terça-feira, 11 de setembro de 2012

DEUS E CRISTO

Papa Pio XII 

O povo e a sociedade têm necessidade de conhecer a Deus. Os tremendos acontecimentos a que hoje assistimos, são principalmente conseqüência e quase a "nêmesis" da negação de Deus e da irreligiosidade, que como um contágio perturba e corrompe a alma dos povos e como um incêndio ameaça invadir a Europa e continentes inteiros; em igual tempo são uma prova, por meio da qual o Senhor com voz potente quer chamar o gênero humano à fé e ao serviço divino. Mas quem jamais se preocupa de conhecer a Deus? Quem o procura pelos caminhos da verdade? Quem se entrega à ciência da fé? Dai um olhar às assembléias dos sábios do mundo, aos palácios das ciências, aos volumes dos filósofos modernos, ao íntimo de tantas famílias. Interrogai os doutos imersos na procura dos mistérios da natureza, dos acontecimentos dos povos, do espírito humano, e perguntai-lhes: Quem é Deus? que pensam ou que acreditam de Deus? Para muitos Deus é novamente o Deus ignoto dos atenienses; e pareceria um redivivo Paulo de Tarso quem nos areópagos do saber moderno, sempre ávidos de novidades, aos novos alunos da Stoa e de Epicuro falasse ou desvendasse um Deus, criador do universo e de todo o gênero humano, de um só sobre a face da terra um Deus não distante de nós, no qual vivemos, nos movemos e permanecemos não semelhante aos artifícios do pensamento humano; um Deus que, não se preocupando com os tempos da ignorância, intima fazer penitência a todos os homens, que com justiça julgará no dia fixado por meio de um Homem, estabelecido juiz por Ele com ressuscitá-lo da morte. Em outros tempos, menos soberbos do que os nossos, também os estudiosos das diversas ciências se gloriavam de escutar nos ateneus públicos os mestres de teologia, desta superior sabedoria; enquanto por ora, se nos adultos não é mais glória a ignorância de Deus, é muitas vezes um lamento que se versa sobre escola e classes, as quais subtraíam ou negavam ou envenenavam não só o leite, mas também o sólido alimento da divina doutrina, a alma natural e sacramentalmente cristãs (1).

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O divino Salvador está conosco, não já como uma sombra fugaz da fama e do nome que fica sobre o túmulo e sobre os monumentos dos grandes homens que passam, mas como Deus presente em sua divindade e humanidade. Deus escondido na sombra dos pães multiplicados, sombra que Nos parece divisar nas trevas do Lago de Tiberíades, naquela noite em que Cristo caminhava sobre as ondas, e aos discípulos que estavam remando com fadiga, pareceu um fantasma. Não, não é um fantasma o Deus dos tabernáculos, que adoramos. É o mesmo que então disse aos pávidos discípulos: Tende confiança; sou eu, não temais. É aquele mesmo que disse: Eis-me convosco todos os dias até a consumação dos tempos. É o mesmo que caminha sobre as ondas dos séculos, senhor dos ventos e das procelas humanas. Ele caminha sobre ondas tempestuosas ao lado e diante da Igreja; responde aos seus ministros que o chamam com voz sagrada, a eles por Ele concedida, e aos seus altares convida e reúne desde vinte séculos as nações e as gentes, os povos e os que reinam, os mártires e as virgens, os pontífices e os sacerdotes, prostrados a adorá-lo presente, e a amá-lo escondido, a invocá-lo companheiro na alegria e na dor, na vida e na morte.
O Deus dos altares está no meio de nós, invisível mas testemunho fiel primogênito entre os mortos, príncipe dos reis da terra, que nos amou e nos lavou de nossos pecados, com o próprio sangue e nos fez reino e sacerdotes a Deus seu Pai; o primeiro e o último, o vivente que esteve morto e está vivo nos séculos dos séculos.
Mas é ao mesmo tempo em nosso meio, o Deus do arcano. É o mistério da fé, centro do incruento divino sacrifício, cioso segredo da Esposa de Cristo, a qual nos primeiros séculos de sua imutável juventude amou esconder sob o véu do arcano também seus tenros filhos; arcano feito mistério de um mistério, escondido desde séculos eternos em Deus. Diante deste mistério se inclinaram no pó os apóstolos e os mártires; nas basílicas, os pontífices; nos desertos e nos cenóbios, os monges e os anacoretas; nos claustros, as virgens, nos campos de luta, os esquadrões; nas catedrais, os doutores, nas estradas, os povos; Cristo estava em meio a eles; mas quem o viu? quem o divisou? Bem-aventurados aqueles que não o viram e acreditaram: "Beati qui non viderunt et crediderunt".
A fé passa além de todo véu, penetra todo arcano; e quanto mais vivo prossegue, tanto mais luz adquire, reinflama-se e exalta-se em si mesma, faz do próprio mistério o farol e o fogo de sua vida e de sua obra.
Cristo, porém, não está presente apenas em meio ao mundo, mas
também se avizinha do homem, está com ele, com seus apóstolos, com seus fiéis, com todas as gentes, conquista de seu sangue. Dúplice é sua presença. Há uma presença divina, com a qual sustém o universo por Ele criado, segue os passos dos homens pelos caminhos do bem e do mal e é dele testemunha e juiz que inclina ao bem e pune pelo mal. Há outra presença humana e ao mesmo tempo divina, pela qual eleva os seus estandartes nas catacumbas, entre as densas casas do povo, pelos campos, pelas selvas, em meio ao gelo perpétuo, onde quer que um sacerdote com a onipotente palavra, eleve bem alto um pão e um cálice, repetindo o que foi feito em memória de Cristo. Lá está Ele com seu ministro, com ele caminha, torna-se alimento, viático dos moribundos e dos infelizes, irmão e esposo, pai, médico, conforto e vida das almas, pão dos anjos, penhor de alegria imortal.
Até quando sobre algum campo de nosso globo despontar uma espiga de trigo e pender um cacho de uvas, e um sacerdote subir compenetrado ao sacrifício do altar, o Hóspede divino estará conosco; e o crente curvará na fé a mente e o joelho diante de uma hóstia consagrada, como na última ceia os apóstolos no pão e no vinho consagrados que o Salvador lhes dava dizendo: Isto é o meu corpo; Isto é o meu sangue, adoraram Cristo, o Mestre Divino, com aquela pura e alta fé que crê nos portentos de sua palavra, e da qual se deduz a interna adoração, fé sem a qual é vão o sinal de dobrar um joelho. Daquela hora do cenáculo começaram os séculos do Deus da Eucaristia; o giro do sol iluminou os passos com suas auroras e os seus ocasos; as vísceras da terra escavadas, acorreram salmodiando; nos ermos, nos cenóbios, nas basílicas, sob os aéreos pináculos inclinaram-se a Ele, Pastor e povos, príncipes e exércitos. Em suas conquistas avançava com seus arautos e sacerdotes além dos mares e dos oceanos e do Oriente ao Ocidente, de um a outro polo; o Redentor já planta, todos os dias, seus tabernáculos, perseverando contra a ingratidão dos homens, em encontrar as delícias próprias, em estar com eles, só procurando difundir a salvação, os tesouros de suas graças e de suas magnificências (2).

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Os homens param muitas vezes diante dos clarões transitórios do renome, que dão ou se disputam entre si com altissonantes palavras e ações. Ser louvado, ser célebre: eis em que consiste para eles a glória. "Gloria est frequens de aliquo fama cum laude", escrevia Cícero. Mas os homens muitas vezes não cuidam da glória que só Deus pode dar, e por isto segundo a palavra de Nosso Senhor, não têm a fé: "Como é possível - dizia o Redentor aos judeus - que acrediteis, vós que andais mendigando glória uns dos outros, e não procurais a glória que somente Deus pode dar, e dele somente procede?" A glória do mundo fenece, como a flor do campo, exclamava Isaías; e pelos lábios deste mesmo profeta o Deus de Israel anunciava que haveria de humilhar os grandes da terra. Que fará então o Deus encarnado, aquele Jesus que se declarava "humilde de coração" que não tinha jamais procurado sua própria glória? (3).

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Passarão o céu e a terra. Passará esta terra que nossos pés recalcam, e nossa mão fende e banha de suor, nosso olhar escruta; esta terra, cujas vísceras nosso ferro perfura e atormenta, escavando os sepulcros das selvas que se consumiram, dos monstros coevos das praias ignotas, dos vapores de extintos vulcões e dos veios dos metais e das chamas líquidas, que perturbam os sonhos do homem e lhe abalam a paz. Passará este nosso velho globo, que parece não pode bastar aos homens e saciar o frêmito de suas contrastantes aspirações, para as quais arde aos nossos dias uma luta de tão gigantescas proporções, que sobrepassam e quase obscurecem os maiores acontecimentos e mudanças da história do mundo. Passará a terra, e nós todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, a fim de que cada qual receba a paga ou a pena, segundo houver feito o bem ou o mal; mas não passarão as palavras de Cristo, que prediz e anuncia prematuramente aos apóstolos a história de sua Igreja e do mundo e os tristes fatos que encontrarão através dos séculos. E lá, naquele mesmo discurso sobre o monte das Oliveiras, à vista de Jerusalém, avisa-os para estarem preparados, a fim de que ninguém os seduza. "Porque - dizia-lhes - ouvireis falar de guerras e de rumores de guerra. Procurai não vos perturbar, já que é preciso que estas coisas sucedam; mas não é ainda o fim": "Audituri enim estis praelia et opiniones praeliorum. Videte ne turbemini; oportet enim haec fieri, sed nondum est finis".
Não; a consumação dos séculos não é ainda chegada. Cristo, subiu aos céus, está sempre com todos nós, todos os dias, também no meio das guerras e dos rumores de guerra. Não devemos nos perturbar, como se não turbaram os apóstolos na pregação do Evangelho. Mas se a perturbação não nos abate o espírito, sentimos mais no profundo de Nosso ânimo que a hora presente é uma fase da grave história da humanidade predita por Cristo (4).

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A sorte e a felicidade dos povos estão nas mãos “daquele Imperador que lá do alto reina”, que é Pai das luzes, e fonte de todo perfeito bem no universo. Ao lado da felicidade e dos destinos dos povos tem em suas mãos também os corações dos homens: em qualquer sentido que deseja, incliná-los-á. Sabe dilatar, restringir, parar ou dirigir a vontade deles sem mudar-lhe a natureza. Na obra do homem tudo é débil como o homem; tímidos são os seus pensamentos, incertas suas providências, rígidos seus meios, vacilantes seus passos, escuros seus términos. Na obra de Deus tudo é forte como Ele; seu conselho não conhece dúvidas; sua potência se dilata e quase brincando diverte-se no governo do mundo; suas delícias são em meio aos filhos dos homens, mas nada a Ele resiste; também os obstáculos em suas mãos são meios para plasmar as coisas e os acontecimentos, para volver as mentes e os livres desejos humanos aos altíssimos fins de sua misericórdia e de sua justiça, as duas estrelas de seu império universal.
Nele colocamos nossa mais firme esperança. (5).

(1) Discurso aos párocos de Roma, 25 de fevereiro, 1941.
(2) Discurso aos sacerdotes adoradores, 28 de abril, 1939.
(3) Discurso aos esposos, 16 de outubro, 1939.
(4) Homilia, dia de súplicas universais, 24 de novembro, 1939.
(5) Alocução ao Sacro Colégio, 2 de junho, 1939. 

Fonte: Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Marins, 2.ª Edição, edições Melhoramentos.