terça-feira, 14 de agosto de 2012

SOBRE O SANGUE

Papa Pio XII



            É muito natural que todo homem estime como um bem de grande valor seu sangue; este tem, realmente, a função de transportar aos vários tecidos o material nutritivo e o oxigênio, enquanto os seus corpúsculos brancos defendem o organismo contra as invasões de bactérias. Um dos principais cuidados dos progenitores é, portanto, de transmitir aos seus filhos um sangue não alterado nem empobrecido por doenças internas, de contaminações externas ou degenerações progressivas. Recordai-vos entretanto que quando vós chamastes os filhos, os herdeiros de vosso sangue, devíeis referir-vos a algo de mais alto que a pura geração corpórea. Vós sois, e os vossos filhos devem ser, os rebentos de uma estirpe de santos, segundo a palavra de Tobias a sua jovem esposa: "Filii Sanctorum sumus", quer dizer de um jovem santificado e tornado participante da divina natureza por meio da graça sobrenatural. O cristão, em virtude do batismo, que lhe aplicou os méritos do sangue divino, é filho de Deus, um daqueles, segundo o Evangelista São João, "que crêem no seu nome; que não pelo sangue, nem pela vontade da carne, nem por vontade do homem, mas de Deus nasceram".
            Por conseqüência, em um povo de batizados, quando se fala de transmitir o sangue ancestral aos descendentes, que deverão viver e morrer não como animais sem razão, mas como homens e cristãos. Não se pode restringir o sentido daquelas palavras a um elemento puramente biológico e material mas estendê-lo ao que é quase como que o líquido nutritivo da vida intelectual e espiritual; o patrimônio de fé, de virtude, honra, transmitido pelos progenitores aos seus filhos e mil vezes mais precioso que o sangue - embora rico - infundido em suas veias. Os membros de uma família nobre se gloriam de ser de sangue ilustre; este lustro, fundado sobre mérito dos antepassados, implica em seus herdeiros não somente vantagens físicas. Mas todos que têm recebido a graça do batismo, podem dizer-se príncipes de sangue, de um sangue não somente real, mas divino.
            Vós conheceis a história da primeira Páscoa, no Antigo Testamento; sabeis que, quando o Senhor enviou o seu anjo a ferir os primogênitos dos egípcios, ordenou aos filhos de Israel imolar um cordeiro sem mancha e assinalar com seu sangue as portas de suas casas; o anjo, vendo este sinal, passaria além e pouparia os filhos do povo eleito.
            Toda a tradição, a começar com os apóstolos e os padres, vê neste cordeiro a figura de Cristo, imolado sobre a cruz, a fim de que os homens, assinalados pelo sangue redentor, fossem salvos da morte eterna. Todavia, por mais puro fosse o cordeiro pascal, Deus na Antiga Lei não queria aceitar a efusão do seu sangue em homenagem senão como um rito provisório. Bem diverso é o sangue humano, pelo valor de sua função e por sua dignidade simbólica. Vertido delituosamente, grita vingança diante de Deus, como aquele de Abel. Vertido pela caridade para com os outros, constitui o maior ato possível de amor, aquele que Cristo realizou por nós. Exatamente porque o sangue das vítimas animais eram incapazes de tirar os pecados do mundo o Verbo se fez carne para oferecer-se ao Pai em sacrifício de adoração e de expiação; na plenitude de sua liberdade, Ele deu a sua vida, verteu o seu sangue, para resgate da humanidade pecadora.
            Esta efusão redentora começou oito dias depois de seu nascimento no rito sagrado da Circuncisão do Senhor; continuou mais tarde durante as horas dolorosas de sua Paixão; nas angústias da agonia do Getsêmani, sob os golpes da flagelação e a coroa de espinhos no pretório, foi consumada finalmente sobre o Calvário, onde o seu Coração foi transpassado, a fim de permanecer sempre aberto para nós. O sangue que Jesus espargia como em sacrifício, e que fazia dele o "Mediador da nova aliança", como disse São Paulo, "Fala melhor que Abel"; aqui a voz do perdão cobre aquela do delito, porque o grito de misericórdia e de remissão é de um Homem-Deus.
            Na própria natureza o sangue derramado parece aderir às mãos do delinqüente, como o delito e o remorso se agarram a sua consciência; a poesia e a arte dramática tiraram desta tenaz persistência efeitos impressionantes; e em vão Pilatos lavou diante do povo as mãos que tinham subscrito a sentença de morte do Justo: até o fim dos séculos a mancha do sangue divino permanecerá incancelável sobre sua memória: "Passus est sub Pontio Pilato".
            Sobre o mundo visível aparecem através dos séculos ao olhar aterrorizado não somente manchas, mas também torrentes de sangue, que cobrem cidades destruídas e campos devastados. Ora, o sangue derramado com a força tem muitas vezes germinado em rancor, e o rancor do coração humano é profundo como um abismo, que chama outro abismo do mesmo modo que a onda que vem atrás de outras, e uma calamidade chama outra calamidade. Olhai, porém, o mundo das almas. Também aqui escorrem rios de sangue, mas este sangue esparso por amor não traz consigo senão o perdão das injúrias. O coração do Homem-Deus, do qual emana este sangue, é um abismo sim: "Cor Iesu, virtutum omnium abyssus", mas um abismo de virtude, que não chama no fundo de seus corações senão outro abismo de doçura e de misericórdia. Desde que Cristo ofereceu o seu sangue por nós, a humanidade, que nele crê, foi imersa em um oceano de bondade e respira em uma atmosfera de perdão. De resto, não seria conforme à verdade crer que o Antigo Testamento não tenha já ensinado o perdão das ofensas. Aí se encontram a tal respeito preciosos e sábios conselhos. "Não te recordes de alguma das injúrias recebidas do próximo", diz o Eclesiástico; ora, o esquecer-se é por vezes ainda mais duro do que perdoar. Perdoai, portanto, antes de tudo, e Deus vos fará a graça de esquecer. Mas, sobre todas as coisas, afastai o desejo de vingança, que o Senhor já na antiga lei condenava assim: "Não procurar a vingança, e não conservar memória das injúrias dos teus concidadãos". Em outras palavras poder-se-ia hoje dizer: Guardai-vos do ressentimento contra os vossos vizinhos.
            A Escritura adverte ainda: "Não digais: Farei a ele aquilo que faz para mim; darei a cada um segundo as suas ações". Porque "quem quer vingar-se provará a vingança do Senhor, que terá exatas contas a ajustar, de seus pecados". Que loucura é realmente o rancor em uma alma pecadora, que tem tanta necessidade de indulgência! O escritor sagrado sublinha este estridente contraste: "Um homem conservava rancor contra outro homem e pede a Deus a cura? Ele não tem misericórdia para com um homem semelhante a ele, e pede perdão de seus pecados".
            Mas, sobretudo depois que a Nova Aliança entre Deus e os homens foi selada no sangue de Jesus Cristo, torna-se geral a lei do perdão incansável e do rancor mudado em amor: "Ó Pedro, - responde Jesus para o apóstolo que o interrogava - não até sete vezes sete, deverás perdoar o teu irmão, mas até setenta vezes sete", quer dizer que o cristão deve sem limites nem fim ser pronto no perdoar as ofensas recebidas do próximo. E ainda o Divino Mestre ensinava: "Quando estais orando, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai-lha a fim de que o vosso Pai, que está nos céus, perdoe também a vós os vossos pecados". E não basta nem mesmo o não dar o mal em troca do mal. "Ouvistes (dizia Jesus) o que foi dito: Amarás o próximo e odiarás o teu inimigo. Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam". Eis a doutrina cristã do amor e do perdão, doutrina que exige por vezes graves sacrifícios (1).

(1) – Discursos aos esposos, 3 de julho, 1940.