sexta-feira, 3 de junho de 2016

AMIZADES

Fonte: Blog do [cultor]

Jacques Leclercq, “Meditações sobre a vida cristã”
  

"A minha vida está na minha alma e a amizade é encontro de almas. 
Nada engrandece tanto a minha alma como encontrar outra."


É apenas um homem. Tem um corpo opaco, como todos os homens, gracioso ou disforme, pouco importa. Trocamos algumas frases; de súbito vejo a sua alma e ela mergulha na minha. Abre-se-me. Ultrapassa-se o corpo e o fraseado abstrato sobre assuntos impessoais: a sua alma está ali, fraternal, e abre-se à minha porque os seus horizontes são os meus. Somos como irmãos contemplando juntos uma paisagem.

É totalmente diferente da camaradagem.
A camaradagem ou companheirismo é contato material. O homem tem necessidade dos seus semelhantes e não suporta estar só. O camarada mobila a vida. Caminhar a dois, torna o passo mais ágil e o companheiro de acaso basta para isto. Cantar em conjunto dilata o peito e gera a alegria de viver. A solidão pesa.
Mas a amizade é outra coisa.
A amizade forma-se nas regiões profundas de onde parte a claridade da minha alma e é dali que ela brota. Provém de se reconhecer no amigo a própria luz interior. Sentimo-nos compreendidos: o amigo vibra com as coisas que nos fazem vibrar, entusiasma-se por aquilo que nos entusiasma; partilha das nossas admirações, das nossas simpatias e das nossas antipatias.
Se tenho uma convicção da qual ninguém partilha, à minha volta, e subitamente encontro alguém que pensa exatamente como eu e reage da mesma forma, em situação idêntica, logo alguma coisa se abre em mim como uma flor e eu me converto em outro homem.

Mas que será a nossa amizade, se eu encontro em outrem a mesma aspiração de viver em Ti; se a poesia do Evangelho, o apelo divino, o emociona como a mim; se o sonho de uma vida dilatada à medida da Tua alma de Homem-Deus, o escondido sonho que eu alimento em segredo, o descubro nele, igualzinho, e me apercebo de que caminhávamos a par, sem nos conhecermos sequer?
O amigo é aquele diante do qual a vida interior pode pensar-se em voz alta, porque ele me compreende e eu o compreendo, porque a minha vida é a sua. E se Tu és a vida de ambos, Senhor Deus, quanta força e que pureza encontrar nele a Tua vida secreta, enquanto eu cuido de a enraizar em mim!

(...)
A amizade deseja a vida e a ação em comum. A comunidade de almas nutre-se e aprofunda-se por uma obra comum porque é nas obras que se afirma a alma.
Enquanto nos limitamos ao sonho, ignoramos a parcela de ilusão que trazemos em nós; mas, em contato com a realidade, na ação, verifica-se a autenticidade da vida interior. A ação, que manifesta a unidade fundamental de aspirações, sela a união pela experiência vivida e confirma a segurança íntima das potências de sentimento e de pensamento.

É a amizade que empresta o seu valor à vida comum. Se caminhamos com outros, o caminho não se reduz à paisagem que se desenrola diante dos olhos, aos horizontes e ao ar que dilata o peito, ao esforço muscular do corpo descontraído, à coluna de fumo, ao entardecer, sobre a fogueira do acampamento; traduz-se, primacialmente, na fraternidade das almas, para as quais os passos, que juntos se estendem, simbolizam esse outro caminho que é a vida e a força que se recebe no caminhar, ombro com ombro, para o mesmo ideal. E quando este ideal está em Cristo; quando os nossos corações batem, um uníssono, por um mesmo desejo ardente de trabalharmos para que Ele reine, de sermos, todos unidos, os artífices da catedral perfeita; quando entrevemos, juntos, o edifício cujas linhas somos convidados a precisar e, ao cair da tarde, rodeando a fogueira do acampamento, a visão do Reino paira sobre os nossos cantos; verdadeiramente, uma presença se faz sentir na comunidade das almas.
A Tua presença, Mestre soberano, Tu que és o Inefável e és nosso irmão. E, ao longo do caminho, ao sol do meio dia ou nas névoas da tarde ou no crepúsculo, Tu nos acenas; desprende-se pureza das coisas e há pureza em nós; o mundo toma o seu verdadeiro sentido e a estrela que sobe no horizonte é um convite para a vida fraterna, em que levaremos a termo a gesta do cristão no mundo.

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