III - EXERCÍCIO DA EDUCAÇÃO
• De três a sete anos, a formação dos
automatismos continua sob outra forma: não se trata mais de “domesticar” a
criança (os educadores não são domadores de feras), mas de despertar-lhe o
senso da obediência e fazer com que nela se exerça essa faculdade. Seu
primeiro esforço deve fixar esse ponto: obedecer. Que a criança saiba que
existem na vida necessidades iniludíveis, porque é “assim mesmo”.
O poder de sugestão de um “é assim mesmo”, dito com calma, persuasão
e firmeza, é imenso; o garotinho deve sentir que há nisso uma espécie de
fatalismo maravilhoso, que tudo simplificará se aceito. Se nos zangamos
para dizer a frasezinha tão importante, se nos enervamos, tudo estará
perdido e o resultado será o oposto do que esperamos.
• Se a criança resiste às vossas ordens,
dadas com bondade e doçura; se faz ouvidos de mercador quando, reunindo toda a
vossa energia, falais com firmeza e decisão, adotai, então, os meios que
julgardes de maior influência sobre o espírito
• À medida que a criança crescer, é melhor agir
sob a forma de sugestões do que sob a forma de ordens imperativas: “Acho
que farias melhor assim... Não achas que deves fazer isto no teu próprio
interesse?... Acho que no teu lugar agiria desse modo...”
• A imaginação pode facilitar o cumprimento
de certos deveres fastidiosos; ela distrai as teimosias e é preservativo contra
choques brutais; um garotinho se recusa desesperadamente a largar um tinteiro
de que se apoderou; ordens e rogos exasperam sua oposição; catástrofe
iminente; mas, alguém baixa o tom de voz, põe um dedo nos lábios e
murmura: “Psiu, nada de barulho. Isso faz “dodói” no tinteiro... ” Com mil
precauções, a criança fascinada põe de novo o objeto em seu lugar; o drama
está conjurado. (Outro exemplo: a mamãe, cujo filho chora, finge que dá
volta à chave na altura da testa: “Cric, crac! Vamos fechar a torneirinha
das lágrimas!”)
• A criança gosta de emprestar caráter mágico ao
seu universo; tudo quanto pensa ter esse caráter a seduz. Uma mãe
utilizou o seguinte processo: “Que palavra mágica é preciso pronunciar
para que vocês fiquem imediatamente tranquilos e bem comportados?” A
pergunta pareceu despertar o interesse dos seus três energümenozinhos. Cada
um deles escolheu a palavra destinada a dominá-lo. Para o primeiro, foi
“Pi-Kan”. Para o segundo “To-Ki”. Para o terceiro, algum outro vocábulo também
sem sentido. O resultado foi verdadeiramente miraculoso. E muito tempo
depois, bastava ainda proferir essas mesmas sílabas para conseguir
a calma, vencer uma crise, obter uma docilidade perfeita
e surpreendente.
• Evitai dar ordens a torto e a direito, ordens
que nada significam e nada mais exprimem do que uma necessidade de
descarregar os nervos: “Vamos, despacha-te!... Depressa !... Segura-te bem!...
Olha para a frente!... Presta atenção!...” A multiplicação de ordens
desarrazoadas enfraquece a autoridade.
• O educador deve compreender a necessidade de
ação e de liberdade da criança. À força de intervir sem cessar para
impedi-la de agir um pouco à sua vontade, acaba-se por tornar a autoridade
insuportável. A exemplo daquela mamãe nervosa que de uma feita deu à
empregada a seguinte ordem: “Maria, vá ver o que as crianças estão fazendo
no jardim, e proíba que...”
• Não confundir autoridade e autoritarismo.
Não sejais como esses pais que dão ordens a torto e a direito pelo
prazer de dá-las, e que acabam por somente enervar os filhos
sem nenhum proveito.
• Limitai ao essencial vossas exigências e vossas
ordens. Não digais sem necessidade: “Faze isto!... não faças assim!...
Deves agir dessa maneira!... Quase todos os pais passam a vida a dar
ordens aos filhos. Resultado: muitas delas permanecem letra-morta. Refleti
antes de dar ordens. Vereis que a grande maioria dessas ordens são
inúteis.
• Quando determinardes alguma coisa ao vosso
filho, fazei-o seriamente e com firmeza, sem vos mostrardes duro ou
desagradável. Dai-lhe a entender que desejais ser obedecido e, em seguida,
providenciai sê-lo. Ás vezes, não basta falar em tom persuasivo ou
mostrar cara zangada. Fechai então docemente, mas com energia, o livro do garoto,
tirai-lhe das mãos a faca ou o canivete, conduzindo-o ao quarto.
• Distribuí vossas forças e graduai os seus
efeitos. Quem com muita, freqüência compromete a sua autoridade
acaba por diminuí-la e perdê-la.
• Não adianta gritar, é preciso querer.
• É preciso saber claramente o que se quer quando
se pede algo a uma criança e é preciso também querê-lo realmente. A
criança não tarda em sentir, como por instinto, segundo o tom de voz, a
real importância que se dá às ordens formuladas. 54
• Basta que a criança se habitue docemente a
ceder às exigências da sabedoria; quase nunca é útil que ela
ceda pela força.
• Uma ordem nunca deve ser dada em tom de súplica;
não tendes que mendigar a submissão. Uma ordem nunca deve ser dada em
tom desabrido; não deveis tornar odiosa a obediência.
• A obediência não é objeto de barganha. Nada
mais odioso do que discussões como, por exemplo, a que se
travou entre uma mãe e seu filho de 8 anos que havia apanhado na rua
qualquer objeto sujo: “Vamos, joga isto fora — Não! — Joga isto fora ou te
dou um “cascudo”! — Não!” E a criança se põe a correr. Então, a mãe num apelo
final: “Dá-me isto e te darei 5 cruzeiros.” Resposta que bem mostra até
onde pode ir a impertinência quando a autoridade fraqueja: “Dê-me primeiro os 5
cruzeiros, e depois eu vou pensar...”
• Se dais ordens a uma criança com a certeza
de que não sereis obedecido, não vale a pena ter o incômodo. A exemplo
daquela mãe pouco hábil que se lamentava: “Sou uma errada por lhe pedir
alguma coisa; ele só faz o que lhe dá na cabeça!”
• Se quereis ser obedecido, cuidai de que vossos
filhos compreendam bem o que desejais; não peçais coisas acima de
suas forças, e ao lhes dar ordens, fazei-o com a firme certeza de que vos
obedecerão.
• Que as vossas ordens sejam claras para a
inteligência de vossos filhos, ainda pouco desenvolvida. Trata-se
menos de vos fazerdes ouvir do que de vos fazerdes compreender.
• Fazei com que as crianças repitam com as
próprias palavras o que lhes tiverdes pedido para fazer; desse modo tereis a
certeza de que ouviram e compreenderam vossas ordens; por outro lado, o
fato de elas próprias explicarem o que vão fazer as predispõe a agir no
sentido indicado.
• A noção que possuímos do tempo não é a mesma
das crianças. Elas se deixarão absorver por um brinquedo até o
momento em que não tiverem mais tempo para arrumar as coisas.
Para isso o remédio é simples: dai sempre um aviso
prévio. No tempo devido, dizei ao vosso filho: “Já está chegando a hora do
almoço, vai te preparar.. .” Caso não esteja pronto ao apelo, vossa
censura se justificará; a culpa será dele e não vossa, como é comum.
• Já reparastes como estas ordens que formulamos
são mal interpretadas pelos nossos filhos? Suas relações são por vezes
tão bizarras e tão desconcertantes para o adulto!
Pedrinho (seis anos e meio) faz seu dever e
escreve letras imensas. Papai observa com sarcasmo: “Será que não sabes
fazer letras maiores ainda?” Qual foi o resultado? Uma página escrita com
SS e ZZ gigantescos...
• No instante de sair, mamãe pede a Denise,
de 3 anos e meio: “Vai ver se minhas luvas estão no quarto.” A garotinha
vai e volta para dizer que estão, sem... trazê-las.
A criança, com efeito, é realista e objetiva. Sua
inteligência mal formada não compreende todos os matizes da nossa linguagem de
adultos. Além disso, menos esperta do que nós, toma ao pé da letra o que
lhe dizemos, e não transige com o sentido das palavras. Para ela, é sim ou
não, preto ou branco, grande ou pequeno, e jamais admitirá que
quereis dizer “sim” quando pronunciais “não”.
Devemos, pois, ter o cuidado de exprimir
exatamente o nosso pensamento, sobretudo quando se trata de
ordens importantes. Digo: “Não se vai mais ao jardim
quando escurece.” È preciso que verdadeiramente a obscuridade
tenha caído, senão a criança achará que ainda está claro. Mais de uma tem
desobedecido assim, de boa fé, e durante muito tempo ruminará o
que há de injusto e incompreensível na punição.
Busquemos, enfim, ensinar aos filhos
a verdadeira significação de uma palavra. Às vezes nos espantamos
verificando que um termo, mesmo corrente, é mal compreendido por uma criança.
• As crianças interpretam textualmente as
proibições. Um garotinho a quem se proibira de vir à sala, durante
a noite, em camisa, ali apareceu de uma feita inteiramente despido,
em presença de visitas, e justificou sua conduta “impudica” pela proibição
que recebera de ir à sala “em camisa”.
Paulinho (3 anos) adorava laranjas. Davam-lhe por vezes
licença de ir ao vendeiro B... e pôr uma laranja na conta de mamãe. Um dia em
que já havia comido duas, pediu: “Posso ir à quitanda de B... buscar uma
laranja?” Resposta da mãe: “Não, não podes ir à quitanda de B...!” Alguns
instantes depois, ela descobriu o garotinho sentado no jardim, comendo uma
laranja. Censurou-o, lembrando-lhe a proibição recente, ao que respondeu
prontamente a criança: “Não fui à quitanda de Bi... e sim à de
L...” (O quitandeiro vizinho.)
• Dai ordens em poucas palavras: evitai os
discursos e recomendações complicadas. Uma vez dado o aviso, não volteis a
ele cem vezes; obrigai a criança a conformar-se com o vosso desejo sem
responder aos seus “porquês” e aos seus “como?” multiplicados.
• Poderia ser imprudente explicar sempre à criança
a razão das ordens que lhe dais: seria expor vossa autoridade a ser
incessantemente discutida, julgada e... muitas vezes condenada. Todavia, é
útil que, de tempos em tempos, a título de exemplo, façais com que ela
compreenda o porquê da imposição de tal ou qual coisa.
Apelando, assim, para o seu julgamento e seu
coração, fazendo-a compreender por que deve ser obediente, vós
lhe facilitareis essa virtude. No dia em que considerardes não ser
oportuno dar razões é provável que a criança se submeta de boa vontade, de
qualquer forma, sabendo que vossas razões costumam ser boas.
• Não faleis como um déspota; não tenhais
continuamente à boca: “Quero, ordeno, que a minha vontade valha
mais do que qualquer motivo...” Às vezes isto constitui prova de
força; com maior freqüência, entretanto, é um sinal de fraqueza que não
engana a criança por muito tempo.
• Uma ordem não poderá ter bom efeito se
exprimir uma ameaça, um sentimento de cólera ou uma reprimenda antecipada,
como se a ordem, antes mesmo de ser formulada, já fosse mal executada.
• Há determinações mal feitas que
sugerem simultaneamente a possibilidade de uma resistência e o sentimento
de aborrecimento inerente ao ato que sem essa intervenção ter-se-ia
executado automaticamente, sem resistência nem aborrecimento.
• Parece que a vontade da maioria dos
pais e dos educadores é a de dar, antes de tudo, à criança, o conhecimento e
a intimidade do mal. Depois do que lhe proíbem esse mal e a castigam
se o pratica!
Desde os primeiros anos, em vez de afastar dela as
ocasiões de fazer tolices, fazemos com que viva no meio de uma multidão de
objetos que, a seu alcance, excitam-lhe a curiosidade, e acerca dos quais
lhe repetimos sem cessar — antes mesmo que a idéia lhe surja — “Não toques
nisso!” Em lugar de ocupar o espírito e as mãos da criança, de modo a
dela afastar a própria idéia de fazer uma tolice, deixamo-la ociosa,
multiplicamos-lhe as proibições. “Não farás isto, não dirás tal coisa,
etc...” E nem percebemos que a própria interdição faz nascer a idéia e o
desejo da coisa que não se deve fazer.
E assim vai ao longo de Toda a educação. Em vez de
invocar diante da criança o bem, a beleza, a justiça, a bondade, etc., de com esses
valores alimentar-lhe a imaginação, fazer com que ela os ame e admire, apenas a
entretemos com o mal, faltas e coisas feias a pretexto de que delas devemos
afastá-la. Em lugar do entusiasmo pelo bem, que a tornaria forte, nós a
saturamos com o temor do mal, que a torna pusilânime, senão hipócrita.
• O verdadeiro modo de preservar uma criança, é
formar o seu discernimento, dando-lhe ocasião de exercê-lo. Ao dizer-lhe,
por exemplo: “Vais ter frio, vai resfriar-te. Vais ter uma indigestão...
Vais te machucar... Vais cair...“, formulam-se afirmações peremptórias que
tendem a se realizar por si mesmas, graças ao seu potencial evocativo.
Os temores dos pais ganham corpo: o perigo
se acrescenta, em vez de aumentar, como é preciso, a resistência
da criança. A uma pedimos que tire a mesa. Instintivamente lhe dizeis: “Cuidado!
Vais deixar cair alguma coisa...” Basta essa afirmação para tornar a
criança desajeitada.
• Cumpre suavizar vossos imperativos. Procurai dar
à criança a impressão de que a coisa a fazer vem mais de seu próprio
pensamento do que de uma vontade estranha.: “Acho que tens razão se queres
fazer isto assim... É inteligente de tua parte agir dessa maneira.” Não é
nem necessário nem desejável que uma ordem produza impressão desagradável.
• O argumento pessoal: “É preciso fazer isto”
age mais sobre a criança do que a fórmula do despotismo
pessoal: “Quero que faças isto!”
• Quando a criança cresce, não lhe mostreis nunca
a obediência como uma diminuição de sua personalidade, mas ao contrário
como um meio de mostrar que ela possui uma bela alma de chefe. O chefe é o
que sabe obedecer antes de saber ordenar.
• Se o educador, por toda a sua
atitude, mostra que não é nem para o seu prazer, nem para sua vantagem,
nem por capricho, nem por orgulho que emprega sua autoridade; se ordena de
modo a dar a impressão de que ele próprio obedece ao fazê-lo, torna-se
então para a criança a revelação de uma vida superior em que, sob o
reino da justiça e da bondade, desaparece a oposição dos egoísmos.[1]
[1] Laberthonniere, op. cit., pág. 35.