição do ente caro amesquinhado e desprezado é o amargo consolo daqueles que amaram.

Estavam lá, ao pé da Cruz, em grupo cerrado e lúgubre, os fiéis amigos, os que amam até ao desfalecimento, ao desprezo e à desonra aparente dAquele que conheceram: e todos, naquele grande silêncio, falavam, no fundo da alma, com as recordações comovidas daquele belo Semblante.

Maria, Sua Mãe, Madalena, a perdoada, João, o amigo do coração, Maria Cléofas e algumas outras, os fiéis até o fim. Durante aquelas três longas horas, em que fez quase noite, mal podem eles enxergar naquela escuridão o semblante lívido do Mestre. A cabeça está às vezes horrivelmente pendida para frente, esmagada pela odiosa coroa; os cabelos, empastados de sangue e suor, caem pesadamente sobre o peito; longas estrias vermelhas correm pelas faces cavadas, a boca entreaberta aparta os lábios adelgaçados, roxos, já ressecados; os olhos estão cheios de lágrimas, langrerunt oculi prae inopia (Sl. 87,12), e também cheios de sangue; sempre este sangue, há-o por toda parte, de toda parte escorre, em tanta cópia era preciso pelos nossos pecados.

Non erat aspectus. Não, não é mais uma face humana, e cada um dos espectadores pensa então em segredo no antigo e belo Semblante.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Maria.)

PS: Grifos meus

domingo, 17 de abril de 2011

Jerusalém

Jerusalém


Quando se sai desse drama do Pretório, tem-se o coração oprimido: tanta boa vontade real, em aparência, e tão deplorável fraqueza! Por que razão Pilatos parece tão culpado, e o é a ponto de ficar como doloroso sinônimo da covardia, tal como Judas ficou sendo o da traição? E porque será que não há mais cruel injúria do que comparar alguém a esses dois entes?

É que ambos são traidores. O primeiro traiu seu Mestre e amigo: o segundo traiu a verdade reconhecida e aprovada. Grande coisa é ter visto a verdade; porquanto Pilatos, por mais que se defenda, a viu.

Reconhece que aquele homem não é culpado; a consciência, o bom-senso, a honra mais comezinha chamam-lhe, pois, que O livre; mas ele não o faz.

É o eterno remorso dos poderes públicos, em que tudo repousa, o haverem traído em proveito do próprio interesse a verdade que deviam defender. Quando Deus Se mostra algures, a nenhuma criatura é dado apagar facilmente e sem crime os vestígios da Sua passagem. Deus quer ser notado; quer mais: a preferência.

É a base de toda a felicidade eterna.

Nós iremos finalmente para aquilo que houvermos preferido. É a lei da nossa predestinação.

Oh! minha alma, que preferes no conjunto como no particular? Para onde pende o teu coração? Para cima ou para baixo? Para o céu ou para a terra?

O amor é um peso, sobe ou desce: e nós seguimos os movimentos do nosso coração.

Jesus, que também segue os pendores do Seu, lá se vai para o Calvário. Todo o Seu ser físico a isso repugna, entretanto; mas Ele sabe que lá em cima salvará a humanidade e dará a Deus Seu Pai a maior glória possível. Vai, pois, entremeando assim a áspera alegria com a ditosa dor.

Conquanto todo o ciclo das torturas íntimas pareça percorrido, há, todavia um tormento que Jesus ainda quis aturar, e sensibilíssimo Lhe foi este, posto que, à primeira vista, pareça submerso no mar doloroso da Paixão.

Jesus era homem, era Judeu: por esta dupla razão, amava já profundamente a Sua terra.

Jerusalém era, para os filhos de Israel, o lugar caro mais que todos, a cidade bendita, a pátria comum que a absorvia todas as pátrias particulares. Era somente cantando, de etapas em etapas, que o povo se dirigia para a cidade santa.

As crianças cresciam na esperança, longamente acalentada, de verem enfim o Templo onde Deus se dignava de pôr o vestígio dos Seus passos eternos; os velhos que não mais podiam refazer o caminho viviam e choravam ainda dessa recordação.

Independentemente dessa presença radiosa de Deus no Templo sagrado, Jerusalém merecia, sob todos os pontos de vista, essa admiração e esse culto de raça.

Por qualquer lado que se lhe chegasse, a cidade resplandecia de luz e de frescor. Em a vendo hoje tão desolada, sem árvores, quase despida de toda coroa de verdura, com as suas muralhas pardacentas onde se acocoaram os leprosos, custa-se a crer nesse antigo esplendor. Mas é mister ver Jerusalém como a viu Jesus, como a viram os Romanos, como a admiraram os Judeus antes das ruínas de Tito.

A perspectiva mais maravilhosa era sem contradita quando se voltava de Betânia; persiste ainda hoje empolgante, se bem que, da altura, o olhar, para chegar até Jerusalém, tenha que errar pelas mudas desolações do vale do Josafat. Hoje em dia, com efeito, este vale é sombrio, semeado de lajes chatas e alvas, que são túmulos. Apenas, aqui e acolá, algumas oliveiras. E, nos flancos das montanhas, veredas que se estiram por entre aquelas desoladas muralhas de pedras secas, sem um musgo, sem uma folha, sem um raminho de erva... Um pouco de verdura alegra, entretanto os fundos de Siloé, onde se adivinha a piscina pelas amoreiras mais frescas e pelos vastos campos de alcachofras, cujas vergônteas cerradas tapizam o solo mais úmido naquele ponto; o resto da paisagem é árido, anuviado de pó e de tristeza.

Mas, no tempo de Jesus, as linhas dessa mesma paisagem mergulhavam as arestas ressequidas nos mássicos de verdura.

Eram só vergeis cobertos de flores alvas e róseas, vinhedos escalonados, tufos de tamargueiras, copas de amoreiras, e os sicômoros que baixaram quase por toda parte os seus ramos até o chão.

Quando, do cimo da montanha das Oliveiras, se descia por sob aqueles emaranhados de folhagens, só se via a princípio aquele gracioso trançado de ramos pejados de flores; mas, de repente, através desses ramos, surgia naquele cenário de verdura a alta silhueta de Jerusalém; o Templo dominava todo o vale profundo do Cedron, onde se entressachavam os cedros negros; as muralhas ameadas da cidade formavam já uma coroa leve sobre aquelas moles sombrias, e por cima cintilavam os telhados do santuário ofuscante de ouro e a despedir de todas as partes raios flamejantes no meio dos mármores brancos que chapeavam o edifício: era, no dizer dos contemporâneos, como que uma pilha de fogo sobre montanhas de neve.

Do outro lado da cidade, por trás do Templo, guindavam-se ainda as três altas torres construídas por Herodes: Fazael, que lembrava a forma do farol de Alexandria; Mariana, toda de mármore tão unido, que se dissera de uma só peça; e Hípicos, que tinha quarenta metros de altura.

A estas três torres, “cuja beleza e fortaleza eram tão extraordinárias que, no dizer de Josefo, nenhumas havia no mundo que lhes fossem comparáveis” (História da guerra dos Judeus contra os Romanos, t. II, I. V, c. XIII.), cumpria acrescentar a torre octogonal de Psefina, tão elevada que do seu vértice podia ver-se o Mediterrâneo.

Todo esse conjunto de vastas construções em cima de uma montanha que, de per si, já atingia oitocentos metros formava um fundo de cena tão grandioso, num céu amiúde marchetado de azul e de rosa, com as esteiras de púrpura do sol por detrás em poente, que, mesmo ainda hoje, em que não há mais nem Templo, nem Psefina, nem Fazael, nem o fogo dos ouros, nem a neve dos mármores, a gente murmura ao só aspecto daquela cidade a se alterar no mesmo céu inflamado: “Jerusalém, Jerusalém, se jamais eu te esquecer, penda-me o braço sem força e adira-me a língua ressequida ao palato”.

Foi assim que a viu Jesus quando descia ao passo lento do burrico as encostas de Getsêmani para galgar as da porta Dourada, onde estrugia o Hosana. Então, movido por aquele esplendor, parou e chorou.

Chorou porque via, num futuro muito próximo, todas aquelas maravilhas esboroar-se, aquela glória fenecer, e uma desolação suprema vaguear por aquelas ruínas.

Ela lá está ainda, lá está divinamente, essa desolação prometida: só isto pode explicar o estacar da civilização às portas daquela cidade a mais antiga, a mais gloriosa do universo. A dor de Jesus paira sobre aquelas paisagens áridas, parece que susta até o surto irresistível da vegetação.

Não há culto festivo em Jerusalém; não levam ali os cristãos senão passos contristados e um semblante desolado; e ainda é para eles uma desolação derradeira o não poderem sequer manifestá-la por expansões públicas e livres de todo entrave.

Forçoso é, muitas vezes, apressar-se, como se se perpetrasse um crime, para ir beijar aquele túmulo vazio e aquela rocha aberta do Calvário; todos os ritos ali se topam, todas as crenças se misturam, trocando entre si meros olhares de comiseração ou de inveja, quando só deveria haver um imenso e mesmo amor. Guardas assalariados fumam e bebem ao pé do Calvário, a dez passos do sepulcro, explorando todo cristão que entra e especulando-lhes com as divisões intestinas.

E a gente sai daquele torvelinho estranho com a alma contristada, com a fé atônita, com uma impressão indelével da desolação predita pelo próprio Jesus, cuja palavra reboa lúgubre e sempre aflitiva por sobre aquela dolorosa agitação:

- Jerusalém, Jerusalém, se tivesses querido (tudo está, portanto, na nossa vontade)... se tivesses conhecido o tempo ditoso em que te visitava o teu Deus (há um tempo, ó minha alma, e, passado esse tempo, é tarde demais)! Eis virá um dia (já veio) em que as tuas muralhas serão sitiadas; do teu Templo não ficará pedra sobre pedra (contudo, ele era tão belo! mas nada encontra graça ante a cólera de Deus). Serás arrasada, calcada aos pés pelas nações, e permanecerás deserta e desolada.

Et videns civitatem flevit super illam (Lc. 19,41).

E, avistando a cidade, chorou.

Só ao Homem-Deus pertence o desolar-Se e chorar sobre o futuro, porque só Ele o conhece. A nós, disse-nos Ele na Sua bondade: sufficit diei malitia sua (MT. 6,34). A cada dia basta a sua pena. Mas Ele, cujo dia é eterno, Ele vê a malícia certa do amanhã, toca-a, penetra-a, chora-a.

Nós não pensamos bastante nesse olhar de Deus sobre nós, no passado, sem dúvida, mas também no futuro.

Muitas vezes, é no seio dos nossos fervores, pródigos de flores como uma primavera, é aí que Ele poderia parar um instante para chorar sobre os nossos lamentáveis fraquejamentos do dia imediato: Ele os vê todos.

Quando veio pela vez primeira à nossa alma, oferecendo-nos sua boca a beijar e Seu sangue a beber, Ele sabia em que cálices iríamos mais tarde molhar os lábios: mas, nem por isto, retirou o cálice que nos oferecia.

Via o que as nossas mãos haviam de tocar e nossos olhos de olhar: mas, nem por isto, fechou os braços que nos abraçavam; o Seu amplexo não foi mais apressado, nem menos amoroso o Seu olhar. Mas talvez Ele tenha chorado no segredo divino que os espíritos celestes penetram, videns civitatem flevit super illam, e os anjos tenham podido admirar-se de ver que, depois do sangue que Ele nos dera, ainda Lhe restavam lágrimas a verter pela nossa inqualificável ingratidão.

Detenhamo-nos nestas lágrimas. Oh! Jesus, eu conto as que derramastes por mim. Encho com elas o cálice de ação de graças que elevarei cada dia diante de Vós, calicem salutaris accipiam, et nomem Domini invocabo (Sl. 115,13).

Desfere-se do Vosso coração magoado pela nossa ingratidão um clamor imenso, que nos salva mais do que nos condena. É o Calvário secreto que continuará até o fim dos tempos; à míngua do sangue, dais-nos as Vossas lágrimas, elas são uma prece que apagará a minha iniqüidade.

Foi assim que Jerusalém constituiu uma tortura íntima para o coração de Jesus Cristo.

Não é fora de propósito supor que, se Ele chorou entrando-a solenemente pela última vez alguns dias antes da Sua morte, no momento em que a deixava definitivamente para subir o Calvário deve ter sentido uma profunda e indizível emoção. É ai sair da porta Judiciária que Ele passa pela última vez as muralhas da cidade.

O Seu belo semblante, aquele semblante que Verônica, havia pouco, enxugara, aquele semblante tomado já dos palores da morte, inunda-se então de lágrimas novas. Por certo, os soldados que O cercam são gentios, Romanos a soldo, bárbaros; mas Ele bem sabe que lhes foi entregue pelos Seus, e, além disto, pode-os ver encabeçando o cortejo: os anciãos, os escribas, o próprio sumo sacerdote lá estão, nem um só quis faltar. E, por detrás, foge a cidade, a cidade do multifário rumor: não tornará Ele a entrá-la. Jerusalem, Jerusalem, si cognovisses, se tivesses sabido, Jerusalém!

Dobrado é o suplício quando nos vem de nossos irmãos: na asperidade derradeira da morte, já algum consolo em que o golpe fatal nos seja dado por mãos estranhas.

Jerusalém, Jerusalém, se ao menos eu fosse traído por um inimigo... (Sl. 54, 13; 14,15) queixa-se dolorosamente Jesus; mas por ti, Israel, meu amigo, com quem eu vivia e tomava o meu repasto!”

Tais são os pensamentos que ocupam naquele momento supremo o espírito e o coração de Cristo. Ocupam-no ainda nas solidões do Sacrário, cada vez que Ele tem de sair de uma alma brutalmente expulso pelo pecado.

Alma escolhida, privilegiada Minha, que te havia Eu feito?...”

Ó silêncio, ó queixas amorosas, ó Jesus expulso, se eu Vos encontrar no meu caminho, vinde a mim, vinde dentro de mim, vinde: recebo-Vos por todos aqueles que Vos repelem; sirva o meu amor subitamente dilatado de asilo aos Vossos amores atraiçoados e abandonados.

Há almas que Deus amou muito, e que serão reprovadas. As mais ingratas não são as que mais queridas foram?

Há nações que, semelhantes a Jerusalém, são finalmente rejeitadas, talvez no dia seguinte às maravilhas de amor realizadas em seu seio. Jerusalém, si cognovisses et tu!

O amor verdadeiro mede-se pela fidelidade. Não é tudo o ter sido amado por privilégio, se nós mesmos, no momento em que Deus passa, não retribuímos amor por amor.

Então Deus leva o Seu coração a outros; Ele pode suscitar filhos de Abraão do seio árido dos rochedos, podem os lírios brotar do lodo.

Entretanto Jesus avança, é meio-dia, o Templo retine do som das trombetas sagradas, o sol faz reluzir ao longe os ouros dos telhados e a neve dos mármores, o incenso fumega no interior e sobe tão alto que forma uma coluna por cima do Santo dos Santos; os cordeiros balam na piscina probática, onde os mergulham antes do grande sacrifício da nona hora, os estrangeiros enchem as ruas estreitas ou os átrios do Templo, e a multidão vai crescendo incessantemente.

Nesse momento, o cortejo sinistro dos condenados à morte chega ao cimo do Calvário.

Jesus é pregado na Cruz.

E volve as costas a Jerusalém, que não quer mais ver, com os dois braços estendidos para o Ocidente, onde os Seus olhares moribundos fitam, no longínquo dos espaços e dos tempos, os povos novos que O esperam...

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Terceira Parte: O semblante do Senhor)

PS: Grifos meus.