terça-feira, 29 de junho de 2010

II. TERNURA DO CRISTO

II. TERNURA DO CRISTO



O segundo sentimento que ocupa o Coração do Cristo é o cuidado real de mostrar aos Seus a Sua viva e profunda ternura.

Importa ver, ouvir, gostar as Suas derradeiras e intimas conversações, naquela noite suprema do Cenáculo. Há muito escolheu Ele o lugar.

Ainda nesta escolha se afirma a Sua Divindade.

– Ide, diz a Pedro e a João, encontrareis à porta da cidade um homem que carrega um cântaro d’água (era presumivelmente a porta mais próxima do bairro de Sião e que levava à Fonte da Virgem onde manava a água mais pura de Jerusalém): seguireis esse homem, continua Jesus, ele entrará na casa de um pai de família que tem uma sala alta à minha disposição, está toda mobiliada. É aí...

Assim, Ele viu tudo, a porta, o homem, o cântaro e até a mesa posta e os leitos que a circundam.

Dessa forma, tinha Ele amigos secretos, em cuja casa podia entrar a qualquer hora.
Tem-nos ainda, contra os quais saca quando Lhe apraz. São os Seus bancos particulares onde se mantém em reserva a vida e a subsistência dos Seus pobres e dos eleitos sofredores.

***


Portanto, naquela sala estão todos reunidos, os Doze.

Faz-se primeiro o essencial, o repasto espiritual: estão todos de pé à volta da mesa, empunhando um bordão, com as vestes arregaçadas, os rins cingidos, as sandálias nos pés: o traje dos viajantes. O cordeiro está no prato, no meio. Faz-se pressa em cumprir a cerimônia. Come-se a carne com as alfaces amargas, e isto se faz em silêncio.

Após o que, podem os Apóstolos crer que está tudo acabado. Mais não se fizera nos outros anos. Poderão pois retirar-se depois de tomarem juntos a refeição de costume que seguia a ceia pascal.

Entretanto, Jesus parece preparar outra coisa mais...

Apenas começou Ele a refeição noturna, se levanta, deixa o manto e a veste branca, conservando só a túnica vermelha, toma a toalha, faz como um criado, cinge-a em torno aos rins, derrama água numa bacia e põe-se a querer lavar os pés a cada um dos Apóstolos.

Tudo é surpreendente nessa ação. Nunca o Mestre dera semelhante prova de deferência. Ele pôr-se de joelhos e lavar os pés dos discípulos!...

Compreende-se o movimento de Pedro. Aquilo era contra a dignidade do Mestre e do Deus.
Sim... mas agora é a hora da ternura.

Deixai, mais tarde compreendereis e então fareis como Eu estou fazendo!

Admirável dispensação da luz divina: repito, nós não podemos tudo compreender a um tempo... Se Deus não fizesse algo que nos transcenda e nos admire, agiria como homem e não como Deus. Lava Ele, pois, os pés, enxugando-os... em meio à comoção geral.

Eis porém que se põem novamente à mesa; há leitos para se estenderem. Jesus está no meio. João está no mesmo leito que Ele, de tal sorte que basta inclinar-se para trás para apoiar a cabeça no peito do Mestre. Pedro está no leito do lado. Judas não devia estar muito longe, pois daí a pouco Jesus lhe falará sem que os outros ouçam e poderá estender-lhe um pedaço de pão.

Entrementes, come-se, bebe-se... guarda-se silêncio; os corações estão cheios de aflição, os olhares fixam-se comovidos no semblante de Jesus... Ele baixa os olhos, parece mais triste que de costume; por fim diz com um suspiro:

– Como Eu desejava comer esta Páscoa convosco... antes de padecer!

E pouco depois:

– Em verdade é a última...

Já não comerei convosco, já não beberei até que venha o Reino de Deus... isto é, até que Eu haja chegado à glória eterna.

E isto dizendo, faz circular uma taça cheia de vinho, como era de uso fazer no começo das refeições: cada um molha nela os lábios.

Depois recomeça o silêncio.

Jesus tem um peso no Coração: sente-se, vê-se, Ele olha em torno de si, quer falar, cala-se... oprime-o o doloroso segredo. Afinal perturba-se visivelmente; altera-se-Lhe o semblante, o segredo estala: – Em verdade, diz como acabrunhado, há aqui um que me trairá!

Um! – Ele come comigo, prossegue o Salvador... põe comigo a mão no prato.

Persiste ainda o uso no Oriente de, nas refeições, tomar cada conviva no prato colocado no meio a porção que lhe convém; todos põem pois a mão no mesmo prato.
– Um dos Doze, repete Jesus...

Os Apóstolos ficam consternados... de todo lado vozes ansiosas se elevam:

– Senhor... sou eu?

No meio das interrogações confusas, Judas faz também a mesma pergunta:

– Mestre, serei eu?

– Tu o disseste, responde Jesus em voz baixa... és tu!

Ninguém ouviu esta palavra. Portanto o traidor é conhecido, mas por delicadeza não é revelado.
E é em presença dele que Jesus vai realizar o Seu prodígio de amor... o Seu excesso de ternura: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos – Tendo amado os Seus, amou-os até o fim (Jo 13, 1).

Judas jurou trai-lO... Os trinta dinheiros já lhe estão na bolsa. O ajuste está de pé.

Jesus sabe que dentro de algumas horas O vão entregar... haverá paus, armas, cordas, será de noite, ao clarão dos archotes... haverá sobretudo um traidor que O virá prender por um beijo.

Ora, antes de ser entregue, quer-se Ele próprio entregar... toma a dianteira.

E uma palavra Sua vai lançá-lO de algum modo, de pé e mãos atadas, à humanidade até à consumação dos tempos... e é assim que a Sua ternura triunfará da malícia humana.

A refeição tocava o seu termo. Havia diante de Jesus um pão ázimo intacto. Tomou-o como se o quisesse comer, partiu-o em vários pedaços, em doze provavelmente, e súbito diz:

– Tomai, comei.

Isto é o meu Corpo que vai ser dilacerado, partido, feito em pedaços como este pão, e entregue por Vós.

Tomai, ei-lo, Eu vo-lo dou, Eu vo-lo entrego.

E faz circular o prato onde havia deposto os doze fragmentos. Cada qual tomou um, Judas como os demais.

– Fareis isto em memória de Mim, acrescentou Jesus.

Foi assim que Ele se entregou antes do beijo do traidor.

Quando Jesus se entrega, o faz deveras. Nunca se tornou a tomar depois, e não se tornará a tomar nunca. Este caráter, esta fisionomia de entregue atravessaram os séculos, é ainda assim que Ele está no meio de nós e nós não pomos reparo... não acusemos a indiferença aparente dos discípulos durante aquela noite em que eles fugirão: a nossa é tão grande e menos desculpável.

Entretanto a ceia terminava. Findava na estupefação e no silêncio. Restava uma última cerimônia antes do hino final: passava-se de ordinário uma taça cheia de vinho, como se fizera no começo, e bebia-se dando graças.

Jesus encheu a taça, rendeu graças, mas acrescentou ao mesmo tempo: – Bebei todos, é meu Sangue... o Sangue da nova aliança que Eu contraio com a humanidade... o Sangue que vai ser derramado amanhã pela remissão dos pecados.

E a taça circulou por toda a mesa.

Jesus parece acompanhar o Seu Sangue que passa assim de lábios em lábios... Quando chega ao de Judas... Ele não se pode conter... a tortura íntima é por demais viva: – Eis, diz de repente, a mão do traidor está comigo à mesa. E ajuntou após um silêncio: – Ai daquele que me trai!...


De novo vozes confusas e interrogações misturaram-se na sala; foi nesse momento que João inclinou a cabeça para trás, como para consolar o Senhor, e perguntou-Lhe afetuosamente:
Este doloroso anátema sacudiu o espanto entorpecido dos Apóstolos.

– Mestre, quem é?...

Deus não recusa nada aos desejos da inocência.

– Aquele a quem Eu apresentar um pedaço de pão molhado nesse prato, diz Ele baixinho, ao ouvido do predileto.

E estendeu um bocado de pão umedecido, como sinal de amizade, a Judas.
Judas tomou-o, e o coração tornou-se-lhe definitivamente a presa do demônio.

Levantou-se de chofre da mesa; por uma última delicadeza, Jesus, que o vê sair, diz-lhe em voz mais alta:

– O que tens a fazer, faça-o logo.

Ele sai, era noite já profunda. Jesus seguiu-o com um derradeiro olhar. Que olhar!
E, quando a porta se fechou atrás do traidor, um suspiro se Lhe exalou do peito aliviado; iluminou-se-Lhe o rosto.

– Agora, diz, a glória de Deus vai refulgir sobre o Filho do Homem!

A contar de Judas... a traição pelo ente amado tem sido sempre a tortura mais temível ao coração que ama: não a poupa Deus aos que quer mais semelhantes a Seu Filho.

É esse ainda um dos caracteres reservados da Paixão: quem pode tê-lo está de posse de um penhor bem consolador de predestinação.

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(“A Subida do Calvário”, do padre Louis Perroy, SJ)

PS: Recebido por e-mail, mantenho os grifos.