terça-feira, 16 de abril de 2013

ART. II. Dos pecados anexos à sensualidade / § I. Da gula

 Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI.
A Vida Espiritual explicada e comentada 
Adolph Tanquerey

ART. II. Dos pecados anexos à sensualidade 
§ I. Da gula


            A gula não é senão o abuso do prazer legítimo que Deus quis acom­panhasse o comer e o beber, tão necessários à conservação do indivíduo. Exponhamos:

1. ° a sua natureza;
2. ° a sua malícia;
3. ° os seus remédios.

            1.º Natureza. A gula é o amor desordenado dos prazeres da mesa, da bebida ou da comida. A desordem consiste em procurar o prazer do alimento, por si mesmo, considerando explícita ou implicitamente como um fim, a exemplo daqueles que fazem do seu ventre um deus, «quorum Deus venter est»(Fl 3,19) ou em o procurar com excesso, sem respei­tar as regras que dita a sobriedade, algumas vezes até com prejuízo da saúde.
            Os teólogos assinalam quatro maneiras diversas de faltar a essas regras:
  • Praepropere: isto é, comer antes de sentir necessidade, fora das horas marcadas para as refeições, e isto sem motivo legítimo, só para satisfazer a gula.
  • Laute et studiose: buscar iguarias esquisitas ou preparadas com de­masiado apuro, para gozar delas mais; é o pecado dos gulosos ou gastrô­nomos.
  • Nimis: é ultrapassar os limites do apetite ou da necessidade, enfar­tar-se de comida ou bebida, com risco de arruinar a saúde; é evidente que só o prazer desordenado pode explicar este excesso, que no mundo se chama glutonaria.
  • Ardenter: comer com avidez, com sofreguidão, como fazem certos animais; e esta maneira de proceder é considerada no mundo como gros­seria. 
            2. ° A malícia da gula vem de escravizar a alma ao corpo, mate­rializar o homem, enfraquecer a vida intelectual e moral, preparando-o, por um pendor insensível, ao prazer da volúpia, que, em substância, é do mesmo gênero. Para lhe determinarmos com precisão a culpabilida­de, importa fazer esta distinção.


A)    A gula é falta grave:

a)   quando chega a excessos tais que nos torne incapazes, por tempo notável, de cumprir os nossos deveres de estado ou obedecer às leis divinas ou eclesiásticas; por exemplo, quando prejudica a saúde, quando dá origem a despesas loucas que põem em risco os interesses da família, quando leva a faltar às leis da abstinência ou do jejum.
b)      O mesmo se diga, quando se torna causa de faltas graves.
            Demos alguns exemplos. «Os excessos da mesa, diz o P Janvier dispõem à incontinência, que é filha da gula. Incontinência dos olhos e dos ouvidos, que vão buscar pasto doentio aos espetáculos e canções licenciosas; incontinência da imaginação, que se perturba; incontinência da memó­ria que busca no passado recordações capazes de excitar a concupiscência; incontinência do pensamento que, extraviando-se, se derrama sobre os objetos ilícitos; incontinência do coração, que aspira às afeições carnais; incontinência da vontade, que abdica para se escravizar aos sentidos... A intemperança da mesa à intemperança da língua. Que de faltas não comete a língua no decurso de banquetes pomposos e prolongados! Faltas contra a gravidade!... Faltas contra a discrição! Atraiçoam-se os segredos que havia promessa de guardar, segredos profissionais que são sagrados, e entrega-se à malignidade a reputação dum marido, duma esposa, duma mãe, a hon­ra duma família, quando não é o futuro duma nação. Faltas contra a justiça e caridade! A maledicência, a calúnia, a detração, sob as suas formas mais inescusáveis, exprimem-se com uma liberdade desconcertante... Faltas contra a prudência! Tomam-se compromissos que não será possível guardar, sem ofender todas as leis da moral...».

B) A gula não passa de falta venial, quando alguém cede aos prazeres da mesa imoderadamente, mas sem cair em excessos graves, sem se expor a infringir qualquer preceito importante. Assim, por exemplo seria pecado venial comer ou beber mais de costume, por prazer, para fazer honra a um lauto banquete ou agradar a um amigo, sem come­ter excesso notável.

C) Sob o aspecto da perfeição, é a gula um obstáculo sério:

           1) alimento a imortificação, que enfraquece a vontade e desenvolve o amor do prazer sensual que prepara a alma para capitulações perigosas;
            2) é fonte de muitas faltas, produzindo uma alegria excessiva, que leva à dissipação, à loquacidade, aos gracejos de gosto duvidoso, à falta de recato e modéstia, e abre assim a alma aos assaltos do demônio. Im­porta, pois, combatê-la.

         3.º Remédio. O princípio que nos deve dirigir na luta contra a gula, é que o prazer não é fim, senão meio, e que por conseguinte, deve ser subordinado à reta razão iluminada pela fé (n.° 193). Ora, a fé diz- nos que é necessário santificar os prazeres da mesa com pureza de in­tenção, sobriedade e mortificação.

1)    Antes de tudo, é preciso tomar as refeições com intenção reta e sobrenatural, não como o animal que não busca mais que o prazer, não como o filósofo que se limita a uma intenção honesta, senão como cristão, para melhor trabalhar na glória de Deus: com espírito de reconhecimento para com a bondade de Deus que se digna conceder-nos o pão de cada dia; com espírito de humildade, dizendo-nos a nós mesmos, com São Vicente de Paulo, que não merecemos o pão que comemos; com espírito de amor, empregando as forças, que recuperamos, no serviço de Deus e das almas. Assim cumprimos a recomendação feita por São Paulo aos primeiros cris­tãos, que em muitas comunidades se recorda ao princípio das refeições: «Quer comais, quer bebais, fazei tudo para glória de Deus: sive ergo manducatis, sive bibitis... omnia in gloriam Dei facite» (I Cor. 10,31)

2)      Esta pureza de intenção nos fará guardar a sobriedade ou justa medida: e na verdade, se queremos comer para adquirir as forças necessárias ao cumprimento dos nossos deveres de estado, evitaremos todos os excessos que poderiam comprometer-nos a saúde. Ora, dizem-nos os higienistas, a «so­briedade (ou frugalidade) é a condição essencial do vigor físico e moral». Já que comemos para viver, devemos comer sadiamente para sadiamente viver. Fuja­mos, pois, de comer ou beber demais... Devemos levantar-nos da mesa com uma sensação de leveza e vigor, ficar um pouco aquém do apetite, e evitar ficar entorpecidos com os excessos da lauta mesa.
            É bom, contudo, observar que a medida não é a mesma para todos. Há temperamentos que, para se preservarem da tuberculose, têm necessidade de mais copiosa alimentação; outros há, pelo contrário, que, para combate­rem o artritismo, precisam de moderar o apetite. Sigam-se, pois, neste pon­to os conselhos dum médico experimentado.

            À sobriedade junta o cristão a prática de algumas mortificações.

A)    Como é fácil escorregar por esta ladeira e conceder demais à sen­sualidade, convém privar-nos, de vez em quando, de alguns acepipes de que gostamos, úteis até, mas não necessário. Desse modo se adquire domínio sobre a sensualidade, privando-a de algumas satisfações legítimas; desem­baraça-se o espírito da servidão dos sentidos, dá-se-lhe mais liberdade para a oração e para o estudo e evitam-se muitas tentações perigosas.
B)  E uma excelente prática habituar-se a não tomar refeição algu­ma, sem nela fazer qualquer mortificação. Essas pequenas mortificações tem a vantagem de fortificar a vontade sem dano para a saúde, e é por Isso que são geralmente preferíveis às mortificações mais importantes que só raramente se praticam. As almas boas animam essas mortificações com um motivo de caridade; deixam um bocadinho para os pobres- e, como faz notar São Vicente Ferrer o que se deixa não deve ser o pior senão o mais escolhido, por poucochinho que seja. É também excelente prática habituar-se a comer um pouco de que não agrada.
C)    Entre as mortificações mais úteis, contamos as que se refe­rem a bebidas alcoólicas.
           
            Recordemos a este propósito os princípios:

a)    Em si, o uso moderado do álcool ou dos licores espirituosos não é mal: não se podem, pois, censurar os seculares ou os sacerdotes que usam deles com moderação.
b) Abster-se, porém, dessas bebidas por espírito de mortificação ou para dar bom exemplo, é indubitavelmente digníssimo de elogio. É por isso que há sacerdotes e seculares consagrados a obras de zelo, que se privam de qualquer licor, para mais facilmente levarem outros a imitá-los.
c)     Há casos em que esta abstinência é moralmente necessária para evitar excessos:

1)  quando, por atavismo, se herdou uma certa propensão para as bebidas alcoólicas, neste caso o simples uso pode criar uma inclinação quase irresistível, do mesmo modo que basta uma faísca para atear um incêndio em matérias inflamáveis;
2)  se se teve a infelicidade de contrair hábitos inveterados de alcoolis­mo: então, o único remédio eficaz será muitas vezes a abstenção completa.