quinta-feira, 31 de março de 2011

IV- Meditação (final) - Jesus no Jardim das Oliveiras

IV- Meditação (final)
Jesus no Jardim das Oliveiras


Consideremos Jesus na agonia. Aproxima-se o momento em que Jesus é preso pelos Seus algozes; sofre já no Seu coração todos os tormentos de que Seu corpo vai ser vítima... Não sente somente os tormentos do corpo flagelado senão também todas as dores que merecem os pecados da humanidade.

Ó Jesus, Vós sofrestes também as penas dos meus pecados, para me poupardes, aos tormentos do inferno!

A Vossa agonia foi tão dolorosa que o Eterno Pai Vos enviou um Anjo do céu para Vos confortar. E Vós, Senhor, nesse momento de extrema amargura recorrestes à oração! “Et factus in agonia profixius orabat” e entrando em agonia orava mais intensamente. Que lição Vós me dais, ó Divino Salvador! Por maior que seja a amargura da minha vida, eu terei confiança na bondade do Pai celeste, que sempre me confortará e serei perseverante na oração por mais longo que seja o meu sofrer.

Senhor, antes de terminar esta hora santa passada em união conVosco, permiti que eu faça a minha comunhão espiritual para me unir mais intimamente a Vós.

Comunhão espiritual

Ó Jesus, que tão ardentemente desejais unir-Vos às almas para as santificardes:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus, verdadeira luz que nos ilumina neste mundo e nos mostrais o caminho do paraíso:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus, força de Deus, que nos amparais em nossas fraquezas e consolais em nossas armarguras.
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus, exemplar divino de todas as virtudes:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus, fonte inesgotável de todos os bens:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus. Pão da vida, que alimentais com a graça divina as almas que Vos recebem:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus, sabedoria infinita, que dissipais as trevas das inteligências que Vos procuram:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ó Jesus que estais presente na Hóstia Consagrada para que as almas Vos recebam:
Todos: Vinde e vivei em mim.

Ò Jesus, eu Vos amo de todo o meu coração e desejo ardentemente receber-Vos ao menos espiritualmente.
Todos: Vinde e vivei em mim.

(Oração retirada do livreto: Venha a nós o Vosso Reino, manual de piedade para as alunas das irmãs missionárias do Sagrado Coração de Jesus, 1959, com imprimatur)

PS: Grifos meus.

Ver as outras meditações desta série:

terça-feira, 29 de março de 2011

III Meditação – Jesus no Jardim das Oliveiras (III de IV)

III Meditação (III de IV) 
Jesus no Jardim das Oliveiras


Consideremos no horto abandono de Seus discípulos. Jesus, oprimido pelo sofrimento como que necessitando de um socorro, levanta-Se e dirige-Se ao lugar onde mandou a Seus discípulos que esperassem. É bem terrível vermo-nos sós no meio de sofrimentos atrozes! Mas os discípulos dormem. Oh! como devemos contar pouco com os homens ainda que sejam nossos amigos!

Os discípulos dormem; não puderam acompanhar o seu divino Mestre durante uma hora... Judas, porém o traidor, aproveita aquela hora para entregar Jesus aos seus inimigos. Como são diligentes e ativos os homens sob o influxo do espírito maligno!...

Vigiai e orai para não sucumbirdes à tentação, disse Jesus aos Seus discípulos, como que repreendendo-os docentemente: “Já que não pensais em Mim, pensai ao menos em vós, porque o espírito mau está de vigia e a carne ou a criatura humana é fraca”.

Fracos somos nós também, Senhor, e bem reconhecemos os benefícios que nos dispensais. Aceitai, ó Jesus, a nossa ação de graça e ouvi benigno as nossas súplicas para podermos resistir as tentações.

Ação de graças

Meu Deus é a Vós que devo o ser e a vida, o corpo e a alma:
Todos: Meu Deus, eu Vos agradeço todos os Vossos benefícios.

É a Vós Senhor, que eu devo a vida sobrenatural que me faz Vossa filha, herdeira do céu:
Todos: Meu Deus, eu Vos agradeço todos os Vossos benefícios.

É a Vós, Senhor, que eu devo todas as graças necessárias à minha santificação e todos os Sacramentos:
Todos: Meu Deus, eu Vos agradeço todos os Vossos benefícios.

É a Vós Senhor, que eu devo os Anjos e Santos meus protetores, especialmente a minha Mãe do céu:
Todos: Meu Deus, eu Vos agradeço todos os Vossos benefícios

Meu Deus, dignai-Vos aumentar o meu reconhecimento, para poder repetir com um mais vivo sentimento de gratidão:
Todos: Meu Deus, eu Vos agradeço todos os Vossos benefícios.

Atos de súplica

Meu Deus, eu creio em Vós, mas aumentai a minha fé, tornai mais firme a minha esperança e mais ardente o meu amor por Vós:
Todos: Jesus ouvi a minha oração.

Meu Deus abençoai os meus pensamentos, as minhas palavras e as minhas ações:
Todos: Jesus ouvi a minha oração.

Meu Deus abençoai a minha família, preservai-a do pecado e socorrei-a em suas necessidades espirituais e temporais:
Todos: Jesus ouvi a minha oração. 

Meu Deus abençoai o Soberano Pontífice, os Bispos, os Sacerdotes e os fiéis de toda a Igreja Católica:
Todos: Jesus ouvi a minha oração. 

Meu Deus suscitai vocações sacerdotais e religiosas, convertei os pecadores, aumentai o fervor dos justos e assisti aos moribundos:
Todos: Jesus ouvi a minha oração. 

Meu Deus aliviai as almas do Purgatório, particularmente as almas dos meus parentes, benfeitores e amigos:
Todos: Jesus ouvi a minha oração.

(Oração retirada do livreto: Venha a nós o Vosso Reino, manual de piedade para as alunas das irmãs missionárias do Sagrado Coração de Jesus, 1959, com imprimatur)

Savall suona la viola da gamba

Savall suona la viola da gamba


domingo, 27 de março de 2011

Por este Sinal vencerás

In hoc Signo vinces.”
Por este Sinal vencerás.
(Euseb. vit. Const., 1,22)


Nota preliminar
(da primeira edição francesa)

No mês de novembro deste ano, chegou a Paris, para seguir os cursos de um colégio de França, um jovem católico, pessoa de grande distinção. Fiel ao uso tradicional de fazer o Sinal da Cruz antes e depois de comer, foi, desde o primeiro dia, objeto de espanto para os condiscípulos pensionistas.

O dia seguinte, em virtude da – liberdade dos cultos – o objeto das zombarias era ele.

Vindo-me visitar, pediu-me que algo lhe eu dissesse a respeito do Sinal da Cruz; pois os condiscípulos pretendiam fazê-lo envergonhar-se de o fazer.

Respondem àquele pedido as cartas seguintes.(Nota do blogue: total de 23 cartas)

Paris, 1862 – Monsenhor Gaume.

Sétima carta
Paris, 2 de dezembro de 1862.

Meu caro Frederico,

Os que desprezam o Sinal da Cruz ou dele desdenham não podem ter dúvida nenhuma com relação ao lugar que o Sagrado Sinal ocupa no mundo.

Tais indivíduos pertencem a uma classe hoje muito numerosa: é a classe dos que de nada duvidam porque ignoram tudo.

Tu, porém, deixa por um instante a sede de Juiz e, dando-me tua mão, em rápida viagem, percorre comigo os mundos – antigo e moderno.

Visitemos primeiro a brilhante antiguidade.
Peregrinos da verdade; entremos no oriente e no ocidente.

Memphis, Athenas, Roma.

São três grandes centros de luzes, que nos convidam a visitar as escolas de seus sábios. Vejamos que dizem estes mestres ilustres sobre os pontos cujo conhecimento mais nos interessa.

O mundo é eterno, ou foi criado?
Se foi criado, quem foi o seu criador?
É corpo ou espírito, o autor da natureza?
É ou não é eterno?
É livre, independente?
É um só ou são muitos?

As respostas são – hesitações, incertezas, flagrantes contradições.

Que é o bem?
Que é o mal?
Qual a origem do bem e do mal?
Como o bem e o mal se acham no homem e no mundo?
Há um remédio para o mal ou é incurável?
Se tem remédio, qual é ele?
Quem o possui?
Como se pode obter?
De que modo se aplica?

Hesitações, incertezas, fragrantes contradições, são as respostas.

Que é o homem?
Entra na sua essência uma coisa chamada – Alma?
É um fogo?
É matéria aeriforme?
Morre com o corpo?
Sobrevive ao corpo?
É espírito?
Qual é o seu destino?
Qual a finalidade de sua existência?

E as respostas a estas e mil outras questões, não passam de hesitações, incertezas, flagrantes contradições.

Ah! Meus grandes povos, meus grandes homens!

Apesar de tão pretensiosos, vós não sabeis nem a primeira palavra de uma resposta a estas questões fundamentais!

Não sois mais do que – notáveis ignorantes!

Que importa saber fabricar sistemas, compor sofismas, inundar de eloqüência as escolas, os senados, os areópagos?

Que importa saber guiar carros no circo, edificar cidades, dar batalhas, conquistar províncias, tornar a terra e os mares tributários de vossa avareza?

Ignorais o que sois, donde vindes, e para onde ides?
No dizer de um de vós mesmos não passais de uns suínos mais ou menos gordo, lá no rebanho d’Epicuro!... – “Epicuri de grege porci.” – Eis o mundo antigo.

Com a divulgação deste Sinal eloqüente que é o Sinal da Cruz essas vergonhosas trevas se dissiparam.

Aprendendo a fazer o Sinal da Cruz, o homem, ilustrado ou não, aprende a ciência de Deus, do mundo, e de si mesmo.

Repetindo-o constantemente, grava-se-lhe no fundo da alma esta doutrina a ponto de jamais esquecê-la.

Digam o que disserem: graças ao uso tão freqüente do Sinal da Cruz em todas as classes da sociedade, tanto nas cidades e como nas aldeias o mundo católico dos primeiros séculos e da idade média conservou em grau até então desconhecido, o conhecimento da ciência divina, mãe de todas as ciências e mestra da vida.

Poderia acontecer o contrário disto?

Se durante anos, certo homem repete um erro dez vezes por dia, dele fica plenamente compenetrado e com ele, para assim dizer, se identifica.

Ora, se isto acontece com o erro, porque não há de acontecer com a verdade?

Desejas a contra-prova?

Continuemos nossa viagem e entremos no mundo moderno.

Abandonou ele o Sinal da Cruz e desde esse tempo, não mais teve a seu lado um monitor que lhe avivasse a cada instante os três grandes dogmas indispensáveis à vida moral.

Por isso que olvidou o Sinal da Cruz, Criação, Redenção e Glorificação, essas três verdades fundamentais são para ele como se não existissem.

Não vês o que ele está sendo em matéria de ciências? Semelhante ao mundo de outrora, tu ouves o mundo de agora gaguejar vergonhosamente sobre os princípios mais elementares da religião, do direito, da família e da propriedade.

Que fundo de verdades alimenta suas conversas? 
Que contêm seus livros de política e de filosofia? 
À luz de que fachos anda ele com sua vida política e particular? 
E que pensas tu dos jornais? 
Na torrente de palavras que despejam diariamente na sociedade, quantas idéias sãs poderás apontar, com relação a Deus, ao homem, e ao mundo? 
Qual é a sabedoria deste mundo, deste século de luzes, que não sabes fazer o Sinal da Cruz?

Igual ao mundo pagão que lhe serve de mestre e de modelo.
O mundo de hoje só conhece e adora

o deus-eu,
o deus-comércio,
o deus-dinheiro,
o deus-ventre,
o deus-prazer.

Conhece e adora

a deusa-indústria,
a deusa-politicagem,
a deusa-volúpia.

Por serem meios de satisfazer a todos os seus maus desejos, ele conhece e adora as ciências da matéria: - a química, a física, a mecânica, a dinâmica; as essências, os sulfatos, os nitratos, os carbonatos.

Eis aqui destes séculos as suas divindades e o seu culto.

Eis aqui a teologia, a filosofia, a política, a moral, a vida do mundo moderno: - O egoísmo com seus vícios. – Progredindo assim, breve estará ele bem a par dos contemporâneos de Noé, destinados a morrer nas águas do dilúvio.

Para aqueles também consistia-lhes toda a ciência em conhecer e adorar os deuses do mundo moderno.

Consistia em comer, beber, edificar, comprar, vender e casar cada um, a si e aos outros na depravação.

O homem tinha concentrado sua vida na matéria.

Havia-se ele mesmo tornado carne: ignorante como as carnes e manchado como as carnes. (1)

De todas estas más tendências, qual é a que falta ao mundo atual?
De resto, nada de melhor o mundo hoje exige de sua própria essência.

Não sabendo fazer e não fazendo o Sinal da Cruz, ele se materializa.

Em virtudes, pois da lei de gravitação moral, o gênero humano tem forçosamente de recair no estado em que estava antes de amar a este Sinal salvador.

Digamos a este mundo ignorante de hoje:

O Sinal da Cruz é um livro que nos educa e nos eleva.

Sob tal ponto de vista, podes agora julgar se era sem razão que nossos pais constantemente faziam o Sinal da Cruz.

Agora vais ver que, há uma ignorância mui deplorável do mundo atual é que se deve imputar, em grande parte, o abandono do Sinal da Cruz.

Que é a ignorância?

É a indigência do espírito.

Em matéria de religião, ela acusa sempre a indigência do coração. E tal indigência procede da fraqueza em – praticar a virtude e repelir o mal.

E porque existe tal fraqueza? É porque o homem despreza os meios de obter a graça e de torná-la eficaz.

O primeiro, o mais pronto, o mais vulgar, o mais fácil destes meios, é, como sabes, a oração. E de todas as orações, a mais fácil, a mais pronta, a mais vulgar, e, talvez, a mais poderosa, é o Sinal da Cruz...

Nota:

1Sicut autem in diebus Noe ita erit et adventus filis hominis. Sicut enim in diebus ante diluvium comedentes nubentes, et nuptui tradentes… donec venit diluvium et tulit omnes. (Math., XXIV, 37,38,39.)

- Edebant et bibebant; emebant et vendebant; plantabant, et oedificabant. (Luc., XVII, 28.)

- Omnis quipe caro corruperat vitam suam super terram. (Gen., VI, 12)
- Quia caro est. (Ibid., 3.)

(Excertos do livro: O Sinal da Cruz por Monsenhor Gaume, Protonotário Apostólico, livro que de Pio IX mereceu um “Breve” especial, primeira tradução brasileira cuidadosamente calcada sobre a 4ª edição francesa, 1950)

sexta-feira, 25 de março de 2011

O segundo Pilatos – Os expedientes

O segundo Pilatos – Os expedientes



A palavra de Pilatos, caindo no silêncio contido daqueles sacerdotes impacientes de sangue e de morte, foi seguida de um clamor imenso que surpreendeu e conturbou o procurador.

A vista de Jesus que chegava nas pegadas do Romano aumentou os brados e as exclamações: estes partiam da multidão; da multidão, já espessa e marulhosa, que ocupava o fundo da praça, sombria orla de onde se desprendiam murmúrios e surdos rumores denunciadores de profundezas de ódio insuspeitadas.

Pilatos poderia crer-se voltado aos maus dias de Cesaréia. Pensava só ter que ver com uma camarilha: os sacerdotes; e achava-se em face da multidão.

Até ele subia com concerto de furores e de acusações, e, inclinado sobre todas aquelas bocas ululantes, a custo podia o procurador precisar a forma e os matizes daqueles selvagens depoimentos. Cansado de lutar, voltou-se para Jesus e perguntou-Lhe, já um tanto ansioso:

- Estás ouvindo?

E, como Jesus Se calasse:

- Não ouves então de quantos crimes eles te acusam?

E Jesus nada respondeu. É provável que, destrinçando no meio dos gritos os principais agravos, Pilatos os fosse reproduzindo a Jesus; porque mais tarde ele dirá ao povo: - Bem vistes que eu o interroguei na vossa presença.

Jesus obstinava-Se em calar-Se, e isto muito admirava o juiz; pressentia este algo de anormal, de grande, quiçá de sobre-humano, naquele homem singular. Surge então o segundo Pilatos, que a todo custo quer livrar-se daquela pesada questão, mais ainda do que livrar Jesus. Porque aquela questão subitamente se ampliou e, mercê do concurso da multidão, quase assume as proporções de um tumulto popular. É forçoso sair dela: Pilatos procura a porta de saída.

Lançar aquele homem, que ele diz inocente, em pasto ao povo em furor, ele ainda tem algum escrúpulo disso. Vira e revira o problema; de repente uma palavra sobe até ele: falaram da Galiléia. Será que Jesus é galileu? E, como lhe respondem afirmativamente, logo Pilatos aproveita a ocasião e declina competência. Sendo galileu, é de Herodes que o acusado depende. Ora, Herodes estava justamente em Jerusalém, e pouco se entendia com os Romanos. Ao mesmo passo que se descartava do embaraço, Pilatos demonstrava certa deferência a Herodes: tudo seria, pois, pelo melhor. Assim, não tendo surtido efeito a improcedência, este expediente agora será mais feliz: Herodes que decida!

No fundo, Pilatos cedia ainda. Era, além do mais, uma primeira covardia; porque, afinal, se ele sentia o dever de ordenar a improcedência, com que direito encaminhava Jesus a Herodes?


Ou Jesus era culpado ou não era. Ora, Pilatos acabava de dizer que Ele não era culpado. Logo, não tinha senão que manter a sua primeira decisão. Mas não ousa, procura safar-se da dificuldade; é bem o superior fazendo resvalar habilidosamente à responsabilidade sobre outro.

Entrementes ele torna a entrar, mais uma vez safou-se; a multidão também se vai, corre com os sacerdotes e com os anciãos para o paço de Herodes: a praça fica limpa, tudo vai realmente pelo melhor.

Reis, governai afoitamente”, diz Bossuet. Nada é mais prejudicial a um povo, a uma família, a um agrupamento qualquer, do que governá-los por expedientes. Não se contenta a ninguém, nem a si nem aos outros: essa destreza tresanda a prestidigitação.  A probidade repele os processos oblíquos, e a franqueza é sempre um pouco de altivez, porque é aceitar as conseqüências da própria palavra e dos próprios atos. Isto pressupõe força e honra; ora, não é a altivez feita destas duas coisas? Elas faltavam totalmente a Pilatos.

Não tardou que novos clamores viessem tirá-lo da sua covarde quietude. Herodes recambiava-lhe Jesus; divertira-se à custa dEle, mas nada julgara.

Cruelmente volvido às suas perplexidades, Pilatos quis, ainda assim, tirar proveito de Herodes. Este era Judeu, ele se lhe valeria do nome; além de que a sua diligência não devia ter desagradado ao povo... Quem sabe? Tudo ia talvez poder terminar razoavelmente. Desta vez, ele manda vir à sua presença os príncipes dos sacerdotes, os sinhedritas, e, para lisonjear a todos, à própria ralé, faz-se acessível, simula condescender, entrar-lhes nas vistas: é quase bonancheirice.

- Trouxeste-me este homem, diz-lhes ele, e apresentastes-mo como um agitador pernicioso do povo. Interroguei-o na vossa presença, e vós mesmos pudestes ver que, de tantos capítulos de acusação, nenhum sério pude reter contra ele, Ademais, não me circunscrevi ao meu próprio juízo: encaminhei esse Jesus a Herodes, e vós com ele, a fim de que pudésseis repetir todas as vossas acusações. Herodes ouviu tudo, e ele mesmo nada achou nada que merecesse a morte. Todavia, se alguma coisa houver que tenha melindrado as vossas leis, vou mandar castigá-lo, estará dito tudo, e mandá-lo-ei embora.

Pilatos cedia, e era uma nova covardia. Por que esse castigo? Se se tratava da flagelação, não tinham os Judeus necessidade da sua permissão para esse suplício, que lhes não transcrevia o direito. Mas eles só lhe haviam trazido Jesus para a morte: claríssimamente fora isto declarado, e desde o começo. – Não podemos matar ninguém, haviam dito desassombradamente os sacerdotes, e então vimos pedir-vos que o façais por nós. – A flagelação era, portanto, um rigor inútil, incapaz de engodar os sacerdotes e de saciar o povo.

Fizeram-no sentir ao Procurador. Como o seu faro cruel, a turba dos sacerdotes e a plebe amotinada viram bem depressa o afrouxamento de Pilatos. O impulso estava dado, restava somente carregar brutalmente sobre aquele pobre coração vacilante e sobre aquele espírito em apuros, para acabar de fazê-los soçobrar.

Por sua parte, Pilatos parecia, entretanto enrijar-se no pensamento de livrar Jesus; parece mesmo que a sua compaixão despertada e não sei que temor reverencioso o induziam a esse partido. Em todo caso, ele já avançara demais para recuar. Publicamente e por duas vezes declarara que não achava nenhuma causa de morte naquele homem: não queria, contudo, engolir todas as vontades daqueles Judeus opiniáticos e invejosos, porque no fundo lhes farejou a baixa inveja.

Metade por amor-próprio, metade por comiseração natural, vai, pois compreender ainda o salvamento da vítima.

Na sua política cavilosa, acredita ter achado a melhor saída. Distingue maravilhosamente, naquela massa encrespada que lhe bate os degraus do tribunal, as cabeças e os cúmplices, os sacerdotes e a multidão. Que golpe mestre se conseguisse dividir aquelas duas categorias, a fazer salvar Jesus, contra os sacerdotes, pela multidão! O expediente pareceu-lhe uma idéia genial.

Era costume conceder ao povo o perdão de um condenado à morte por ocasião das festas da Páscoa. Ora, havia, que aguardava o suplício, um celerado famoso, por nome de Barrabás, o terror do povo, homicida e sedicioso por todos temido...

Certamente que, pondo ao lado dele Jesus, aquele Jesus que só bem fizera e que, diziam, havia estranhadamente curado cegos, leprosos, e até ressuscitado mortos, Jesus benfeitor público ao lado de Barrabás malfeitor consumado, e o povo encarregado de escolher, o povo só, pois é o sufrágio deste que se vai pedir, o voto não podia ser duvidoso.

Pilatos parece então abandonar o seu projeto de flagelação; senta-se no seu tribunal, e, com todas as mostras do poder que se faz indulgente, lança àquela turba fremente o seu hábil e inesperado dilema.

- Ou Jesus ou Barrabás? Escolhei.

E espera. Sem se dar conta, Pilatos cedia: era uma terceira e sinistra covardia. Cada vez mais se afastava do seu primeiro movimento, de bom, que dissera: Não há nada que repreender neste homem. Pôr Jesus ao lado de Barrabás era, pelo contrário, dizer: Ele é culpado. Era dizer mais: Ele já está condenado à morte, pois só se libertavam os condenados ao último suplício. Sem dúvida ele queria despertar no povo uma preferência por Jesus; mas afinal o põe no mesmo pé de igualdade porquanto toda eleição a fazer pressupõe uma certa igualdade nos indivíduos a eleger.

E Pilatos aguarda, fia do seu expediente; assim, quando, naquele momento, sua mulher lhe manda pedir que não se envolva em nada no caso daquele justo, ele a tranqüiliza: Jesus será salvo, é questão de tempo.

Sim, e justamente os sacerdotes empregam esse tempo; os sacerdotes, que vêem a tática do Procurador, espalham-se imediatamente pela multidão. Como um fermento secreto, qual veneno sutil, circulam, trabalham, fazem ferver os espíritos já escaldados; e, quando Pilatos se levanta e se inclina sobre o povo para ter a resposta, ouve só um grito: Non hunc! Este não! Jesus devia, pois, estar presente, pois parece que esse termo O designa e O indigita. Este não, dá-nos Barrabás. Non hunc, sed Barabbam.

(A Subida do Calvário, pelo Padre Luís Perroy, S. J; Editora Vozes, 1957, continua com o post: O terceiro Pilatos – O medo)

A pomba do dilúvio

A pomba do dilúvio


A pomba que, ao cair o crepúsculo da tarde, trouxe à família de Noé o ramo de oliveira, presságio da cessação do flagelo, diz Santo Alberto Magno, é evidentemente a imagem de Maria, que apareceu nos últimos vislumbres do mundo antigo, carregada da oliveira da paz.

Por estas palavras: "Eis aqui a serva do Senhor", Ela anunciava o apaziguamento da cólera divina. (Bibl. Mar. in Gen. 8,11.)

"Maria é a pomba inocente, imaculada e bela", dizem Santo Epifânio, Santo André de Creta e São Lourenço Justiniano.

(Por que amo Maria, pelo Padre Júlio Maria de Lombaerde, Vozes, 1945)

Oração - Anunciação

Anunciação



"Ó Maria, que fostes escolhida por Deus, entre todas as mulheres para serdes a Mãe do Redentor: alcançai-me a graça de pertencer ao número dos escolhidos que hão de gozar no céu dos frutos da redenção. 
Ave Maria, etc...

Ó Maria, que, sendo escolhida para Mãe de Deus preferistes a esta excelsa dignidade a Vossa virgindade, e só quando o Anjo Vos assegurou que com ser Mãe não deixareis de ser Virgem, anuístes à Sua proposta: concedei-me um amor tão grande à pureza, que por nenhum bem deste mundo eu consinta em perdê-la. 
Ave Maria, etc...

Ó Maria, que, sendo escolhida para Mãe de Deus, Vos oferecestes para ser a Sua escrava, fazei que eu me tenha sempre na conta de uma serva de Deus, cumprindo com exatidão a Sua santa Lei.
Ave Maria, etc..."

(Oração retirada do livreto: Venha a nós o Vosso Reino, manual de piedade para as alunas das irmãs missionárias do Sagrado Coração de Jesus, 1959, com imprimatur)

"Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado"

(Clique na gravura para ampliá-la - Belíssima)

"Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado"

Esta é a palavra do Senhor; não pode falhar. Havia Deus determinado fazer-Se homem para remir o homem decaído, e assim manifestar ao mundo Sua bondade infinita. Devendo para isso escolher-Se mãe na terra, andava buscando entre todas as mulheres qual fosse a mais santa e humilde. Entre todas as mulheres qual fosse a mais santa e humilde. Entre todas observou uma, e foi a virgenzinha Maria, que muito mais era perfeita nas virtudes, tanto mais simples e humilde era no Seu conceito: "Há um sem-número de virgens (a Meu serviço) - diz o Senhor - mas uma só é a Minha pomba, a Minha eleita" (Ct. 6,7 e 8 ). Por isso disse Deus, seja esta escolhida para Minha Mãe.

(Excertos do livro Glórias de Maria, por Santo Afonso Maria de Ligório)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Las martires carmelitas de Compiegne...

Nota do blogue: Deixo para apreciação a parte final do belíssimo filme: Le dialogue des Carmélites, quem ainda não assistiu esse filme, recomendo vivamente. (Ver filme inteiro AQUI)

LAS MARTIRES CARMELITAS DE COMPIEGNE...


A Mãe de Dom Bosco

A Mãe de Dom Bosco


Um dos inúmeros biógrafos de Dom Bosco diz textualmente que: "Dom Bosco foi grande, porque teve uma grande mãe".  Na verdade, toda a obra educativa de Dom Bosco foi um prolongamento da educação que sua mãe lhe deu. Esta educação não era fruto de tratados pedagógicos, mas sim de uma grande fé. No sistema educativo desta maravilhosa camponesa, Deus era a base e o vértice. Cedo ensinou seus filhos a fazerem suas orações cotidianas e quando Dom Bosco já era padre, ela ainda lhe cobrava se tinha feito suas orações. "Deus nos vê” repetia ela inúmeras vezes a seus filhos. Ou dizia: "foi Deus que criou o mundo e cravou lá em cima tantas estrelas. Se o firmamento é tão belo, que será o paraíso?”. 

Recomendava-lhes, igualmente, que fugissem das más companhias como da peste, e certa vez, chegou a dizer a seus filhos, ao notar uns rapazes que falavam palavras inconvenientes, que os amava, mas que preferia vê-los mortos naquela hora a serem como aqueles jovens. Essas lições sublimes far-se-ão sentir no apostolado de seu filho. Quando Dom Bosco já  se encaminhava para o sacerdócio,  ele  pensou  em  se  fazer  frade franciscano. Com isso, devido a pobreza que deveria viver se fosse tal, não poderia cuidar de sua mãe. Um padre conhecido falou com ela para que dissuadisse o filho da idéia. Ela o procurou e longe de fazer isso, estimulou Dom Bosco a cumprir com a Vontade de Deus: "só te peço que estudes bem a tua vocação. O que é necessário é que salves a tua alma. O pároco desejava que eu te dissuadisse do que pensas, por causa de mim e de minha velhice... Não te preocupes com o meu futuro. Nada quero e nada espero de ti... Se algum dia escolhesse a vida de pároco, e te tornasses rico, jamais poria os pés em tua casa...".

Dom Bosco não se tornou franciscano a conselho de São José Cafasso. Na hora em que Dom Bosco vestia a batina; Mamãe Margarida com lágrimas nos olhos, disse ao filho estas comovedoras palavras: "Acabas, meu querido João de vestir batina bem podes avaliar a alegria e o contentamento que por isso enchem o meu coração. Lembra-te que não é o hábito que faz o monge, mas a prática das virtudes. Se, por infelicidade vieres a duvidar da tua vocação, peço-te que não desonres a tua batina. Deixe-a imediatamente, porque eu prefiro ter por filho um pobre camponês, do que um sacerdote menos cumpridor dos seus deveres. Quando nasceste, consagrei-te a Santíssima Virgem; quando começastes os estudos, recomendei-te, quase exclusivamente, a devoção a Nossa Senhora; pois agora, te peço que sejas todo, absolutamente todo, d'Ela. Ama aqueles que A amam, e, se um dia chegar a ser padre, propaga, sem descanso, a devoção a tão boa Mãe”.

Após a ordenação sacerdotal de Dom Bosco, mais uma vez vemos as virtudes de sua mãe: "Ate que enfim é Padre, meu João! De futuro, dirás missa todos os dias. Lembra-te bem do que te digo: começar a dizer missa é começar a sofrer... Estou certa de que hás de rezar todas as manhãs por mim. Também não te peço mais nada. Agora, pensa só na salvação das almas, e não te preocupes absolutamente nada comigo".

Quando Dom Bosco já fazia seu maravilhoso apostolado com os jovens, ele precisava que sua mãe viesse morar com ele em Turim. Para tanto, ela precisaria abandonar a tranqüilidade de seu lar e vir ajudar o filho nas suas tarefas apostólicas. Quando Dom Bosco a consultou, sua resposta foi: "se achas que é essa a Vontade de Deus, podes contar comigo".

No oratório de Dom Bosco, ela cozinhava, costurava, trabalhava, enfim para inúmeros meninos. Por perto de dez anos ela incansavelmente trabalhou para os jovens de Dom Bosco, chegando a ponto de vender seu enxoval para ajudar nas despesas da casa.

Enquanto viveu orava sem cessar e a isso aconselhava os jovens de Dom Bosco. Cumprida plenamente  sua  missão, faleceu  na paz do Senhor em 25 de Novembro de 1856, às receber o  Santo Viático de  seu  confessor, o Padre Borel. Chorada pelos alunos de Dom Bosco, ela é vista como aquela que forjou o grande apóstolo da juventude e, é exemplo de desprendimento e de dedicação as mães de nosso tempo.

(O Desbravador - Setembro 2006)

PS: Grifos meus.

terça-feira, 22 de março de 2011

O Fruto da Paixão

O Fruto da Paixão


Adimpleo ea quae desunt passionum Christi

Eu cumpro em mim o que falta à Paixão de Jesus Cristo

Destas palavras do apóstolo São Paulo tirarei as considerações da simples instrução que me resta fazer-vos como complemento de tudo que deixei dito sobre a Paixão.

Bastantemente meditamos em várias predicas este adorável Mistério, no qual tantos atributos de Deus se nos revelam: a Sua onipotência, sabedoria, santidade, justiça e bondade. A Sua onipotência – porque vimo-lO na Paixão triunfar do universo pelos meios aparentemente mais vis e fracos. A Sua sabedoria – porque vimo-lO conciliar maravilhosamente os direitos da Justiça com os desejos da Misericórdia, punindo o pecado e ao mesmo tempo perdoando ao pecador. A Sua santidade – porque vimo-lO punir inexoravelmente o Inocente, só porque se Lhe mostrou revestido das aparências do pecado. A Sua bondade – porque entregou Seu Filho à morte para nos salvar.

Revelando-Se assim os atributos de Deus, o Mistério da Paixão revela também a enormidade do pecado, a sua pena eterna, e o preço da nossa alma. A enormidade do pecado – porque só o mérito infinito de um Deus crucificado pode expiá-lo. A sua pena eterna – porque, sendo infinito o mérito de Jesus Cristo, a Sua morte foi um remédio infinito. Ora, um remédio infinito supõe uma desgraça infinita, que Jesus Cristo veio evitar; e não haveria proporção entre o pecado e a Sua morte se a pena do pecado não fosse o inferno. O preço da nossa alma – porque para salvá-la não duvidou Deus dar o Seu próprio sangue; e quem de pouca valia pode julgar a sua alma vendo-a assim prezada pelo Deus Redentor?!

Mas, se a Paixão nos ensina tudo isto, qual deve ser para nós o fruto da Paixão?!

Os mistérios que nesta quaresma temos estudado serão cenas teatrais a que viestes assistir; ou fontes de salvação onde viestes beber tantos remédios quantos são os males que em vós tem produzido o pecado?!

Por ventura a Igreja, exibindo aos vossos olhos essas reproduções plásticas da Divina Tragédia da Paixão, tem o intuito de impressionar-vos apenas; e esses quadros que com tanto afã viestes contemplar – a Agonia, a Flagelação, a Coroação de Espinhos, o Caminho do Calvário, a Crucificação – só devem ter o efeito de despertar a vossa sensibilidade e provocar a vossa condolência?!

Não. Porque a Igreja, em relação a Paixão, nos ensina duas verdades capitais: 1.ª, os mistérios da Paixão não são somente fatos que se consumaram há dezenove séculos; são, como todos os mistérios e obras de Nosso Senhor, fatos permanentes, sempre reproduzidos, como se cada dia eles se realizassem de novo.

Jesus Cristo abrange todos os séculos e tempos; o passado, o presente e o futuro: Christus heri et hodie ipse et in secula. Se isto é verdade, máxime em relação a Paixão, pois ela vive sempre no augusto sacrifício da Missa e é sempre eficaz nos Sacramentos que todos tiram sua virtude do precioso sangue de Jesus Cristo.

2.ª: Jesus Cristo, sofrendo por todos os homens, sofreu particularmente por cada um de nós, como se cada um de nós fora o único que tivesse pecado e necessitasse da Sua Paixão; de modo que a cada um foi aplicado o sangue de Jesus Cristo tão exclusivamente como se todos os outros não estivessem nas mesmas condições.

Eis em relação à Paixão as duas verdades capitais sem as quais ninguém pode tirar dela o devido fruto; porque este fruto só provém da aplicação que cada um faz a si próprio dos méritos e satisfações de Jesus Cristo.

Eis porque dizia o apóstolo São Paulo: “eu satisfaço em mim o que falta à Paixão de Jesus Cristo.”

Mas, que é que podia faltar à Paixão de Jesus Cristo? Por ventura não foi ela completa? Sim, em relação a Jesus Cristo; não, em relação a cada um de nós.

É preciso que cada um se aproprie dela, torne-a sua, para que então a Paixão de Jesus Cristo seja completa em relação a cada um de nós.

Era isto o que queria significar o Apóstolo. Ele, que tinha evangelizado os Gentios, confundido os Gregos, assombrado o mundo, e que num rapto sublime fora elevado ao terceiro céu, compreendia, não obstante, que se não poderia salvar senão completando em si a Paixão de Jesus Cristo. Vós, pelo contrário, entendeis que, concorrendo apenas a estas solenidades da Igreja; contemplando os quadros alegóricos da Paixão; ouvindo as predicas do orador sagrado e acompanhando pelas ruas da cidade os sagrados préstitos, tendes a vossa salvação segura!...

Eu lamento, porém, a vossa ilusão, e com fraqueza vo-lo declaro: se a vossa piedade se reduz a isto, de nada vos serviria a Paixão de Jesus Cristo; para vós ela é como que se não existisse. De fato, para muitos ela não existe.

Como dizia S. Bernardo, há homens para quem Jesus Cristo ainda não nasceu, não viveu, não sofreu, não morreu, não ressuscitou e não subiu ao céu.

Quais são eles? Todos os que pensam como vós, isto é, todos os que se limitam a ver as cenas da Paixão como cenas de teatro, ou ouvi-las descrever apenas como episódios patéticos e trágicos.

Todos os mistérios de Nosso Senhor têm duas partes; uma exterior: o corpo do mistério; outra interior: o espírito do mistério. O corpo do mistério são as circunstâncias exteriores no meio das quais ele se realizou. O espírito do mistério é o que se passou no espírito de Nosso Senhor quando Ele o operou, isto é, os pensamentos do Seu entendimento, os afetos, os Seus desígnios e, mais que tudo, as virtudes que praticou: humildade, pobreza, obediência, caridade.

Ora, o corpo do mistério nem todos podem reproduzi-los; porque só graças extraordinárias podem transformar um homem numa imagem real e aparente de Jesus Cristo.

O espírito do mistério, porém, todo o cristão pode e deve, quanto comportarem as suas forças, reproduzi-lo em si, adaptando os diferentes estados de sua vida aos correspondentes mistérios de Jesus Cristo; tendo também, como Ele, o seu Belém, o seu Egito, o seu Nazaré, o seu templo, o seu Batismo, o seu Deserto, a sua Missão, a sua Paixão, o seu Calvário, para que, como Ele também, possa ter a Ressurreição e triunfo no céu.

Esta reprodução de Jesus Cristo como se a faz? Imitando-O. É nesta imitação que consiste a nossa garantia de salvação, porque diz o Apóstolo: “Aqueles que Ele conheceu Ele predestinou a serem conformes à imagem de Seu Filho, primeiro nascido entre muitos irmãos.”

Sem essa imitação não há salvação; e, quanto mais perfeita for à imitação, mais segura será a salvação.

Por isso todo intuito da Igreja, nestas como noutras solenidades, é reproduzir em nós a figura de Jesus Cristo; e, se anualmente nos apresenta representados ao vivo os mistérios de Sua Paixão, é para que deles nos apropriemos devidamente.

Todos estes mistérios são meios de santificação que nos devem conduzir a procurar o sangue de Jesus Cristo. Onde o encontramos, esse sangue precioso que único pode nos lavar do pecado? Nos quadros da Paixão que tanto gostais de contemplar?! Nas imagens do Crucificado que tanto vos apraz olhar?! Nas procissões a que com tanta presteza concorreis?!

Não! Nos Sacramentos, canais da Graça, vasos do precioso sangue de Jesus Cristo, expressões sagradas da vontade de Deus, que assim como na ordem física não comunica a vida natural senão por meio de determinados instrumentos, de intermediários, de Sacramentos sobrenaturais.

Vede: na ordem natural Deus não opera senão por intercessão de coisas ou de pessoas.

Ele poderia nos alimentar diretamente, ou pelo menos dar a nossa própria substância o vigor bastante para subsistirmos. Entretanto, colocou em organismos naturais a vida que se nos comunica; e, se não recorremos a terra, a planta ou ao animal, não poderemos subsistir, não poderemos ter a vida física. Poderia também diretamente curar um doente ou instruir um ignorante; mas não o faz senão por intermediário do médico ou do mestre.

Porque se estranha que Ele proceda do mesmo modo na ordem religiosa? Ele poderia nos dar a Graça diretamente e infundir em nós o Seu precioso sangue. Não o faz, entretanto, senão por meio dos Sacramentos; e, se queremos a vida divina, havemos de recorrer aos mananciais que a contêm.

Aliás, se na vida divina, como todos os cristãos facilmente aceitam, é preciso um Sacramento para nascer, outro para crescer, outro para casar-se: porque não será necessário um Sacramento para curar-se do pecado, que outra coisa não é senão a moléstia da alma; e recuperar a Graça, que outra coisa não é senão a saúde, a vida divina do cristão?!

O doente não se cura sem o remédio,

O pecador não se regenera sem a confissão.

É neste adorável Sacramento que principalmente reside o fruto da Paixão, de cujos méritos não nos podemos apropriar senão recorrendo ao precioso sangue que Ele derrama sobre o pecador arrependido.

A confissão humilha, confunde, abate a vaidade, castiga o orgulho, violenta o amor próprio?! Mas é por isso justamente que cumprimos em nós a Paixão de Jesus Cristo, que se deixou humilhar, abater, confundir em castigo de nossas vaidades, orgulhos, cobiças e sensualidades.

Adimpleo ea quae desunt passionum Christi.

Sem a humilhação da penitência nenhum cristão pode dizer que cumpre em si a Paixão de Jesus Cristo. Sem a confissão, estas festas poderão ter impressionado os vossos olhos; as predicas deste pobre orador poderão ter agradado aos vossos ouvidos; mas tudo isto não terá convertido os vossos corações e de nenhum proveito vos terá sido a Paixão de Jesus Cristo.

O templo encheu-se literalmente para verem-se os quadros, ou para ouvir-se o orador?! As ruas regurgitaram de uma multidão compacta atrás dos emblemas e andores?! Nada disto vos aproveita, se esquecestes o caminho do confessionário; se não fostes receber naquela fonte viva do precioso sangue de Jesus Cristo a água que lava as iniqüidades, e o vigor que garante a vida eterna.

Este é o fruto da Paixão; e quem não foi colher este fruto na árvore de salvação que Jesus Cristo plantou na Sua Igreja não pode dizer que cumpre em si o que falta à Paixão de Jesus Cristo.

Adimpleo ea quae desunt passionum Christi.

Que cegueira a daquele que não compreende estas palavras!
Que confusão não será a sua na eternidade!

Verá, mas muito tarde, que Deus fez tudo por si: - revestiu-Se de sua carne, nasceu, sofreu, foi coberto de opróbrios, foi crucificado – tudo isto para salvá-lo; e toda esta fonte de vida, a Paixão de Jesus Cristo, não foi para ele senão uma fonte de morte!

Pode haver maior desventura, maior infortúnio, cristãos?! Não! Portanto, enquanto é tempo, que cada um se aposse do tesouro infinito do Divino Amor; que cada um se aproprie dos Sagrados méritos do seu Redentor; que cada um se habilite para poder dizer com o Apóstolo: adimpleo ea quae desunt passionum Christi: eu cumpro em mim o que falta à Paixão de Jesus Cristo. 

(A Paixão pelo Padre Júlio Maria de Lombaerde, Cruzada da Boa imprensa - Rio, 1937)

segunda-feira, 21 de março de 2011

VIVA SÃO BENTO!!!

Nota do blogue: Segue um capítulo da regra de São Bento. Pode-se encontrá-la por inteiro AQUI.

VIVA SÃO BENTO!!!



CAPÍTULO 7 - Da humildade

Irmãos, a Escritura divina nos clama dizendo: "Todo aquele que se exalta será humilhado e todo aquele que se humilha será exaltado". Indica-nos com isso que toda elevação é um gênero da soberba, da qual o Profeta mostra precaver-se quando diz: "Senhor, o meu coração não se exaltou, nem foram altivos meus olhos; não andei nas grandezas, nem em maravilhas acima de mim. Mas, que seria de mim se não me tivesse feito humilde, se tivesse exaltado minha alma? Como aquele que é desmamado de sua mãe, assim retribuirias a minha alma."

Se, portanto, irmãos, queremos atingir o cume da suma humildade e se queremos chegar rapidamente àquela exaltação celeste para a qual se sobe pela humildade da vida presente, deve ser erguida, pela ascensão de nossos atos, aquela escada que apareceu em sonho a Jacó, na qual lhe eram mostrados anjos que subiam e desciam. Essa descida e subida, sem dúvida, outra coisa não significa, para nós, senão que pela exaltação se desce e pela humildade se sobe. Essa escada ereta é a nossa vida no mundo, a qual é elevada ao céu pelo Senhor, se nosso coração se humilha. Quanto aos lados da escada, dizemos que são o nosso corpo e alma, e nesses lados a vocação divina inseriu, para serem galgados, os diversos graus da humildade e da disciplina.

Assim, o primeiro grau da humildade consiste em que, pondo sempre o monge diante dos olhos o temor de Deus, evite, absolutamente, qualquer esquecimento, e esteja, ao contrário, sempre lembrado de tudo o que Deus ordenou, revolva sempre, no espírito, não só que o inferno queima, por causa de seus pecados, os que desprezam a Deus, mas também que a vida eterna está preparada para os que temem a Deus; e, defendendo-se a todo tempo dos pecados e vícios, isto é, dos pecados do pensamento, da língua, das mãos, dos pés e da vontade própria, como também dos desejos da carne, considere-se o homem visto do céu, a todo momento, por Deus, e suas ações vistas em toda parte pelo olhar da divindade e anunciadas a todo instante pelos anjos. Mostra-nos isso o Profeta quando afirma estar Deus sempre presente aos nossos pensamentos: "Deus que perscruta os corações e os rins". E também: "Deus conhece os pensamentos dos homens". E ainda: "De longe percebestes os meus pensamentos" e "o pensamento do homem vos será confessado". Portanto, para que esteja vigilante quanto aos seus pensamentos maus, diga sempre, em seu coração, o irmão empenhado em seu próprio bem: "se me preservar da minha iniqüidade, serei, então, imaculado diante d’Ele".

Assim, é-nos proibido fazer a própria vontade, visto que nos diz a Escritura: "Afasta-te das tuas próprias vontades". E, também, porque rogamos a Deus na oração que se faça em nós a sua vontade.

Aprendemos, pois, com razão, a não fazer a própria vontade, enquanto nos acautelamos com aquilo que diz a Escritura: "Há caminhos considerados retos pelos homens cujo fim mergulha até o fundo do inferno", e enquanto, também, nos apavoramos com o que foi dito dos negligentes: "Corromperam-se e tornaram-se abomináveis nos seus prazeres". Por isso, quando nos achamos diante dos desejos da carne, creiamos que Deus está sempre presente junto a nós, pois disse o Profeta ao Senhor: "Diante de vós está todo o meu desejo".

Devemos, portanto, acautelar-nos contra o mau desejo, porque a morte foi colocada junto à porta do prazer. Sobre isso a Escritura preceitua dizendo: "Não andes atrás de tuas concupiscências". Logo, se os olhos do Senhor "observam os bons e os maus", e "o Senhor sempre olha do céu os filhos dos homens para ver se há algum inteligente ou que procura a Deus" e se, pelos anjos que nos foram designados, todas as coisas que fazemos são, cotidianamente, dia e noite, anunciadas ao Senhor, devemos ter cuidado, irmãos, a toda hora, como diz o Profeta no salmo, para que não aconteça que Deus nos veja no momento em que caímos no mal, tornando-nos inúteis, e para que, vindo a poupar-nos nessa ocasião porque é Bom e espera sempre que nos tornemos melhores, não venha a dizer-nos no futuro: "Fizeste isto e calei-me".

O segundo grau da humildade consiste em que, não amando a própria vontade, não se deleite o monge em realizar os seus desejos, mas imite nas ações aquela palavra do Senhor: "Não vim fazer a minha vontade, mas a d’Aquele que me enviou". Do mesmo modo, diz a Escritura: "O prazer traz consigo a pena e a necessidade gera a coroa".

O terceiro grau da humildade consiste em que, por amor de Deus, se submeta o monge, com inteira obediência ao superior, imitando o Senhor, de quem disse o Apóstolo: "Fez-se obediente até a morte".

O quarto grau da humildade consiste em que, no exercício dessa mesma obediência abrace o monge a paciência, de ânimo sereno, nas coisas duras e adversas, ainda mesmo que se lhe tenham dirigido injúrias, e, suportando tudo, não se entregue nem se vá embora, pois diz a Escritura: "Aquele que perseverar até o fim será salvo". E também: "Que se revigore o teu coração e suporta o Senhor". E a fim de mostrar que o que é fiel deve suportar todas as coisas, mesmo as adversas, pelo Senhor, diz a Escritura, na pessoa dos que sofrem: "Por vós, somos entregues todos os dias à morte; somos considerados como ovelhas a serem sacrificadas". Seguros na esperança da retribuição divina, prosseguem alegres dizendo: "Mas superamos tudo por causa daquele que nos amou". Também, em outro lugar, diz a Escritura: "Ó Deus, provastes-nos, experimentastes-nos no fogo, como no fogo é provada a prata: induzistes-nos a cair no laço, impusestes tribulações sobre os nossos ombros". E para mostrar que devemos estar submetidos a um superior, continua: "Impusestes homens sobre nossas cabeças". Cumprindo, além disso, com paciência o preceito do Senhor nas adversidades e injúrias, se lhes batem numa face, oferecem a outra; a quem lhes toma a túnica cedem também o manto; obrigados a uma milha, andam duas; suportam, como Paulo Apóstolo, os falsos irmãos e abençoam aqueles que os amaldiçoam.

O quinto grau da humildade consiste em não esconder o monge ao seu Abade todos os maus pensamentos que lhe vêm ao coração, ou o que de mal tenha cometido ocultamente, mas em lho revelar humildemente, exortando-nos a este respeito a Escritura quando diz: "Revela ao Senhor o teu caminho e espera nele". E quando diz ainda: "Confessai ao Senhor porque ele é bom, porque sua misericórdia é eterna". Do mesmo modo o Profeta: "Dei a conhecer a Vós a minha falta e não escondi as minhas injustiças. Disse: acusar-me-ei de minhas injustiças diante do Senhor, e perdoastes a maldade de meu coração".

O sexto grau da humildade consiste em que esteja o monge contente com o que há de mais vil e com a situação mais extrema e, em tudo que lhe seja ordenado fazer, se considere mau e indigno operário, dizendo-se a si mesmo com o Profeta: "Fui reduzido a nada e não o sabia; tornei-me como um animal diante de Vós, porém estou sempre convosco".

O sétimo grau da humildade consiste em que o monge se diga inferior e mais vil que todos, não só com a boca, mas que também o creia no íntimo pulsar do coração, humilhando-se e dizendo com o Profeta: "Eu, porém, sou um verme e não um homem, a vergonha dos homens e a abjeção do povo: exaltei-me, mas, depois fui humilhado e confundido". E ainda: "É bom para mim que me tenhais humilhado, para que aprenda os vossos mandamentos".

O oitavo grau da humildade consiste em que só faça o monge o que lhe exortam a Regra comum do mosteiro e os exemplos de seus maiores.

O nono grau da humildade consiste em que o monge negue o falar a sua língua, entregando-se ao silêncio; nada diga, até que seja interrogado, pois mostra a Escritura que "no muito falar não se foge ao pecado" e que "o homem que fala muito não se encaminhará bem sobre a terra".

O décimo grau da humildade consiste em que não seja o monge fácil e pronto ao riso, porque está escrito: "O estulto eleva sua voz quando ri".

O undécimo grau da humildade consiste em, quando falar, fazê-lo o monge suavemente e sem riso, humildemente e com gravidade, com poucas e razoáveis palavras e não em alta voz, conforme o que está escrito: "O sábio manifesta-se com poucas palavras".

O duodécimo grau da humildade consiste em que não só no coração tenha o monge a humildade, mas a deixe transparecer sempre, no próprio corpo, aos que o vêem, isto é, que no ofício divino, no oratório, no mosteiro, na horta, quando em caminho, no campo ou onde quer que esteja, sentado, andando ou em pé, tenha sempre a cabeça inclinada, os olhos fixos no chão, considerando-se a cada momento culpado de seus pecados, tenha-se já como presente diante do tremendo juízo de Deus, dizendo-se a si mesmo, no coração, aquilo que aquele publicano do Evangelho disse, com os olhos pregados no chão: "Senhor, não sou digno, eu pecador, de levantar os olhos aos céus". E ainda, com o Profeta: "Estou completamente curvado e humilhado".

Tendo, por conseguinte, subido todos esses degraus da humildade, o monge atingirá logo, aquela caridade de Deus, que, quando perfeita, afasta o temor; por meio dela tudo o que observava antes não sem medo começará a realizar sem nenhum labor, como que naturalmente, pelo costume, não mais por temor do inferno, mas por amor de Cristo, pelo próprio costume bom e pela deleitação das virtudes.

Eis o que, no seu operário, já purificado dos vícios e pecados, se dignará o Senhor manifestar por meio do Espírito Santo.

PS: Grifos meus.
PS2: Ver também: 


domingo, 20 de março de 2011

A Crucificação

A Crucificação


Nos autem gloriari oportet in cruce Domini Nostri Jesu Christi.

Devemo-nos gloriar da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo

Ei-lO, enfim, no porto desejado, o Eterno Viajor! A barca da Salvação, que Ele conduzia através das ondas do Seu precioso sangue, lançou, enfim, a âncora no Calvário!

Está desfigurado?! Os Seus membros já não têm movimento?! Esses olhos que penetram as profundezas do céu e os abismos do inferno parecem já não contemplar esta cena mais infame da história, este atentado mais covarde do poder político, este escândalo mais vil e ignóbil da justiça humana?! Está desfigurado?! Esgotaram-se-Lhe as forças?!

Mas Ele vem de bem longe, o Piloto da Redenção. Aos judeus, que O conduziram do Pretório ao Calvário, pensam que Ele fez apenas o percurso de um quarto de légua; mas Ele vem da eternidade; Seu precioso sangue dado aos carrascos, ab aeterno é visto por Deus.

Sim: Ele existiu, antes da criação de todos os mundos, na tranqüila e vasta visão da inteligência divina; existiu nas possibilidades de uma Encarnação impassível e gloriosa; existiu nas heróicas resoluções de uma Encarnação sujeita aos opróbrios, as ignomínias, aos sofrimentos e a morte. Ele fez uma viagem bem longa, através de todas as criações do espírito, da matéria e da humanidade. Penetrou na esfera angélica: e os anjos salvos o foram pela virtude, já conhecida por Deus, da efusão futura de Seu sangue.

Penetrou na esfera da criação material: e os penhascos, os mares, os elementos, as massas brilhantes que se equilibraram no espaço, os átomos misteriosos que operam nas profundas evoluções da terra, todo o universo foi preservado da desorganização que lhe traria o pecado sem o banho lustral de Seu sangue.

Penetrou no mundo humano; parou no Paraíso Terrestre; contemplou com imensa tristeza o espetáculo da queda primitiva; o pecado de Adão abriu-Lhe no coração fontes de ternura infinita; entre a Justiça, que Lhe impunha a aversão pelo culpado, e a Misericórdia, que Lhe inspirava profunda piedade pelas ruínas da sua obra prima, preferiu tirar dos restos daquela beleza desfigurada pela rebeldia da prevaricação original motivos de indulgência; revestiu-se dos emblemas da paixão; deu definitivamente à realeza impassível e gloriosa sobre cujo trono o universo inteiro teria de adorá-lO a púrpura de dores que devia torná-lO mais direta e proximamente o Rei da humanidade.

E continuou a viajar: e viajou quatro mil anos; e deu vigor aos patriarcas, deu entusiasmo aos profetas, animação a todas as idades do mundo, remédio a todas as catástrofes da humanidade, até que, enfim, pairou sobre uma obscura aldeia, penetrou nos recessos de uma Virgem, onde encheu de sangue as veias de um menino, que a humanidade viu depois nascer em Belém, crescer em Nazaré, preparar-Se numa oficina, batizar-Se no Jordão, fortifica-Se num deserto, e em plena virilidade entrar com estrepito e assombro na vida pública. No meio dos encantos indescritíveis do presépio, nas fadigas da viagem e do refúgio no Egito, nos labores da pequena cidade que ocultou a Sua juventude, no batismo, na penitência, no ministério público, o cimo desta colina – o Calvário – foi sempre a mira dos Seus desejos. Era no Calvário que se devia realizar a efusão que salvou o mundo; o Calvário era o sofrimento supremo; era o fim da batalha e o complemento dos decretos eternos.

Ei-lO, no Calvário! Despiram-nO, deixando-O nu, e de tal modo, com tamanha ofensa do pudor, que Sua Mãe teve de cobri-lO com o Seu véu.

Estenderam-nO sobre a Cruz, tosca e mal desbastada. Cravaram-Lhe as mãos e os pés.

Entre os alaridos da canalha, que gritava, e as blasfêmias dos sacerdotes, Escribas e Fariseus, que zombavam d'Ele, levantaram-no entre dois ladrões.

A Virgem, São João e a Madalena contemplam-nO com dor inenarrável. Todas as Suas feridas sangram; todos os Seus sofrimentos físicos renovam-se.

As mãos, os pés, os nervos, as veias, as artérias, todo o seu corpo... crucificado! E, sem embargo, a Infinita Ternura não abandona o Infinito Martírio: é a mesma Bondade, que se compadece de nós; é a mesma Sabedoria que lamenta a nossa ignorância; é a mesma Doçura, que fala ainda, e fala para o que?!

Para pedir o perdão dos carrascos que O crucificam; para dar à humanidade, como o Seu legado, na pessoa de João, a Sua própria Mãe; para dar a nós todos, em permuta do fel e vinagre que Lhe oferecem; a fonte de água viva que nos há e saciar; para fazer nessas sublimes palavras da Cruz as últimas disposições da Sua vontade – o Seu codicilo: porque o Testamento já estava feito: era a Eucaristia, a doação da Sua própria carne e do Seu próprio sangue!

Ei-lO crucificado! Pois será este o resultado de toda uma vida consagrada ao amor da humanidade? Será este o resultado de um heróico apostolado de três anos?!

Sim; é este o resultado. Para a história o Calvário é um insucesso, e o maior de todos os insucessos, porque é a derrota de Deus, o repúdio da Sua obra, o triunfo medonho da perversidade humana contra a Bondade Divina, a completa humilhação do Verbo Encarnado, a pavorosa atrocidade do Seu suplício, o supremo horror do Seu martírio, a profunda desolação da Sua alma, a infinita amargura do Seu coração; é o Criador confundido pela criatura; é a liberdade do homem calcando aos pés o amor de Jesus Cristo.

Mente a história? Não; já não podemos negá-lo: Deus foi vencido; e o zelo, a bondade, a eloqüência incomparável, os milagres estupendos, a sublimidade dos três anos de apostolado não fizeram senão tornar mais estrondosa a sua derrota.

Não se pode negar; mas pode-se, mesmo no terreno da história, explicá-lo.

A esperança messiânica enchia o mundo inteiro; como todos os povos, também o povo judeu esperava o Libertador.

Ele aparece; percorre toda a Judéia; enche-a de prodígios.

Prega o Seu Evangelho, revelando segredos que ab-aeterno via em Seu Pai. É alívio para os enfermos, esperança para os desventurados, misericórdia para os pecadores. É cheio de beleza, de graça, e doçura. Sua vida, Sua doutrina, Seus milagres – tudo revela o Seu caráter, que é sempre divino, a Sua bondade, que é sempre infinita. É o homem perfeito, em tudo igual e santo, sem prejuízo da bondade sempre viva, e tão imensa que, diz Bossuet, os Seus milagres revelam mais a Sua bondade que o Seu poder.

O que em todos os Seus atos O domina é o sentimento profundo da paternidade divina; é a idéia de uma aliança nova e feliz entre Deus e os homens. E é para intermediário desta nova aliança que Ele Se oferece; aliança cuja fórmula suprema Ele traduz na Sua expressão predileta – o Reino de Deus.

A humanidade, diz um teólogo, conhecia o reino da matéria, o reino animal, o reino da razão; adorava as leis físicas, via reproduzidos em si própria os instintos brutais, sentia ausentes da sua inteligência as idéias que poderiam nem deixá-la confundir-se com a matéria, nem identificar-se com o animal. O homem só operava na tríplice esfera da matéria, da animalidade e da razão; Jesus Cristo, porém, aparece e lhe revela uma nova esfera, um novo horizonte, um reino novo.

Este reino é o Reino de Deus, de todas as concepções, a mais vasta que já registrou a história, porque é o Espírito mesmo de Deus tomando no Cristo e pelo Cristo posse da humanidade, libertando-a das leis da matéria, dos instintos do bruto, e dos desvarios da razão individual; é o reino cujo chefe é Jesus Cristo, cuja lei é a vontade do Pai, e cujos súditos são todos os homens.

Todos os homens, sim; porque Jesus Cristo convida para o Reino de Deus todos os povos, todas as raças, todas as civilizações. O Reino de Deus não tem fronteiras; desafia todas as nossas mesquinhas concepções de cosmopolitismo, todas nossas estreitas teorias de fraternidade.

É o reino universal, eterno, que, na verdade, tem começo e desenvolvimento na terra, mas encherá o universo, no seu triunfo definitivo, quando, numa imensa palingenesia a humanidade transfigurada aclamar em Jesus Cristo o Rei de toda criação.

Sem dúvida, o Reino de Deus, tal como Jesus pode inaugurá-lo na terra, parece ser principalmente o Reino dos pobres, dos infelizes e dos humildes; mas a ingratidão humana não destrói os desígnios de Deus, que no Cristo, isto é, através dos véus da carne em que se nos revelou, ofereceu-O a todos os homens.

Todos a quem não satisfaz a realidade presente; todos que têm um ideal acima das misérias da terra. Todos que têm fome e sede de justiça podem e devem ser súditos de Jesus Cristo. Porque não são?!

Porque o Reino de Deus sofre violência, isto é, não se faz parte dele senão renunciando-se a si próprio no que se tem de vil, de imperfeito, de mau. Os orgulhosos, os satisfeitos de si próprios, os inchados de ciência, os escravizados por suas paixões não se resignam a isto. Eis porque para muitos o Reino de Deus fica inacessível; do mesmo modo que para os Judeus ele parece obscuro, não obstante o seu fulgor.

Como poderiam eles compreendê-lO?

Jesus Cristo fala, e as Suas obras dão testemunho de Sua palavra. Mas a aceitação de qualquer palavra, ainda mesmo a de Deus, não é resultado somente da verdade que ela contém; e mais ainda do estado moral de um povo, do estado de sua consciência, e das aspirações de seu espírito.

Ora, na Judéia os políticos desejam apenas a restauração política do país; os padres – o predomínio exclusivo e universal da lei Religiosa em vigor; o povo, em geral, uma revolução que o liberte do despotismo romano.

Nem os políticos, nem os padres, nem mesmo o povo podem compreender o apostolado de Jesus! É verdade que Ele atrai a multidão; é verdade que um momento Ele fascina as classes populares; é verdade que mesmo um triunfo momentâneo parece reconhecê-lo como o Libertador da Judéia.

Mas bem depressa o entusiasmo popular faz causa comum com os políticos, e os padres, e todas as forças da nação – poder, ciência, sacerdócio, plebe, coligam-se contra Ele.

Os políticos acusam-nO de conspirador; os padres – de blasfemo; a canalha – de simples aventureiro.

Uma nação assim obcecada não podia compreender o Reino de Deus; e, quando o Libertador lhe apareceu, manso, humilde, sem fausto nem grandezas terrestres, ela não podia reconhecer nEle o Salvador da humanidade.

É justificável o seu engano? Não; porque os padres deviam conhecer as profecias, estudá-las, compará-las com a vida de Jesus Cristo, ensinar o povo, mostrar-lhe os sinais do tempo. Era neste, então, o grande papel do sacerdócio, que, entretanto, aviltou-se, desprezou o espírito da lei, desfigurou o culto, profanou o templo, e corrompeu todos os elementos da nação. Nenhuma idéia grande nos púlpitos; nenhum sentimento sincero nos atos da religião.

A prática exterior absorvia o sacerdócio; o texto da lei era toda a ciência dos saduceus; a pompa e o brilho das festas eram todo o objeto do culto; e o povo, corrompido por esse simples aparato de fé e piedade, bem pouco preparado estava para a caridade real do reino de Deus, que, entretanto, passou no meio dessa profunda decadência política, social e religiosa sem nada perder da Sua beleza e serenidade.

Jesus Cristo fica indiferente a todas as aspirações extravagantes do povo judeu. Não é a liberdade judaica que Ele vem promulgar: é a liberdade humana; não é a restauração política da Judéia que Ele vem fundar: é o Reino Universal de Deus, reino de que, entretanto, o povo infiel seria o arauto, sem a apostasia que o maculou.

Por Sua sublimidade, a obra transcende o nível intelectual, moral e religioso da Judéia; e por isso Jesus Cristo é repudiado. Este repúdio é, porém, o castigo da nação judaica; como é castigo de todos os povos corrompidos na política, na ciência, no poder, na magistratura, no ensino, na religião, acabarem repudiando Jesus Cristo.

Foi crucificado, sim; e o Calvário é para a história o maior dos insucessos. Mas é também para a fé o maior de todos os êxitos. Nem a história mente; nem a fé se ilude.

Crucificando Jesus Cristo, os Judeus supunham cobri-lO de ignomínia e infâmia. Não faziam, entretanto, senão dar-Lhe o gênero de morte que Ele próprio tinha de antemão aceitado o mais apropriado aos Seus desígnios. Era justamente o Calvário o altar escolhido para a redenção; era justamente aquela Cruz infame o trono em que o Rei da nova humanidade devia fazer brilhar toda a divina majestade do Seu ministério.

Sim; a crucificação era nos desígnios de Deus o complemento da Sua obra; era a crucificação que convinha a pena do pecado, a maldição do pecado, a voluntariedade do sacrifício e a natureza da mediação.

A pena do pecado. Jesus Cristo, tendo-se proposto expiar todos os pecados, devia sofrer a pena devida a todos os pecados. O corpo do pecado. Diz São Paulo, é a concupiscência devia ser imolada em todos os Seus movimentos e desordens.

Esta imolação, porém, da concupiscência, dizem os teólogos, não podia efetuar-se senão pelo suplício da cruz que se experimentam ao mesmo tempo todos os sofrimentos de todos os diferentes gêneros de morte; é na cruz que toda concupiscência, isto é, o orgulho, a cobiça, a sensualidade, é imolada; é na cruz que se sofre em todos os membros, ossos e fibras; é na cruz que o opróbrio, unindo-se a dor, não somente a alma e o corpo, mas todo o sentimento da alma e toda a parte do corpo tem o seu sofrimento particular.

Mas, como Jesus Cristo, inocente, podia na sua carne, sem pecado sofrer a pena do pecado? A teologia no-lo ensina. Deus, fazendo-Se homem, revestiu-Se, não da humanidade impassível, como existiu em Adão inocente; mas da humanidade passível, como existiu em Adão prevaricador. É assim, diz São Paulo, que, sem ter a carne do pecado, a natureza humana do Verbo tinha a semelhança exterior da carne do pecado, e pode expiar a pena do pecado.

Fazendo-Se homem, Deus também não tomou a carne de um indivíduo, de um só homem; mas de toda a espécie humana. É assim que Jesus Cristo pode representar a todos, pagar a concupiscência de todos; e, como diz São Paulo, em Jesus Cristo crucificado foi crucificada a humanidade inteira.

Se a crucificação era conveniente a pena do pecado, não o era menos a maldição do pecado.

A morte de cruz era por excelência o sinal de ignomínia, infâmia e desprezo.

Jesus Cristo que, como mediador universal, queria revestir-se todo o opróbrio do gênero humano, devia ser morto do modo mais infamante, para que aos olhos de Deus fosse visto carregado de toda maldição.

Só a crucificação podia também revelar a voluntariedade do sacrifício. Ele sacrificou-Se porque quis: oblatus est quia ipse voluit. Mas nenhum outro gênero de morte podia aos olhos dos homens, tanto como a crucificação, provar essa voluntariedade. Se, diz um teólogo, Ele fosse assassinado como Abel, levado a uma fogueira como Isaac, serrado como Isaias, lapidado como Zacarias, ou degolado como João Batista, parecia não sucumbir senão a uma força exterior; parecia não ser senhor da Sua vida e dos Seus últimos momentos; parecia morrer, não como aconteceu, no momento escolhido por Ele próprio, mas no momento escolhido pela brutalidade dos Seus carrascos.

A crucificação, porém, é um suplício que não dá a morte no momento escolhido pelo executor; que não causa senão uma morte lenta e difícil, deixando muito tempo a vítima entre a vida e a morte. Portanto, Jesus Cristo, aceitando a morte de cruz, demonstrou que sua morte era menos o efeito do ódio dos Judeus que da Sua vontade, que só permitiu o esgotamento de todas as suas forças e de todo o calor vital depois de ter dito na Cruz tudo que lhe convinha dizer, e ter mostrado, surpreendendo com a Sua morte os próprios carrascos, que era o senhor absoluto da Sua vida.

Finalmente, a crucificação convinha a natureza da mediação, porque Jesus Cristo era o mediador entre o céu e a terra, e é pela Cruz, diz São João Crisóstomo, que Jesus Cristo é colocado entre um e outra, mostrando-nos o caminho perdido pelo nosso pecado e reconquistado pelo Seu sacrifício; é na Cruz, diz São Cipriano, que Jesus Cristo se nos mostra a verdadeira escada que restabelece entre Deus e os homens e antiga comunicação; é na Cruz, diz Ventura, que Ele, estendendo Seus braços para os dois pólos, proclama assim que os tem abertos para abraçar todos os filhos de Deus disseminados sobre a superfície do mundo inteiro.

E agora, cristãos, agora dizei-me se a Cruz de Jesus Cristo é uma ignomínia ou uma glória; se, como o século, nos devemos envergonhar, ou se antes, como o apostolo São Paulo, nos devemos gloria dela.

Envergonharmo-nos?! Não; nunca!

Salve, Cruz de Jesus Cristo! Nós te reconhecemos como a nossa única e verdadeira glória: nos autem gloriari oportet in cruce Domini Nostri Jesu Christi. Tu foste a nossa reabilitação na queda, e a nossa vida na morte: per quem salvati et liberati sumus.

(A Paixão, pelo Padre Júlio Maria de Lombaerde, Cruzada da Boa Imprensa - Rio, ano de 1937)

PS: Grifos meus.