domingo, 30 de setembro de 2012

Providência divina

Que é preciso evitar toda a curiosidade,
e aquiescer humildemente à sapientíssima providência de Deus.

(São Francisco de Sales, tratado do amor de Deus, Livro Quarto, Capítulo VII)


O espírito humano é tão fraco, que, quando quer investigar curiosamente demais as causas e razões da vontade divina, embaraça-se e enrodilha-se em redes de mil dificuldades, das quais depois não se pode desprender. Assemelha-se à fumaça; porque, subindo, sutiliza-se, e, sutilizando-se, dissipa-se. A força de querermos elevar nossos discursos nas coisas divinas por curiosidade, nós nos dissipamos nos nossos pensamentos e, ao invés de chegarmos à ciência da verdade, caímos na loucura da nossa vaidade (Rom 1, 21; 2 Tim 3, 7; Rom 1, 22).
Mas somos sobretudo extravagantes no que concerne à Providência divina, no tocante à diversidade dos meios que ela nos distribui para nos atrair ao seu santo amor, e, pelo seu santo amor, à glória. Porquanto a nossa temeridade nos força sempre a perquirir por que é que Deus dá mais meios a uns do que a outros; por que foi que Ele não fez entre os Tírios e os Sidônios as maravilhas que fez em Corozaim e Betsaida, já que eles teriam tão bem aproveitado delas; e, em suma, por que é que Ele atrai ao Seu amor um de preferência a outro (Mt 11, 21).
Ó Teótimo! meu amigo, nunca, nunca devemos deixar levar nosso espírito por esse turbilhão de vento louco, nem pensar achar melhor razão da vontade de Deus do que a Sua própria vontade, a qual é sumamente razoável, antes a razão de todas as razões, a regra de toda bondade, a lei de toda equidade. E, se bem que o santíssimo Espírito, falando na Escritura sagrada, em vários lugares dê razão de quase tudo o que poderíamos desejar no tocante ao que a Sua providência opera na guia dos homens ao santo amor e à salvação eterna, todavia em várias ocasiões Ele declara que absolutamente não nos devemos apartar do respeito que é devido à Sua vontade, da qual devemos adorar o propósito, o decreto, o beneplácito e o aresto ao cabo do qual, como juiz soberano e soberanamente equitativo, não é razoável que ela manifeste seus motivos; mas basta que fale simplesmente (e "pour cause"). Que, se devemos caridosamente prestar tanta honra aos decretos das cortes supremas, compostas de juízes corruptíveis da terra e de terra, a ponto de crermos que esses decretos não foram feitos sem motivos, posto que os não saibamos; oh, Senhor Deus! com que reverência amorosa devemos, adorar a equidade da Vossa providência suprema, a qual é infinita em justiça e bondade!
Assim, em mil lugares da sagrada palavra nós achamos a razão pela qual Deus reprovou o povo judeu. São Paulo e São Barnabé dizem: Porque repelis a palavra de Deus, e vos julgais a vós mesmos indignos da vida eterna; eis que nós nos volvemos para os Gentios (Mt 13, 24). E quem considerar em tranquilidade de espírito o IXº, Xº e XIº capítulo da epístola aos Romanos, verá claramente que a vontade de Deus não rejeitou o povo judeu sem razão; mas, não obstante, não deve essa razão ser investigada pelo espírito humano, que, ao contrário, é obrigado a deter-se pura e simplesmente em respeitar o decreto divino, admirando-o com amor como infinitamente justo e equitativo, e amando-o com admiração como impenetrável e incompreensível. É por isso que o divino apóstolo concluí destarte o longo discurso que sobre isso tinha feito: Ó profundeza das riquezas da sabedoria e ciência de Deus! Como são incompreensíveis os seus juízos, imperceptíveis os seus caminhos! Quem conhece os pensamentos do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? (Rom 11, 33-34). Exclamação pela qual testemunha que Deus faz tudo com grande sabedoria, ciência e razão; mas de tal sorte, todavia, que, não havendo o homem entrado no divino conselho, cujos juízos e projetos são elevados infinitamente acima da nossa capacidade, nós devemos devotadamente adorar-lhe os decretos, como muito equitativos, sem lhes investigar os motivos, os quais Ele retém em segredo para consigo, a fim de manter o nosso entendimento em respeito e humildade para conosco.
Santo Agostinho em cem lugares ensina esta mesma prática. Diz ele: "Ninguém vem ao Salvador senão sendo atraído. Quem é que Ele atrai, e quem é que Ele não atrai, por que é que Ele atrai este e não aquele, não queiras ajuizar disto, se não queres errar. Escuta uma vez e ouve. Não és atraído? reza a fim de seres atraído. De certo, ao cristão que ainda vive da fé e que não vê o que é perfeito, mas sabe apenas em parte, basta saber e crer que Deus não livra ninguém da condenação senão por misericórdia gratuita, por Jesus Cristo Nosso Senhor, e que Ele não condena ninguém senão pela Sua equidosíssima verdade, pelo mesmo Jesus Cristo Nosso Senhor. Mas saber por que é que Ele livra este de preferência àquele, sonde quem puder tamanha profundeza dos Seus juízos, mas resguarde-se do precipício, pois os Seus decretos não são por isso injustos, ainda que sejam secretos(1). Mas por que então livra Ele estes de preferência àqueles (Ep. 105)? Dizemos outra vez: Ó homem! quem és tu para responderes a Deus?(2) Incompreensíveis são os Seus juízos (Rom 11, 20). E acrescentemos isto: Não inquiras das coisas que estão acima de ti (Rom 11, 33), e não investigues o que está além de tuas forças (Ecli 3, 22). Ora, Ele não faz misericórdia àqueles a quem, por uma verdade mui secreta e muito afastada dos pensamentos humanos, julga não dever conceder seu favor ou misericórdia(3).
Vemos às vezes crianças gêmeas das quais uma nasce cheia de vida, e recebe o batismo; a outra, nascendo, perde a vida temporal antes de renascer para a eterna; uma, por conseguinte, é herdeira do céu, a outra é privada da herança. Ora, por que será que a divina Providência dá desfechos tão diversos a tão semelhante nascimento? De certo, pode-se dizer que a providência de Deus ordinariamente não viola as leis da natureza; de tal sorte que, sendo um desses gêmeos vigoroso e o outro demasiado fraco para suportar o esforço da saída do seio materno, este morreu antes de poder ser batizado, e o outro viveu; não havendo assim a Providência querido impedir o curso das causas naturais, que, nessa ocorrência, terão sido a razão da privação do batismo naquele que o não teve. E certamente esta resposta é bem sólida. Mas, consoante o parecer do divino São Paulo e de Santo Agostinho, não nos devemos divertir nesta consideração, que, embora boa, todavia não é comparável a várias outras que Deus reservou para Si, e que nos fará conhecer no paraíso. "Então, diz Santo Agostinho, já não será coisa secreta a razão por que um é elevado de preferência ao outro, sendo igual a causa de ambos; nem porque milagres não foram feitos no meio daqueles que, se milagres tivessem sido feitos entre eles, teriam feito penitência, e foram feitos no meio daqueles que não estavam dispostos a crer". (4) E noutro lugar esse mesmo santo, falando dos pecadores dos quais Deus deixa um na sua iniquidade e levanta o outro, diz: "Ora, porque é que Ele retém um e não retém o outro, não é possível compreendê-lO, nem lícito inquiri-lO, visto como basta saber que depende d’Ele ficarmos de pé, e d’Ele não vem que caiamos; e repito, isso é oculto e muito afastado do espírito humano, ao menos do meu"(5).
Eis aí, Teótimo, a mais santa maneira de filosofar neste assunto. Por isto é que sempre achei admirável e amável a sábia modéstia e prudentíssima humildade do doutor seráfico São Boaventura, no discurso que ele faz da razão pela qual a Providência Divina destina os eleitos à vida eterna. Diz ele: "Talvez seja pela previsão dos bens que se farão por meio daquele que é atraído, enquanto esses bens provêm, de algum modo, da vontade divina; mas saber dizer que bens são esses cuja previsão serve de motivo à divina vontade, nem eu o sei distintivamente, nem quero indagar deles; e não há aí razão a não ser de alguma sorte de conveniência; de maneira que nós poderíamos dizer alguma, e seria outra. É por isso que não poderíamos com certeza assinalar a razão verdadeira nem o verdadeiro motivo da vontade de Deus a esse respeito; porque, como diz Santo Agostinho, se bem que a verdade disso seja certíssima, é todavia muito distanciada dos nossos pensamentos; de modo que sobre isso nada poderíamos dizer de seguro senão pela revelação d’Aquele a quem todas as coisas são conhecidas. E uma vez que não era conveniente para a nossa salvação que tivéssemos conhecimento desses segredos, antes nos era mais útil ignorá-los, para nos mantermos em humildade; por isso Deus não os quis revelar, e mesmo o santo Apóstolo não ousou inquirir deles, mas testemunhou a insuficiência do nosso entendimento a esse respeito, quando exclamou: "Ó profundeza das riquezas da sabedoria e ciência de Deus!" (Rom 11, 33). Teótimo, poder-se-ia falar mais santamente de tão santo mistério? Também, são as palavras de um santíssimo e judiciosíssimo doutor da Igreja.

Notas:

1-                  Tract. XXVI in Joan.
2-                  De bono persever., c. XII.
3-                  Quaest. II, ad Simplic.
4-                  In Enchir. ad Laur., c. XCIV, XCV.
5-                  Resp. ad art. sibi falso impositos; Resp. ad art. 14, lib. X, de Genes. ad litt.