sábado, 21 de setembro de 2013

TRATADO DO DESÂNIMO - Parte XV

Nota do blogue: Acompanhar esse especial AQUI.

TRATADO DO DESÂNIMO NAS VIAS DA PIEDADE
Obra póstuma do Padre J. Michel - 1952


DESGOSTO QUE CONCEBEMOS PELOS EXERCÍCIOS DE PIEDADE, 
SOB O FALSO PRETEXTO DE SEREM INÚTEIS, 
E DE SÓ SERVIREM PARA MULTIPLICAR AS NOSSAS FALTAS.

Parece que esse espírito de desânimo, quando se apodera de uma alma, lhe tira toda luz, toda reflexão. Essa tentação aplica-se sobretudo a lhe tirar todo espí­rito de oração, e, por esse modo, expõe- na visivelmente a perder-se. Bem certo é que só podemos operar a nossa salvação pelo socorro da graça. Esse socorro, só o obtemos pela oração frequente, constan­te, perseverante. Nada é mais recomenda­do nos livros santos do que este meio, que comumente é a fonte de todos os outros que Deus nos inspira empregarmos.

Há pessoas que, pela negligência a que se acostumaram, encaram esse santo exercício como inútil para elas, pelo fato de a ele se apresentarem na persuasão de que dele se desobrigarão mal, como o têm feito até esse dia. É o primeiro pensamento que se lhes oferece à mente; e bem longe de o combaterem por senti­mentos cristãos, aderem-lhe unicamente.

Nesta persuasão, elas vão à oração sem confiança, sem vontade de tributar a Deus as adorações, as homenagens que lhe de­vem; sem visão mesmo de Deus, sem pre­paração interior, sem se fazerem a menor violência para se recolherem e para saí­rem dessa dissipação de espírito e de co­ração que as absorve, que lhes faz esque­cer inteiramente a Deus e a sua salvação.

É certo que uma oração que carece das qualidades essenciais que Deus exige para ela ser atendida, não pode ser de mereci­mento algum diante de Deus, e a con­fiança é a primeira dessas qualidades. Aquele que hesita orando, diz S. Tiago, não alcançará nada (Tgo 1, 6); com maio­ria de razão nada alcançará aquele que nada espera. Neste estado, não se fazendo nenhuma violência, unicamente ocupadas com inutilidades, não raro numa inação que lhes não permite refletir sobre aquilo que as ocupa, essas pessoas não sabem sequer se estão na oração. E, se este exer­cício é de obrigação estrita, como o ofício, a missa, elas faltam a um dever es­sencial sem se censurarem por isto: coisa que muitas vezes as lança em embaraços de consciência, relativamente aos sacra­mentos que recebem sem se disporem para fazer melhor.

Direi a essas pessoas: Pela vossa expe­riência, estais persuadidas de que fareis mal as vossas orações, apesar das vossas resoluções. Mas de onde vos vem essa ex­periência? Remontemos à fonte dessa ne­gligência que resiste a todas as vossas re­soluções, resoluções que muitas vezes estão muito mais na imaginação do que na von­tade, e aí achareis a hesitação, ao passo que as orações feitas com a plena con­fiança em Deus vos sustentarão e vos ga­rantirão contra as paixões que vos puse­ram nesse estado. Pela oração combatê-las-eis, e não mais vos abandonareis ao im­pulso delas.

Pensastes que poderíeis passar o dia in­teiro ocupada em alguma satisfação na­tural e em divertimentos frívolos; ocupa­da em ver, em saber de tudo o que se faz, de tudo o que se diz; em não perder ne­nhuma ocasião de ter conversas inúteis; em escutar tudo o que os outros querem re­ferir-vos a respeito do próximo; em en­trar em todos os vossos desaguisados, em censurar uns, em condenar outros baseada em relatos infiéis; em satisfazer, em to­das as ocasiões, sentimentos de inveja, de antipatia; enfim, sempre fora de vós mes­ma, em não terdes atenção senão sobre o proceder e os pequenos interesses dos outros, e nunca sobre vós e sobre os vossos interesses eternos, sobre a vossa salvação, estendendo essa dissipação até o momento em que ides à oração, à qual ides o mais tarde possível, sem refletirdes um só mo­mento no que ides fazer; e pensastes que, sem embargo, o recolhimento, a atenção, a devoção se apoderarão de chofre de vos­sa alma, expulsarão dela as distrações, aplacarão o tumulto das paixões, e farão renascer subitamente os sentimentos da Fé, da Piedade, do Amor? Pudestes, de boa fé, esperar isto?

Não vos ocupastes um só momento de Deus durante o dia; não testemunhastes a Deus nenhum dos sentimentos que lhe deveis; resististes às luzes que Ele vos deu; descurastes as Suas graças, vos dis­traístes delas, com medo de serdes obri­gada a entrar em vós mesma para vos dar­des conta da vossa conduta e dos vossos motivos em relação a Deus. Lisonjeastes-vos de que, nessas disposições e com es­sas infidelidades, as vossas resoluções vos poriam, num momento, no exercício da confiança em Deus, do seu divino amor, do recolhimento necessário para vos de­sobrigardes santamente das vossas ora­ções? e de que a vossa imaginação, a vossa mente, docilizadas de repente, depois de não vos haverdes constrangido sobre coi­sa alguma, se deterão, se fixarão, por mais volúveis que sejam, para não mais se ocuparem senão de Deus? de que elas esquecerão essa espécie de encantamen­to que as seduziu, para se nutrirem de pensamentos salutares, mas tristes para uma alma que tão constantemente os tem negligenciado?

Seria cair numa ilusão lastimável, que a razão facilmente faz perceber, mas que a Religião condena bem altamente; por­que isso seria contra a sabedoria da Pro­vidência, que quer conduzir-nos ao Céu pelos meios que têm alguma proporção com o fim: pelo desejo da salvação, pelas reflexões sobre os caminhos próprios para ser bem sucedido, pela vigilância sobre nós mesmo, para evitar o que poderia fa­zer-no-la perder, pela prática das virtu­des que podem assegurá-la. Isso seria con­tra todas as lições que Jesus Cristo nos dá no Evangelho, lições de recolhimento, de renúncia, de mortificação, de aplicação à oração. Julgai, por aí, das consequências e do êxito que pode ter a vossa conduta, e do excesso da ilusão que vos transvia.

Não podeis, pois, sair desse estado senão levando a mais longe as vossas resoluções, e desiludindo-vos do erro que vos sedu­ziu.

Quando refletimos sobre nós mesmo, quando vemos que as medidas que toma­mos para nos corrigirmos não produzem nenhum efeito, ou só produzem efeitos momentâneos, devemos por isso desani­mar, encasquetar na mente a idéia de que nunca seremos bem sucedido? Isto seria raciocinar sem princípios, e não ter idéia do que Deus pode fazer em favor de uma alma que espera n’Ele e que sincera­mente lhe quer ser fiel. Naturalmente, deve-se pensar então que essas medidas, essas resoluções não são as que podem operar uma mudança, e que é preciso re­correr a outras mais eficazes. Já que, pe­los efeitos, julgamos não ser bem sucedi­dos, devemos investigar a fonte do mal. A razão nos diz que, enquanto a causa sub­sistir, os efeitos que por um momento nós detivemos não tardarão a voltar, e quiçá com mais força, por haverem sido combatidos e constrangidos. A Religião nos ensina que deixar subsistir a causa do mal, quando está em nosso poder fazê-la cessar, é ficar voluntariamente no perigo, e expor-nos a sucumbir.

No caso dessa alma de que falo, a causa das dificuldades que ela acha na oração é, comumente, a dissipação, o esquecimen­to de Deus e da sua salvação, no correr do dia. Vive-se ao léu; age-se sem saber por que, sem se propor nos seus projetos motivo algum de religião, sem dar às pró­prias ações nenhuma relação com Deus; os projetos são inteiramente humanos, na­turais, não raro pueris; só se procura proporcionar a si mesmo miseráveis satisfa­ções: as ações correspondem à baixeza dessas vistas.

Consoante a Religião, os projetos só de­vem tender à prática da renúncia a si mesmo, da mortificação do espírito, do co­ração, dos sentidos, à indiferença por to­dos esses pequenos interesses que se per­seguem com tanto ardor.

As ações devem ser feitas por um moti­vo que se refira a Deus, ou, pelo menos, que a Ele possa referir-se. Não estamos na terra senão para a glória de Deus: tu­do o que fizermos deve tender a isso. Se Deus não é o princípio e o fim das nossas ações, se a pureza de intenção não as acompanha, elas se tornam inúteis para a nossa felicidade.

Quereis, pois, sinceramente sair do es­tado de infidelidade, de inutilidade, em que vos achais? quereis desobrigar-vos da oração mais fácil, mais santa, mais util­mente? Nutrida habitualmente dos obje­tos, das verdades da Fé, fazei versar as vossas resoluções sobre as máximas que vos apresento. O esquecimento destas verdades é a fonte do mal: a aplicação a es­sas verdades remediá-lo-ás. Aplicada en­tão à vossa salvação, que encarareis como o vosso primeiro negócio, sereis atenta às luzes, aos bons sentimentos que Deus vos der. Conhecendo a importância dessas graças, não mais as desprezareis; não mais vos distraireis delas para vos entregardes à dissipação; agradecê-las-eis a Deus; ape­gar-vos-eis a Ele, para segui-lO com fide­lidade.

Estas ocupações cristãs, substituídas aos extravios da vossa mente, impedir-vos-ão de entregar-vos a preocupações inúteis antes da oração, e, nas ocupações necessá­rias, vos ajudarão a recolher-vos antes de vos apresentardes diante de Deus. Reen­trareis na ordem da Providência, pela vos­sa aplicação a empregar os meios que Deus estabeleceu; achareis aí mais gra­ças. Mais ocupada de vós, em relação a Deus e à vossa salvação, trilhareis com constância a trilha que faz praticar o bem com o socorro da graça, e que leva à feli­cidade eterna, de onde vos afasta a con­duta que até agora mantivestes.

Uma vez reconhecida esta máxima, de que, para impedir eficazmente as faltas, é preciso atacar-lhes o princípio, devemo-nos aplicar a isso em todas as ocasiões. Além da dissipação, que faz faltar a quase todos os deveres, ou que os faz cumprir tão imperfeitamente, há paixões cujos efei­tos não são tão extensos, mas que fazem cair em faltas que, pela sua frequência,' desanimam a alma fiel. Essas paixões têm todas por princípio um amor-próprio que não sabe dobrar-se a nada, e que rebaixa sempre o mérito de outrem e lhe salienta, a todo propósito, os menores de­feitos; é um apego à própria vontade, ao próprio juízo, ao qual se quereria reduzir toda gente; é uma vivacidade de caráter que não se sabe dobrar a nada, e que quer se meter em tudo; é uma arrogân­cia natural, uma vã estima de si mesmo que nada quer sofrer e que rebaixa toda gente abaixo de si. Que sei mais? e quem é que pode fazer a enumeração de todas as paixões do coração humano?

O que sabemos bem seguramente é que, seja qual for a paixão cujo ascendente nos lança no desânimo, devemos aplicar-nos a destruí-la, ou pelo menos a comba­tê-la sem cessar. O desejo da salvação, ao qual essa paixão opõe obstáculo, a oração frequente, as reflexões santas, fundadas nas máximas do Evangelho, os exemplos de Jesus Cristo e dos santos, são os meios que a Providência nos deu para sufocar­mos essas paixões, ou para enfraquecê-las a ponto de nada termos a recear delas. Esses meios, quando os empregarmos em nome do Senhor, terão o seu efeito, con­soante as promessas d’Ele. Destarte, nada será impossível, nada será inútil. Pelo amor que concebermos ao nosso Deus, tu­do reverterá em nosso bem eterno.

Eis aí o caminho que vos está aberto: eis aí os meios que estão em vossas mãos. Se não fordes bem sucedido, será por cul­pa vossa, será pela vossa resistência às graças de Deus. Não mais vos queixeis, pois, do Senhor: só a vós mesmo culpai.