sexta-feira, 24 de agosto de 2012

União Divina

Por um cartuxo anônimo
Intimidade com Deus



            É ao próprio Deus que o homem se deve unir para realizar o seu destino. Se pudermos atingir o ponto mais alto do ser e a sua causa primeira, vamos porventura perder tempo com desejos mesquinhos? Para atingirmos a nossa pátria é necessário perdermo-nos no bem supremo: dirijamos desde já para Ele todas as nossas ações, e que a nossa alma respire finalmente o seu elemento natural. À medida que reconhecemos a vontade de Deus em todas as coisas, e que acostumamos a nossa vontade a consentir nela, vemos diminuir em nós a necessidade das coisas criadas, até que delas nos libertamos definitivamente. Uma alegria essencial, que reside no fundo da alma, tira todo o atrativo aos bens acidentais.
Porque a verdade, a luz divina, dá a cada objeto o seu verdadeiro valor. Uma vez encontrado o seu centro divino, a alma deixa de oscilar entre o desejo e o temor: ela conhece agora o puro equilíbrio do amor. Sabe que a união com Deus é inseparável da calma e dum profundo silêncio da vontade própria; por isso tem o cuidado de evitar tanto a solicitude como a negligência.
Non in commotione Dominus (III Reis, XIX, 11).
            A verdade, aceita primeiro com humildade e simplicidade pela fé, e vivida na paciência quotidiana, torna-se agora evidente: a alma pode saboreá-la sem intermediários, na experiência do amor. Gustate et videte quoniam suavis est Dominus. - «Provai e vede como o Senhor é doce!» (Salmo XXXIII, 9).
            A submissão ao que Deus nos ordena eleva-nos continuamente para Ele: a humildade exalta-nos e permite-nos olhar livremente, do alto das perspectivas da graça, o pequeno mundo dos interesses humanos. Aqui o coração abre-se ao amor de todos os homens e gostaria de derramar sobre eles rios de água viva de que está inundado: católico no sentido pleno da palavra, não tem desprezo por nenhuma alma nem põe de lado nenhuma miséria. A preocupação de agradar sempre ao Pai celeste dá um caráter sobrenatural a tudo o que o homem faz neste estado de união, até mesmo nos mínimos pormenores do seu comportamento. E Deus sente-se mais glorificado, e compraz-Se e reconhece-Se nele muito mais do que em toda a Sua criação, cujas maravilhas proclamam, contudo, a Sua sabedoria e o Seu poder. Uma confiança ilimitada, absoluta, assegura à alma interior a sua união com o Pai: ela sabe que nenhuma potência do mundo ou do inferno tem o poder de a abalar. Nada do que foi criado tem poder sobre uma vontade sinceramente abandonada, pois o amor apodera-se dela para estabelecê-la para sempre em Deus.

            A união espiritual confere ao homem a sua mais alta dignidade: dar um filho ao Pai na própria Pessoa do Filho. Com esta filiação divina a alma recebe a liberdade - Ubi Spiritus, ibi libertas (II Cor., III, 12); recebe poder que vai exercer sobre o coração do Pai e em todo reino do amor; e recebe a beleza que irradia da conformidade com Cristo. Sente-se amada por Deus como se fosse o único objeto do amor divino e ama a Deus como único objeto do seu amor. Nada pode reter o seu afeto senão for com Deus e em Deus. A união torna-se tão pura que o homem se sente alheado de si próprio e já não pensa em voltar para trás no seu vôo interior. «Dai-me asas como as de pomba, para que eu possa voar e descansar» (Salmo LIV, 7).
            A alma deixa de pertencer a si própria se é de fato um bem de Deus como Ele o é da alma: o amor, purificando-se, leva-a para Ele num movimento cada vez mais pronto e mais direto. Amar a Deus por Ele próprio é o derradeiro fruto da graça que eleva o homem à ordem sobrenatural, lhe entrega as riquezas da essência e o faz participar da vida de Deus. «Eu amei-te com amor eterno, por isso, compadecido de ti, te atrai a mim» (Jerem.; XXXI, 3).
            As potências da fé germinaram e desabrocham agora na plenitude da caridade. Não há nada que tenha o poder de unir como o amor divino, e nenhuma profundidade é comparável àquela a que ele arrasta os que uniu para sempre. Todo o amor atrai e, em certo sentido, devora aquele que ama, mas o nosso coração não pode absorver Deus: e assim este amor arranca-nos a nós próprios e absorve-nos no objeto amado: «o meu amado é para mim e eu para ele» (Cânt., II, 16).
            A caridade leva, deste modo, à fusão dos corações. Deus eleva-nos infinitamente acima da nossa natureza para tornar possível essa consumação. No fim do nosso trabalho e das súplicas duma humilde oração, o Amor faz-nos atravessar um espaço em desproporção com o nosso esforço, e leva-nos a um ponto que os nossos desejos não tinham sequer concebido. «Ninguém pode vir a mim se o meu Pai o não atrair» (João, VI, 44).
            Com sublime violência, Deus une-Se, assimila-Se e transforma em Si próprio a alma que vive com verdadeiro amor. «Porque o nosso Deus é um fogo devorador» (Hebr., XII, 29). E o espírito conduzido por Deus não encontra em Deus nada que o faça parar: pode sondar livremente os seus abismos. É sem temor que se entrega ao seu elemento. «O amor lançou-me ao fogo.» A obediência a todas as ordens de Deus conduz a alma à sua morada eterna: mergulha nela, já nesta vida, uma raiz inabalável e pode começar a crescer em paz no amor. O progresso na caridade dá ao espírito um conhecimento mais íntimo de Deus, e esse conhecimento inflama por sua vez a vontade numa caridade mais intensa, de onde brota uma nova luz. O divino é tão familiar a essa alma, que a sua realidade lança na sombra a dos objetos terrenos: vê estes últimos com os olhos do corpo como coisas estranhas, enquanto contempla diretamente a verdade divina, misteriosamente ligada à sua substância por uma comunhão constante. O amor de Deus domina então toda a vida do homem e faz cessar rapidamente a inquietação do espírito e a agitação do coração. Ordinavit in me charitatem. - «Ordenou em mim a caridade» (Cânt., II, 14).
            Assim que a amada se apaixona por Deus, procura por todos os meios conhecê-lO melhor para mais completamente se perder nEle. Por não ser mais que uma somente do Reino de Deus, o que ela achou é tão precioso que esta resolvida a não se desfazer dEle por nenhum preço. O conhecimento de Jesus faz-nos sedentos de um conhecimento mais imenso, e o gosto do Seu amor faz-nos famintos de um amor maior. A coragem aumenta com a consciência do tesouro possuído, que será deferido, se for necessário, numa luta contínua contra tudo.
            A forma de Cristo deve acabar de se realizar na alma até à plenitude da idade nupcial. O recíproco abrir dos corações cria entre as vontades e os pensamentos, entre as próprias naturezas, um acordo inesgotável. É um crescimento que não pára e não se acaba neste mundo: continuamos toda a vida a despojar-nos do acidental, segundo as inspirações da graça, para que o amor essencial se torne firme em nós. Mas já não fazemos nada que não tenda para Deus, a nossa vontade torna-se cada dia mais pronta e o Seu caminho mais direito: a obediência filial liga-nos a toda a hora mais intimamente à vida do Pai, único objeto do nosso esforço e único apoio do nosso abandono. «Outrora éreis trevas, mas agora sais luz no Senhor. Andai como filhos da luz» (Efés., V, 8).
            Por mais diferentes que sejam as nossas ocupações espirituais ou materiais, os nossos atos têm o mesmo valor profundo e o mesmo sentido. Cada um dos nossos passos leva-nos do Filho para o Pai: a nossa existência inteira está compreendida na serena vida da Trindade. Numa comunhão de fé e de amor com a pessoa de Cristo, cuja obra é nossa, bebemos a vida divina na Sua própria nascente. «Conhecemos que estamos nele e ele em nós: porque nos comunicou o seu Espírito» (I João, IV, 13).
            A energia sobrenatural brilha na alma com uma espontaneidade forte e suave, da Pessoa de Cristo: o Espírito Santo é a fornalha em que se alimenta constantemente o seu fervor. A marca deste amor encontra-se, como uma assinatura, em todos os seus atos, em todo o seu ser. «O que nos confirma em Cristo convosco, e que nos ungiu, é Deus, o qual também nos imprimiu o seu selo, e deu em nossos corações o penhor do Espírito Santo» (II Cor., I, 21-22).
            O Espírito Santo, na unidade da essência com o Pai e o Filho, vive na nossa alma, reza conosco e santifica-nos. «Não sabeis que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? É santo o templo de Deus, que sois vós» (I Cor., III, 16-17). O sopro do Pai e do Filho, o dom infinito, a testemunha da palavra de Deus, o selo da Sua unidade, desceu em nós para completar a obra do Salvador e coroá-la de glória. «Tínhamos esperado em Cristo... no qual também vós esperais, tendo ouvido a palavra da verdade, o Evangelho da vossa salvação, e tendo crido nele, tostes marcados com o selo do Espírito Santo, que tinha sido prometido, o qual é o penhor da nossa herança, para redenção do povo, adquirido em louvor da sua glória» (Efés.; I, 12-14).
            O Espírito Santo, emanação do amor eterno entre o Pai e o Filho, transmite este amor à criatura que Ele habita e assimila; vida abundantíssima, inunda-nos de vida, de paz e de consolação, de alegria, de força e de santidade: o excesso de plenitude divina brota de novo do nosso coração em ondas de caridade. Unidade viva das Pessoas, é-nos dado o Espírito para que, segundo a promessa do Verbo, sejamos compreendidos nessa unidade. «Eu dei-lhes a glória que tu me deste, para que sejam um, como também nós somos um» (João, XVII, 22).
            Dom mútuo do Pai e do Filho, o Espírito Santo inspira-nos o dom mais perfeito de nós mesmos, em que se resumem toda a bondade e toda a santidade, Como Ele é o amplexo entre o Pai e o Filho, retém-nos prisioneiros do seu amor e protegidos pelo seu amplexo. A alma sente-se espantada e maravilhada com as riquezas que o Paráclito derrama quotidianamente sobre ela, com a maneira como é guiado por ela em todas as circunstâncias, de maneira que tudo contribua para o seu bem espiritual. Por mais pobre e defeituosa que se considere, respira agora a vida da Trindade. «O que nos formou para isto mesmo, foi Deus, que nos deu o penhor do Espírito» (II Cor., V, 5).
            Será necessário repetir que o milagre da graça desafia as palavras, visto que se trata de uma realidade divina, e que os termos criados só podem medir objetos finitos? Querer incluir numa fórmula as liberalidades do amor, é proceder como aquela criança de que nos fala Santo Agostinho, que estava a brincar na praia e julgava que era capaz de esvaziar o oceano. Como as línguas dos homens são frias, pesadas e desajeitadas para falar destas larguezas! Só o texto inspirado possui o tom da plenitude e nos anuncia o que Deus tem reservado para os seus, «para que abundem na esperança do Espírito Santo» (Rom., XV, 13).
            O mundo sensível não deixará de nos bater à porta e há-de tentar até à última hora perturbar a nossa alma. Mas esta, sob a ação contínua da graça, sabe transformar todos os obstáculos em meios, e até mesmo o fracasso numa ocasião para se unir com mais pureza à vontade do Pai. «Nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus» (Rom., VIII, 28).
            Não haverá um só instante desta vida que seja perdido, se as emboscadas e os golpes do adversário contribuírem para a doce vitória do coração, que é justamente a de Deus. A alma saboreia este amor com uma gratidão cada vez maior, à medida que a linguagem celeste se lhe torna mais familiar, e que ela goza de maneira mais imediata a realidade divina.  «Ouvirei o que o Senhor diz em mim»  (Salmo LXXXIV, 9).
            A alma começou a viver a sua vida eterna: o desejo da união perfeita faz que ela se funda no cadinho do amor; é uma chama no coração de Deus e a única coisa que faz é amar. «A minha alma liquefez-se ao som da sua voz» (Cânt.; V, 6).
            E Deus irradia sobre ela uma glória que nenhuma criatura pode conceber ou suspeitar. «Como és bela, minha amiga! Como és bela e graciosa!» (Cânt.; VII, 6).