sábado, 10 de agosto de 2013

TRATADO DO DESÂNIMO - Parte V

Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI.


TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952


MOTIVO DE CONFIANÇA, PARA UMA ALMA RELIGIOSA, NA MISERICÓRDIA DE DEUS SOBRE ELA, E NA ESCOLHA QUE ELE FEZ DELA PELA GRAÇA DA SUA VOCAÇÃO. FALSAS IDÉIAS E FAL­SOS SENTIMENTOS QUE EMPRESTAMOS A DEUS.

Uma alma religiosa acha na sua voca­ção um traço bem assinalado da miseri­córdia de Deus sobre ela. Em qualquer es­tado que esteja, toda alma que, depois de haver servido a Deus, se transviou nas vias do pecado ou do relaxamento, e que, em certos tempos, voltou a Deus, não po­de duvidar das atenções misericordiosas do Senhor, que os méritos de Jesus Cristo lhe proporcionaram. O bom pensamento, o santo desejo de se consagrar a Deus, ou de tornar a entrar na prática exata dos seus deveres, não foi Jesus Cristo quem lhos deu? A força, a coragem de fazer a Deus o sacrifício dos bens, dos prazeres do mundo, da sua própria von­tade, das suas paixões, não foi de Jesus Cristo que ela as recebeu? Os sentimen­tos experimentados por Deus e que a sustentaram na sua consagração e nos com­bates dados à natureza, não foi Jesus Cristo quem lhos inspirou?

Se uma alma tivesse a presunção de se atribuir tudo isso, seria desmentida quer pela experiência reiterada da sua fraque­za, quer pelo oráculo de Jesus Cristo. Di­zia Ele aos Seus apóstolos, e ainda diz a toda alma que se consagrou ao Seu ser­viço: Não fostes vós que me escolhes­tes; fui Eu que fiz escolha de vós, e isso quando nem pensáveis nisso, quando vi­víeis na dissipação, quando fugíeis de mim, quando me resistíeis com tanta obs­tinação. Ora, teria Jesus Cristo escolhido essa alma tão especialmente, se não quisesse sinceramente ajudá-la, quando ela reclamar o Seu socorro? Pode-se pensar isto, e atribuir a Deus semelhante contra­dição? Não; se essa alma recorrer a Ele na necessidade, Jesus Cristo rematará a obra que começou nela, e conduzi-la-á à perfeição do seu estado. A Sua palavra está empenhada nisso, e Ele convida in­cessantemente essa alma desanimada a lançar-se amorosamente nos braços da Sua misericórdia, para aí procurar e achar a sua salvação.

Não emprestemos a Deus as nossas paixões e os nossos erros, e tudo isso será para nós sem dificuldade. Se alguém a quem prestamos os serviços mais impor­tantes só nos testemunha indiferença e ingratidão; se só por ultrajes corresponde aos beneficios de que o cumulamos, nós nos cansamos finalmente; consideramo-lo como um indigno dos nossos desvelos, mormente se ele sempre se serviu dos nos­sos benefícios para nos ultrajar; e aban­donamo-lo absolutamente. Acreditaríamos agir contra as regras da prudência se continuássemos a fornecer-lhe armas con­tra nós.

Eis aí o sentimento que emprestamos a Deus, cujos juízos e caminhos estão tão distantes dos nossos como o céu está dis­tante da terra. Deus suporta os nossos desvarios porque é eterno e onipotente, e porque a Ele não pode faltar o tempo em que a Sua justiça porá tudo na ordem, e para sempre. Suporta-os porque é infi­nitamente bom, e porque quer dar-nos os meios de voltar a Ele. Deus, a quem na­da pode ser oculto, desde toda eternida­de viu as nossas fraquezas, as nossas in­gratidões, as nossas quedas reiteradas. Viu que não podíamos sustentar-nos e voltar a Ele sem o Seu socorro; esse socorro, preparou-no-lo Ele em Jesus Cristo; con­vida-nos, exorta-nos, ordena-nos mesmo implorá-lo depois das nossas quedas, para nos levantarmos; promete-nos ajudar-nos, ser-nos propício. Ajudando-nos e perdoan­do-nos é que se exerce a Sua misericórdia.

Esse procedimento de Sua parte, mani­festou-no-lo Deus de maneira bem eviden­te no povo judeu. Esse povo muitas vezes idólatra, muitas vezes Deus o puniu para fazê-lo reentrar em si mesmo e recondu­zi-lo ao dever da obediência. Se ele aban­donava o seu Deus para servir deuses es­tranhos, o Senhor entregava-o a inimigos cruéis, que o retinham em dura servidão. Se, coberto de males na escravidão, ele voltava ao seu Deus com confiança, na sinceridade do seu coração, Deus lhe da­va um libertador, que o libertava da dura dominação sob a qual ele gemia; e essa vicissitudes durou por quatrocentos anos.

Julgai por aí se o nosso Deus se cansa de nos perdoar quando O invocamos com sincero pesar das nossas infidelidades. Se esse procedimento do Senhor para com Seu povo não vos tranquilizar, escutai o Rei Profeta, inspirado pelo Espírito San­to. Ele vos assegura que Deus nunca re­jeita um coração contrito e humilhado (Sl 50, 19).

Efetivamente, é Deus quem nos atrai pe­la Sua graça todas as vezes que, espanta­dos à vista dos nossos pecados, temos o pensamento, o desejo de voltar a Ele de­pois das nossas quedas. Será então para não nos receber que Ele nos chama? Quem poderia pensá-lo? Ele diz a S. Pedro que perdoe todas as vezes que for ofendido (Mt 18, 22); as suas lições são a expressão dos sentimentos do seu coração. Ah! co­nhecemos mal esse coração divino, se lhe emprestamos o nosso modo de pensar, e se supomos n’Ele a menor indiferença por nós. Enquanto estamos neste mundo, es­tamos sob a providência da Misericórdia, e podemos sempre aproveitar dela. Só a morte nos coloca sob a providência imu­tável da Justiça.