terça-feira, 29 de dezembro de 2009

As negações de Pedro

Depois da prisão de Cristo, Pedro seguiu-O de longe; com ele estava João. Dirigiram-se ambos a casa de Anás e Caifás onde o Mestre foi julgado. A casa do sumo sacerdote, que serviu de tribunal, levantava-se, como muitas casas do Oriente, em volta dum pátio quadrangular, para o qual dava acesso uma entrada na frontaria da casa. Esta passagem, ou arcada, estava fechada do lado da rua por um pesado portão; e nesta ocasião servia de porteira uma criada do sumo sacerdote.

O pátio interior, aonde conduzia aquela passagem, era lajeado e descoberto por cima. A noite estava fria, por ser no começo de abril. Pedro tinha já falhado ao Senhor, no Horto, deixando-se adormecer; apresentava-se agora uma oportunidade para reparar a falta. Mas o perigo rondava à volta de Pedro, sobretudo por causa da confiança exagerada que tinha na própria lealdade.

Não obstante haver um antigo profeta anunciado que o rebanho seria disperso, Pedro julgava que, por lhe terem sido entregues as chaves do Reino dos Céus, estava seguro dum tal colapso. O segundo perigo era o seu anterior fracasso quando foi avisado que "vigiasse e orasse". Não vigiou porque adormeceu; não orou porque substituiu espiritualidade por atividade puxando a espada. O terceiro perigo era a distância física a que se mantinha de Cristo e que podia significar a distância espiritual que separava um do outro. Toda a distância do Sol da Justiça é feita de trevas.

Entrando no pátio, Pedro foi aquecer-se ao lume. À luz das chamas, a criada que lhe abrira a porta pôde observar-lhes melhor o rosto. Se a lealdade de Pedro fosse posta em cheque por um homem ou por uma espada, talvez se mostrasse mais valente; mas embaraçado pelo seu orgulho, uma donzela mostrou ser mais forte do que o presunçoso Apóstolo.

O plano de Cristo era conquistar pelo sofrimento; o plano de Pedro era conquistar pela resistência. Mas ali a oposição parecia fraca. Apanhado de surpresa pela jovem, fez a primeira negação. Disse-lhe a criada:

Tu também estavas com Jesus, o Galileu.
(Mateus 26,69)

Pedro respondeu, dirigindo-se a todos os que se encontravam à volta da fogueira:

Não sei o que dizes.
(Mateus 26,70)

Começou a sentir-se pouco à vontade. Teve a impressão de estar sob um foco de luz que lhe examinava a alma e lhe explorava o rosto; afastou-se, por isso, um pouco na direção do pórtico. Desejoso de escapar aos olhos investigadores e às línguas comprometedoras, achou que ficava mais seguro no retiro da obscuridade das colunas. Mas a mesma, ou possivelmente outra criada, aproximou-se dele afirmando que o tinha visto com Jesus de Nazaré. Tornou a negar, desta vez proferindo um juramento:

Juro que não conheço tal homem.
(Mateus 26,72)

Ele, que poucas horas antes puxara a espada em defesa do Mestre, nega agora Aquele mesmo que procurou defender. Ele, que chamou o Mestre "o Filho de Deus vivo", chama-o agora "homem".

O tempo passava, o Salvador era acusado de basfêmia e entregue à brutalidade dos beleguins; mas Pedro continuava cercado. Apesar de ser noite, ou quase, a multidão ia crescendo talvez por se ter espalhado a notícia do julgamento de Nosso Senhor. Entre os presentes encontrava-se um parente de Malco, que se lembrava perfeitamente de Pedro ter cortado a orelha do rapaz no Horto e de o Senhor o curar.

O Apóstolo, cada vez mais preocupado em disfarçar o seu nervosismo e em persuadi-los que não conhecia aquele homem, tornou-se, evidentemente, muito falador; e foi isso que o perdeu. Pela sua pronúncia provinciana mostrou que era galileu; era geralmente sabido que a maior parte dos adeptos de Cristo tinham vindo dessa região onde se usava um dialeto menos polido do que na Judeia e em Jerusalém. Os galileus não conseguiam pronunciar certas letras guturais. Imediatamente disse um dos circunstantes:

Tu és, com certeza, um dos tais,
pois até pela tua fala se conhece.
(Mateus 26,73)


Pedro tornou a negar e então:

Começou a fazer imprecações e a jurar
que não conhecia tal homem.
(Mateus 26,74)

Sentindo crescer a irritação, o Apóstolo invocou a Deus Onipotente como testemunha da sua reiterada falsidade. Somos levados a pensar se não haveria um retrocedimento aos seus tempos de pescador; talvez quando as redes se emaranhavam no Mar da Galiléia, se deixasse dominar pelo temperamento e lançasse mão a blasfêmia. Fosse como fosse, o certo é que agora jurou para obrigar os incrédulos a acreditar.

As lembranças do passado abriram caminho dentro dele. O Senhor tinha-o chamado "bem-aventurado" quando lhe entregou as chaves do Reino do Céu, e lhe concedeu contemplar a sua glória na Transfiguração. No dealbar daquela fria manhã, com a consciência da culpa a avolumar-se na alma, Pedro ouviu um som inesperado:

Cantou o galo.
(Mateus 26,74)

A própria natureza protestava contra a negação de Cristo. E de repente, atravessaram-lhe a mente as palavras que Jesus lhe dissera:

Antes de cantar o galo, três vezes
me negarás.
(Mateus 26,75)

Naquele momento passava o Senhor, depois numa noite de maus tratos, com o rosto coberto de escarros:

E o Senhor voltou-se e olhou para Pedro.
(Lucas 22,61)

Apesar de atado ignominiosamente, o olhar do Mestre procurou a Pedro com infinita compaixão. Não disse nada; fixou-o apenas. Aquele olhar refrescou-lhe provavelmente a memória e despertou-lhe o amor. Pedro podia negar o "homem", mas Deus continuaria a amar o homem que era Pedro. O fato de o Senhor ter de se voltar para o fitar, significava que Pedro estava voltado de costas para o Senhor. O veado ferido buscava a moita para morrer sozinho, mas o Senhor aproximou-se do coração ferido de Pedro para arrancar a seta.

E Pedro saiu e chorou amargamente.
(Lucas 22,62)

Pedro estava agora cheio de arrependimento, como Judas estaria, dentro de poucas horas, cheio de remorso. A dor de Pedro era motivada pela recordação do pecado ou da chaga causada na Pessoa de Deus. A penitência não se importa com as conseqüências; o remorso, porém é inspirado sobretudo pelo medo das conseqüências.

A mesma misericórdia concedida àquele que o negou, seria estendida àqueles que o haviam de pregar na Cruz e ao ladrão penitente que lhe pediria perdão. Pedro não negou realmente que Cristo fosse Filho de Deus. Negou que conhecesse o "homem", ou que fosse um de seus discípulos. Mas falhou ao Mestre. E apesar de saber de todas as coisas, o Filho de Deus não constituiu João, mas Pedro, que conheceu o pecado, a Pedra sobre a qual edificou a sua Igreja, para que os pecadores e os fracos nunca desesperassem.

(Vida de Cristo - Arcebispo Fulton J. Sheen)