sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Breve descrição da caridade

São Francisco de Sales
Tratado do amor de Deus - Livro II, Capítulo XXII


Aí eis, pois, finalmente, meu caro Teótimo, como, por um progresso cheio de suavidade inefável, Deus conduz a alma que Ele faz sair do Egito do pecado, de amor em amor, como que de alojamento em alojamento, até que a tenha feito entrar na terra de promissão quero dizer, na santíssima caridade, a qual, para dizê-lo numa palavra, é uma amizade e não um amor interesseiro. Porquanto, pela caridade, nós amamos a Deus por amor d’Ele mesmo, em consideração da Sua bondade sumamente amável: mas essa amizade é uma amizade verdadeira, pois é recíproca, havendo Deus amado eternamente quem quer que O amou, O ama ou O amará temporalmente. É declarada e reconhecida mutuamente, visto que Deus não pode ignorar o amor que nós Lhe temos, já que Ele mesmo no-lo dá: nem nós, tão pouco, podemos ignorar o amor que Ele tem a nós já que Ele tanto o publicou, e que tudo o que temos de bom nós recebemos como verdadeiros efeitos da Sua benevolência; e, enfim, estamos em perpétua comunicação com Ele, que não cessa de falar aos nossos corações por inspirações, atrativos e movimentos sagrados. Ele não cessa de nos fazer bem e de nos dar toda sorte de testemunhos do Seu santíssimo afeto, havendo-nos abertamente revelado todos os Seus segredos como a Seus amigos confidentes. E, para cúmulo do Seu santo comércio conosco, tornou-Se nossa própria comida no santíssimo sacramento da Eucaristia. E, quanto a nós, nós tratamos com Ele a todas as horas quando nos apraz, pela santíssima oração, tendo toda a nossa vida, nosso movimento e nosso ser, não somente com Ele, mas n’Ele e por Ele.
Ora, essa amizade não é uma simples amizade, porém amizade de dileção, pela qual nós fazemos eleição de Deus para amá-lO com amor particular. Ele é escolhido, diz a esposa sagrada, entre mil. Ela diz entre mil (Cânt 5, 10); mas quer dizer entre todos. É por isso que essa dileção não é dileção de simples excelência, mas uma dileção incomparável; pois a caridade ama a Deus por uma estima e preferência da sua bondade tão alta e elevada acima de qualquer outra estima, que os outros amores ou não são verdadeiros amores em comparação deste, ou, se são verdadeiros amores, este é infinitamente mais do que amor. E portanto, Teótimo, não é um amor que as forças da natureza, nem humana, nem angélica, possam produzir, mas é o Espírito Santo quem o dá e o infunde em nossos corações (Rom 8, 5): e, assim como nossas almas, que dão a vida aos nossos corpos, não têm sua origem nos nossos corpos, mas são postas nos nossos corpos pela providência natural de Deus, assim também a caridade que dá a vida aos nossos corações não é atraída dos nossos corações, mas é nele vertida, como um celeste licor, pela providência sobrenatural da sua divina majestade.
Por isto a chamamos, pois, amizade sobrenatural e ademais ainda, por concernir ela a Deus e a Ele tender, não segundo a ciência natural que nós temos da Sua bondade, mas segundo o conhecimento sobrenatural da fé. É por isso que, com a fé e a esperança, ela faz sua residência na ponta e cimo do espírito, e como uma rainha de majestade está sentada na vontade como no seu trono, de onde derrama sobre toda a alma as suas suavidades e doçuras, tornando-a por esse meio toda bela, agradável e amável à divina bondade: de sorte que, se a alma é um reino de que o Espírito Santo seja o rei, a caridade é a rainha sentada à sua destra em veste de ouro recamada de belas variedades (Sl., 44, 10).
Se a alma é uma rainha, esposa do grande rei celeste, a caridade é a sua coroa que lhe embeleza regiamente a cabeça. Mas, se a alma, com seu corpo é um pequeno mundo, a caridade é o sol que orna tudo, tudo aquece e tudo vivifica.
A caridade, pois, é um amor de amizade, uma amizade de dileção, uma dileção de preferência, mas de preferência incomparável, soberana e sobrenatural, a qual é como um sol em toda a alma para embelezá-la com seus raios, em todas as faculdades espirituais para aperfeiçoá-las, em todas as potências para moderá-las, mas na vontade, como na sua sede, para nela residir e fazer-lhe querer e amar ao seu Deus sobre todas as coisas. Oh! que bem-aventurado é o espírito em que essa santa dileção é infundida, já que todos os bens lhe chegam igualmente com ela (Sab 7, 11)!