terça-feira, 6 de agosto de 2013

TRATADO DO DESÂNIMO - Parte IV

Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI.


TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952


MOTIVO DE CONFIANÇA, BEM PODE­ROSO, NO VALOR INFINITO 
DOS SO­FRIMENTOS E DOS MERECIMENTOS DE JESUS CRISTO.

Uma alma atacada pelo desânimo acha-se dominada por um temor excessivo, que a impede de refletir sobre os fundamen­tos inabaláveis da confiança em Deus. Não se lhe poderiam, pois, dar motivos demasiados para dissipar esse temor que a perturba incessantemente. Esses moti­vos, ela os achará, poderosos, nos sofrimentos de Jesus Cristo, que são de um valor infinito pela dignidade da Pessoa divina.

Morrendo por todos os homens, rogan­do por todos, oferecendo Seus sofrimen­tos e Sua morte, Jesus Cristo mereceu-lhes a todos as graças que devem sustentá-los nos combates da salvação e conduzi-los à felicidade da eternidade. Esses merecimentos, de que não tinha necessi­dade para Si mesmo, Jesus Cristo cedeu-os aos homens; de sorte, diz S. Bernardo, que eles se tornam os próprios merecimentos dos homens. É apresentando-os a Seu Pai que nós obtemos esses socorros que nos tornam tão fortes contra os ini­migos da salvação. É baseada neste prin­cípio que a Igreja, em todas as orações que faz a Deus, roga pelos merecimentos de Jesus Cristo Nosso Senhor.

Mas, dirá uma alma assustada com a vida que tem levado, com que olhos pode Jesus Cristo olhar-me, depois de tantos ultrajes que Lhe tenho feito? Quererá Ele ainda interessar-se por um inimigo que por tanto tempo e tão indignamente O desprezou? E uma alma cristã e instruída pode duvidar disto? Jesus Cristo não nos assegura que foi especialmente pelos pe­cadores que Ele veio sofrer e morrer? que especialmente os pecadores é que Ele veio procurar? Apesar desta segurança, julgar-se-á ainda que a qualidade de peca­dor é um título para ser recusado, quando se pedem socorros para voltar a Deus? Não, o céu e a terra passarão, mas a pa­lavra de Jesus Cristo não passará sem se cumprir. As Suas promessas dizem respeito aos pecadores; e, se não houvesse peca­dores, Jesus Cristo teria sofrido? teria suportado uma morte tão cruel? Quanto mais pecadores são os homens, tanto mais a misericórdia de Deus e o poder dos merecimentos do Salvador se exercem com brilho. Haverá crime mais negro do que a perfídia de Judas? Sim, responde S. Jerônimo, há um ainda mais enorme, e é o desespero: Judas tornou-se mais cul­pado dando-se a morte do que traindo o seu bom, o seu divino Mestre.

Não receemos, pois, recorrer aos mereci­mentos de Jesus Cristo. É honrar esses merecimentos e pô-los em obra para ob­termos os socorros de que havemos mister, visto ter sido por isso que Jesus Cristo Se dignou de adquiri-los e de no-los ceder. É aplicando-no-los pela oração e pelas boas obras que nós operamos o bem para o qual eles foram adquiridos.

Estranha maneira de honrá-los seria não ousarmos fazer uso deles: isto seria ir diretamente contra o fim que esse di­vino Salvador se propôs. Deixar inúteis os Seus dons, não é testemunhar que os estimamos, é considerá-los como indiferentes. Já que nos reconhecemos pobres, cheios de misérias e de fraquezas, deve­mos procurar enriquecer-nos, curar-nos dos nossos males, fortalecer-nos. Jesus Cristo oferece-se a nós para operar este prodígio, oferecendo-nos os Seus méritos infinitos: Vinde a mim, diz-nos Ele com bondade, e Eu vos aliviarei[1]. Não é contra todos os princípios, contra todos os sentimentos, e igualmente contra a intenção do Salvador, recearmos recorrer a eles?

A tentação serve-se de tudo para desa­nimar as almas: faz-lhes achar nos sentimentos de uma humildade mal entendida razões de temor que as lançam no abati­mento. A humildade cristã, de acordo com a razão, pede que nos reconheçamos in­dignos dos benefícios do Céu, mas não exige que recusemos os que nos são ofe­recidos, não exige que não peçamos aque­les que nos foi prometido seriam conce­didos às nossas preces. Bem mais: a gra­tidão que devemos a Jesus Cristo exige que nos conformemos com a Sua vonta­de, aproveitando-nos daquilo que Ele so­freu para nos proporcionarmos os socorros que Ele nos mereceu. Nunca O honraremos melhor do que nos conformando com os objetivos de misericórdia que Ele teve em Se imolando por nós.

Com que poderíamos contar para apla­car a Justiça de Deus, ultrajado pelo pecado, e para atrair sobre nós a Sua Mise­ricórdia, se não contássemos com os mé­ritos do nosso Salvador? É apresentando-os a Deus que conseguiremos dobrar essa misericórdia. Se em nós Ele só vê objetos que provocam a Sua justiça, em Seu Filho só vê objetos que solicitam a Sua misericórdia. Essa divina misericór­dia exerce-se para conosco, desde que, com sentimentos de pesar, nos apresenta­mos a Ele, à sombra da cruz do Deus Salvador, e cobertos do Seu sangue adorável derramado por nós. E assim os direitos da Sua Justiça são salvos. A misericórdia e a verdade, a justiça e a paz fazem entre si uma aliança a mais humilde em nosso favor (Sl 84, 11).

[1] Venite ad me, ego reficiam vos (Mt 2, 28).