terça-feira, 27 de novembro de 2012

Abandono

Como, estando morta a si, a vontade vive puramente 
na vontade de Deus
(São Francisco de Sales - Tratado do amor de Deus)


 Com propriedade toda particular falamos da morte dos homens na nossa linguagem francesa; pois chamamo-la trespasse, ou trânsito, e os mortos trespassados; significando que a morte entre os homens é uma mera passagem de uma vida à outra, e que morrer não é outra coisa senão ultrapassar os confins desta vida mortal para ir à imortal. Certamente a nossa vontade nunca pode morrer, como tão pouco o nosso espírito; porém às vezes ela ultrapassa os limites da sua vida ordinária, para viver toda na vontade divina: é quando já não sabe nem quer querer mais nada, porém se abandona totalmente e sem reserva ao beneplácito da divina Providência, misturando-se e embebendo-se de tal forma com esse beneplácito, que já não aparece mais, porém fica toda oculta com Jesus Cristo em Deus, onde vive, não mais ela mesma, porém a vontade de Deus vive nela.
Que é da claridade das estrelas, quando o sol aparece no nosso horizonte? De certo não perece; mas é arrebatada e tragada na soberana luz do sol, com a qual fica felizmente misturada e conjunta. E que é da vontade humana quando está inteiramente abandonada ao beneplácito divino? Não perece totalmente, mas fica tão abismada e misturada na vontade de Deus, que já não aparece, e já não tem nenhum querer separado do de Deus. Imaginai, Teótimo, o glorioso e nunca assaz louvado São Luís, que embarca e se faz de vela para ir além-mar, e vede que a rainha sua cara mulher embarca com sua majestade. Ora, a quem perguntasse a essa brava princesa: Aonde ides, senhora? sem dúvida ela responderia: Vou aonde o rei vai. E a quem de novo perguntasse: Mas sabeis bem, senhora, aonde vai o rei? ela responderia: Ele mo disse em geral, mas todavia eu não tenho nenhuma preocupação de saber aonde ele vai, mas apenas de ir com ele. E se lhe replicassem: Então, senhora, não tendes projeto nessa viagem? Não, diria ela, não tenho outro projeto senão estar com meu caro senhor e marido. Poder-se-lhe-ia então dizer: Mas no entanto ele vai ao Egito para passar à Palestina; pousará em Damieta em Acre e em vários outros lugares; e vós, senhora, não tendes intenção de ali ir também? A isso responderia: Não, deveras, não tenho intenção alguma senão estar junto de meu rei, e os lugares aonde ele vai são-me indiferentes e de nenhuma consideração, a não ser enquanto ele estiver neles; vou sem desejo de ir, pois não desejo nada a não ser a presença do rei. É, pois, o rei quem vai, e quem quer a viagem, e quanto a mim, não vou, sigo; não quero a viagem, mas só a presença do rei, sendo-me inteiramente indiferentes a permanência, a viagem e toda sorte de diversidades.
Certamente, se se pergunta aonde vai a algum servo que está acompanhado seu amo, ele não deve responder que vai a tal ou tal lugar, mas somente que segue seu amo; pois não vai a parte alguma por sua vontade, mas apenas pela vontade de seu amo. Assim, meu Teótimo, uma vontade resignada na de seu Deus não deve ter nenhum querer, mas seguir simplesmente o de Deus. E, assim como aquele que está num navio não se move por seu movimento próprio, mas apenas se deixa mover segundo o movimento do navio em que está, assim também o coração que está embarcado no beneplácito divino não deve ter nenhum outro querer senão o de se deixar levar ao querer de Deus. E então o coração já não diz: Seja feita a vossa vontade, e não a minha, pois não tem mais vontade nenhuma a que renunciar, porém diz estas palavras: Senhor, entrego minha vontade em vossas mãos; como se a sua vontade não estivesse mais à sua disposição, porém à disposição da divina Providência; de sorte que não é propriamente como os servos seguem seus amos: porque, ainda que a viagem se faça pela vontade de seu amo, o seu seguimento todavia se faz pela própria vontade particular deles, embora esta seja uma vontade seguinte e servente, submetida e sujeitada à de seu amo; de tal sorte que, assim como o amo e o servo são dois, assim também a vontade do amo e a do servo são duas. Mas a vontade que morreu a si mesma para viver na vontade de Deus, está sem nenhum querer particular, permanecendo não somente conforme e sujeita, mas totalmente aniquilada em si mesma e convertida na de Deus; como se diria de uma criancinha que ainda não tem uso da vontade para querer nem amar coisa alguma a não ser o seio e o rosto de sua cara mãe; pois essa criança absolutamente não pensa em querer nem amar coisa alguma senão estar nos braços da mãe, com a qual pensa ser uma mesma coisa, e absolutamente não se preocupa com acomodar a sua vontade à de sua mãe, pois não sente a sua, e não cuida tê-la, deixando a sua mãe o cuidado de ir, de fazer e de querer o que achar bom para ela.
De certo, é uma suma perfeição da nossa vontade o estar assim unida à do nosso sumo bem, como foi a do santo que dizia: Ó Senhor, conduzistes-me e levestes-me segundo a vossa vontade; pois, que queria ele dizer senão que absolutamente não empregara a sua vontade para se guiar, havendo-se simplesmente deixado guiar e conduzir pela vontade de seu Deus?