quarta-feira, 2 de junho de 2010

XIII. A CRUZ: AS MULHERES QUE CHORAM

XIII. A CRUZ: AS MULHERES QUE CHORAM


 
Jesus chega penosamente à porta Judiciária. Atualmente é um vão de paredes muito espessas que expande, nas sombras dessa espessura, a sua ogiva esbelta. Do outro lado, são as ruas sinuosas e movimentadas dos bazares.

No tempo de Jesus, a porta dava para as valas que margeavam as muralhas e para a planície rochosa onde se erguia o Calvário. De ordinário o cortejo parava nessa porta; a multidão apinhava-se formigante e curiosa, e lia-se uma última vez a sentença ao condenado. Quando Jesus desembocou na plena luz da planície, tendo à esquerda, não longe, o sinistro perfil do Calvário, ergueu os olhos e viu todas as caras hostis da plebe. Comprime-se esta, acotovela-se, quer ouvir, sobretudo quer ver o rosto e as impressões do condenado.

Todos os olhares fixam-se com efeito no Cristo: analiza-se-Lhe a palidez, o terror; há uma curiosidade malsã da multidão que a si própria se convida para o espetáculo do último suspiro de um condenado. É o que os Atos dos Apóstolos chamarão, a propósito de São Pedro, de expectatio plebis: essa espera cruel de todo o povo ante o qual, como em derradeira cena, se produz, se exibe a Vítima.

“Este – clama em voz alta o arauto – é Jesus de Nazaré, agitador e sedutor do povo, e que se disse Rei dos Judeus. Seus compatriotas, os sacerdotes e os anciãos, entregaram-nO à justiça para ser crucificado. Ide, lictores, e preparai a cruz”.

Ela está pronta, esmaga já os ombros do paciente. A multidão esbraveja. Jesus vê tudo e ouve tudo.

Entretanto o cortejo se põe novamente em marcha e dobra à esquerda. Alguns passos mais, e é a suprema subida de onde já se não torna a descer. Nesse momento, inopinadamente, Jesus fraqueja: será a comoção nova da sentença, o horror natural da morte, o peso da Cruz que durante a simples parada da leitura pesou mais esmagadoramente nos ombros curvados? Cai Ele humilhantemente, e desta vez o levantar é mais custoso.

Já não há Simão Cirineu! A grande multidão que O cerca sente-se burlada: contava com uma exibição, e vê só um infeliz que treme e desfalece a cada passo; murmura então.

As mulheres são mais compassivas. No ponto em que a estrada dobra para o Calvário, agruparam-se elas, grupo comovido e que se lamenta. Jesus percebe o som sincero dos corações partidos, através das blasfêmias de todo um mundo: pára. Ele que nada disse a Sua Mãe, nada a Simão, nada a Verônica, tem uma palavras de consolação para aquela piedosa simpatia: “Não choreis por Mim, diz com voz sumida, chorai antes por vós: dia virá em que direis: Felizes nós se não houvéramos gerado. Está próximo esse dia, porque se deste modo se trata a lenha verde, pergunto-vos Eu, que se fará da lenha seca?” (Lc 23, 31).

Os soldados deixaram-nO dizer: porque Jesus queria falar, Ele é o Mestre quando cumpre o que seja.

Assim, quem é para lastimar não é o Messias amesquinhado, desfeito e agonizante, segundo foi escrito e decidido, Filius Hominis vadit, o Filho do Homem vai: ai, porém, daqueles que atraiçoam e abandonam o Cristo a morrer por nós.

Deus orienta assim com uma palavra a piedade dos homens. Deve ela ir não às vítimas, porém aos algozes; não aos perseguidos, mas aos perseguidores; não aos que sobem o Calvário, mas aos que os fazem subi-lo. São os grandes miseráveis porque, se Deus permite que assim se trate a lenha verde, a que tem a seiva da Graça, que produz frutos e que gera os Seus eleitos, que se vai fazer de vós, opressores dos justos, mortos à Graça, lenha seca e sem vida? Em verdade, Eu vo-lo digo, vós prestais é para o fogo eterno. Lenha seca e eternamente árida, haveis de ser o pasto eterno de um fogo lento, vingador e divino, que arderá enquanto tiver um alimento... Ora, vós sois imortais!

Esta palavra do Cristo consola todas as opressões deste mundo. Delas está o mundo cheio, e Deus se cala.

Este silêncio de Deus deveria amedrontar os opressores: virá uma hora em que essa palha seca fugirá louca diante da cólera divina, e esta cólera lhe há de apanhar a menor felpa, ainda que se fosse esconder no fim do mundo.

Que é a grandeza do mundo diante do poder de Deus? Esses pecadores ambiciosos que quiseram encher este mundo, quando viviam, hão de mendigar então – e com que angústia – um buraco nas montanhas para se esconderem: e não o hão de ter.

Assim, até nos últimos abaixamentos Jesus deixa escapar os clarões longínquos da Sua Justiça derradeira.
Vereis o Filho do Homem, mais tarde, em todo o esplendor de Sua Majestade, dissera Ele perante o Tribunal. No momento de galgar o Calvário, diz com mais tristeza e não menos autoridade: “Então eles hão de clamar: Montanhas, cai sobre nós. Porque se deste modo se trata a lenha verde, que se fará com a lenha seca?...”

O lado do Calvário que olha para Jerusalém é muito abrupto. O cortejo teve pois que contornar à direita a rocha escarpada, onde a rampa era mais suave.

O esforço que fizera Jesus para falar às filhas de Jerusalém esgotara-Lhe o resto de forças e, no momento de galgar o outeiro, uma terceira, uma última vez Ele cai de rosto no chão.

Evidente se fazia que quase já só arrastavam um cadáver. Era de recear que talvez Ele não tivesse sequer alento bastante para chegar ao cimo, deitar-se na Cruz e sentir os cravos enfiarem-se-Lhe brutalmente na carne morta. A todo custo, cumpria que fosse alçado vivo na Cruz.

O texto sagrado deixa-nos adivinhar que os soldados tiveram que amparar, quase que carregar a Vítima até em cima. Era o último instrumento de suplício, antes da crucifixão. Vivamente o sentiu Jesus; sentiram-no também os que O cercavam e por isto ainda mais o devem ter desprezado, pois acham que Ele não é corajoso. [Voluntariamente] não tem aquela energia, aquele arrojo que concederá mais tarde aos Seus Mártires.

Vai ao suplício a tremer, e esta aparência ou realidade de delíquio são tanto mais humilhantes quanto Ele se disse o Messias, o Filho de Deus, aquele que existia “antes que Abraão fosse...”, o restaurador de Israel, o filho de David!

Que amarga irrisão! Como todas estas coisas devem acudir ao pensamento dos espectadores! ‘Nós esperávamos, dirão os discípulos de Emaús, nós esperávamos nEle: sim, ontem, porém hoje! Que fim lastimável! Que mísero epílogo àquela vida estranha, semeada toda de milagres e prodígios! Se era assim que Ele devia acabar, era oportuno erigir-se em fundador de uma religião nova? Que crédito conferir a um homem que, depois de ter avançado tanto, morre frouxamente e sem brilho?’

Este caráter da Paixão é inteiramente divino e reservado. Só o comunica Jesus a mui raros e mui fiéis amigos, aos que já não sabem o que seja a glória deles, mas só vêem a de Deus.

A humilhação do sofrimento, a fraqueza, o abatimento dos últimos instantes, não ser e não parecer vigoroso no suplício a fim de que os homens, tão desejosos de honras, nos desprezem um pouco mais ainda! Em verdade, em verdade, que aquele só a quem tal seja dado o compreenda se puder, e o ame ardentemente.

Qui potest capere, capiat.

Se o cálice me for posto aos lábios, ó Jesus, e os lábios me tremerem; se essa Cruz me for posta nos braços e os meus braços penderem; se essa amargura me for vertida no coração e o coração a deixar vasar como dum vaso partido e sem preço, eu bendirei, no segredo desse coração desprezado de todos, a adorável bondade que terá me feito unir-me ainda mais a Vós na ríspida subida do Calvário. Assim seja.

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(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Peroy, SJ)

PS: Recebido por e-mail, mantenho os grifos.