domingo, 17 de abril de 2011

Jerusalém

Jerusalém


Quando se sai desse drama do Pretório, tem-se o coração oprimido: tanta boa vontade real, em aparência, e tão deplorável fraqueza! Por que razão Pilatos parece tão culpado, e o é a ponto de ficar como doloroso sinônimo da covardia, tal como Judas ficou sendo o da traição? E porque será que não há mais cruel injúria do que comparar alguém a esses dois entes?

É que ambos são traidores. O primeiro traiu seu Mestre e amigo: o segundo traiu a verdade reconhecida e aprovada. Grande coisa é ter visto a verdade; porquanto Pilatos, por mais que se defenda, a viu.

Reconhece que aquele homem não é culpado; a consciência, o bom-senso, a honra mais comezinha chamam-lhe, pois, que O livre; mas ele não o faz.

É o eterno remorso dos poderes públicos, em que tudo repousa, o haverem traído em proveito do próprio interesse a verdade que deviam defender. Quando Deus Se mostra algures, a nenhuma criatura é dado apagar facilmente e sem crime os vestígios da Sua passagem. Deus quer ser notado; quer mais: a preferência.

É a base de toda a felicidade eterna.

Nós iremos finalmente para aquilo que houvermos preferido. É a lei da nossa predestinação.

Oh! minha alma, que preferes no conjunto como no particular? Para onde pende o teu coração? Para cima ou para baixo? Para o céu ou para a terra?

O amor é um peso, sobe ou desce: e nós seguimos os movimentos do nosso coração.

Jesus, que também segue os pendores do Seu, lá se vai para o Calvário. Todo o Seu ser físico a isso repugna, entretanto; mas Ele sabe que lá em cima salvará a humanidade e dará a Deus Seu Pai a maior glória possível. Vai, pois, entremeando assim a áspera alegria com a ditosa dor.

Conquanto todo o ciclo das torturas íntimas pareça percorrido, há, todavia um tormento que Jesus ainda quis aturar, e sensibilíssimo Lhe foi este, posto que, à primeira vista, pareça submerso no mar doloroso da Paixão.

Jesus era homem, era Judeu: por esta dupla razão, amava já profundamente a Sua terra.

Jerusalém era, para os filhos de Israel, o lugar caro mais que todos, a cidade bendita, a pátria comum que a absorvia todas as pátrias particulares. Era somente cantando, de etapas em etapas, que o povo se dirigia para a cidade santa.

As crianças cresciam na esperança, longamente acalentada, de verem enfim o Templo onde Deus se dignava de pôr o vestígio dos Seus passos eternos; os velhos que não mais podiam refazer o caminho viviam e choravam ainda dessa recordação.

Independentemente dessa presença radiosa de Deus no Templo sagrado, Jerusalém merecia, sob todos os pontos de vista, essa admiração e esse culto de raça.

Por qualquer lado que se lhe chegasse, a cidade resplandecia de luz e de frescor. Em a vendo hoje tão desolada, sem árvores, quase despida de toda coroa de verdura, com as suas muralhas pardacentas onde se acocoaram os leprosos, custa-se a crer nesse antigo esplendor. Mas é mister ver Jerusalém como a viu Jesus, como a viram os Romanos, como a admiraram os Judeus antes das ruínas de Tito.

A perspectiva mais maravilhosa era sem contradita quando se voltava de Betânia; persiste ainda hoje empolgante, se bem que, da altura, o olhar, para chegar até Jerusalém, tenha que errar pelas mudas desolações do vale do Josafat. Hoje em dia, com efeito, este vale é sombrio, semeado de lajes chatas e alvas, que são túmulos. Apenas, aqui e acolá, algumas oliveiras. E, nos flancos das montanhas, veredas que se estiram por entre aquelas desoladas muralhas de pedras secas, sem um musgo, sem uma folha, sem um raminho de erva... Um pouco de verdura alegra, entretanto os fundos de Siloé, onde se adivinha a piscina pelas amoreiras mais frescas e pelos vastos campos de alcachofras, cujas vergônteas cerradas tapizam o solo mais úmido naquele ponto; o resto da paisagem é árido, anuviado de pó e de tristeza.

Mas, no tempo de Jesus, as linhas dessa mesma paisagem mergulhavam as arestas ressequidas nos mássicos de verdura.

Eram só vergeis cobertos de flores alvas e róseas, vinhedos escalonados, tufos de tamargueiras, copas de amoreiras, e os sicômoros que baixaram quase por toda parte os seus ramos até o chão.

Quando, do cimo da montanha das Oliveiras, se descia por sob aqueles emaranhados de folhagens, só se via a princípio aquele gracioso trançado de ramos pejados de flores; mas, de repente, através desses ramos, surgia naquele cenário de verdura a alta silhueta de Jerusalém; o Templo dominava todo o vale profundo do Cedron, onde se entressachavam os cedros negros; as muralhas ameadas da cidade formavam já uma coroa leve sobre aquelas moles sombrias, e por cima cintilavam os telhados do santuário ofuscante de ouro e a despedir de todas as partes raios flamejantes no meio dos mármores brancos que chapeavam o edifício: era, no dizer dos contemporâneos, como que uma pilha de fogo sobre montanhas de neve.

Do outro lado da cidade, por trás do Templo, guindavam-se ainda as três altas torres construídas por Herodes: Fazael, que lembrava a forma do farol de Alexandria; Mariana, toda de mármore tão unido, que se dissera de uma só peça; e Hípicos, que tinha quarenta metros de altura.

A estas três torres, “cuja beleza e fortaleza eram tão extraordinárias que, no dizer de Josefo, nenhumas havia no mundo que lhes fossem comparáveis” (História da guerra dos Judeus contra os Romanos, t. II, I. V, c. XIII.), cumpria acrescentar a torre octogonal de Psefina, tão elevada que do seu vértice podia ver-se o Mediterrâneo.

Todo esse conjunto de vastas construções em cima de uma montanha que, de per si, já atingia oitocentos metros formava um fundo de cena tão grandioso, num céu amiúde marchetado de azul e de rosa, com as esteiras de púrpura do sol por detrás em poente, que, mesmo ainda hoje, em que não há mais nem Templo, nem Psefina, nem Fazael, nem o fogo dos ouros, nem a neve dos mármores, a gente murmura ao só aspecto daquela cidade a se alterar no mesmo céu inflamado: “Jerusalém, Jerusalém, se jamais eu te esquecer, penda-me o braço sem força e adira-me a língua ressequida ao palato”.

Foi assim que a viu Jesus quando descia ao passo lento do burrico as encostas de Getsêmani para galgar as da porta Dourada, onde estrugia o Hosana. Então, movido por aquele esplendor, parou e chorou.

Chorou porque via, num futuro muito próximo, todas aquelas maravilhas esboroar-se, aquela glória fenecer, e uma desolação suprema vaguear por aquelas ruínas.

Ela lá está ainda, lá está divinamente, essa desolação prometida: só isto pode explicar o estacar da civilização às portas daquela cidade a mais antiga, a mais gloriosa do universo. A dor de Jesus paira sobre aquelas paisagens áridas, parece que susta até o surto irresistível da vegetação.

Não há culto festivo em Jerusalém; não levam ali os cristãos senão passos contristados e um semblante desolado; e ainda é para eles uma desolação derradeira o não poderem sequer manifestá-la por expansões públicas e livres de todo entrave.

Forçoso é, muitas vezes, apressar-se, como se se perpetrasse um crime, para ir beijar aquele túmulo vazio e aquela rocha aberta do Calvário; todos os ritos ali se topam, todas as crenças se misturam, trocando entre si meros olhares de comiseração ou de inveja, quando só deveria haver um imenso e mesmo amor. Guardas assalariados fumam e bebem ao pé do Calvário, a dez passos do sepulcro, explorando todo cristão que entra e especulando-lhes com as divisões intestinas.

E a gente sai daquele torvelinho estranho com a alma contristada, com a fé atônita, com uma impressão indelével da desolação predita pelo próprio Jesus, cuja palavra reboa lúgubre e sempre aflitiva por sobre aquela dolorosa agitação:

- Jerusalém, Jerusalém, se tivesses querido (tudo está, portanto, na nossa vontade)... se tivesses conhecido o tempo ditoso em que te visitava o teu Deus (há um tempo, ó minha alma, e, passado esse tempo, é tarde demais)! Eis virá um dia (já veio) em que as tuas muralhas serão sitiadas; do teu Templo não ficará pedra sobre pedra (contudo, ele era tão belo! mas nada encontra graça ante a cólera de Deus). Serás arrasada, calcada aos pés pelas nações, e permanecerás deserta e desolada.

Et videns civitatem flevit super illam (Lc. 19,41).

E, avistando a cidade, chorou.

Só ao Homem-Deus pertence o desolar-Se e chorar sobre o futuro, porque só Ele o conhece. A nós, disse-nos Ele na Sua bondade: sufficit diei malitia sua (MT. 6,34). A cada dia basta a sua pena. Mas Ele, cujo dia é eterno, Ele vê a malícia certa do amanhã, toca-a, penetra-a, chora-a.

Nós não pensamos bastante nesse olhar de Deus sobre nós, no passado, sem dúvida, mas também no futuro.

Muitas vezes, é no seio dos nossos fervores, pródigos de flores como uma primavera, é aí que Ele poderia parar um instante para chorar sobre os nossos lamentáveis fraquejamentos do dia imediato: Ele os vê todos.

Quando veio pela vez primeira à nossa alma, oferecendo-nos sua boca a beijar e Seu sangue a beber, Ele sabia em que cálices iríamos mais tarde molhar os lábios: mas, nem por isto, retirou o cálice que nos oferecia.

Via o que as nossas mãos haviam de tocar e nossos olhos de olhar: mas, nem por isto, fechou os braços que nos abraçavam; o Seu amplexo não foi mais apressado, nem menos amoroso o Seu olhar. Mas talvez Ele tenha chorado no segredo divino que os espíritos celestes penetram, videns civitatem flevit super illam, e os anjos tenham podido admirar-se de ver que, depois do sangue que Ele nos dera, ainda Lhe restavam lágrimas a verter pela nossa inqualificável ingratidão.

Detenhamo-nos nestas lágrimas. Oh! Jesus, eu conto as que derramastes por mim. Encho com elas o cálice de ação de graças que elevarei cada dia diante de Vós, calicem salutaris accipiam, et nomem Domini invocabo (Sl. 115,13).

Desfere-se do Vosso coração magoado pela nossa ingratidão um clamor imenso, que nos salva mais do que nos condena. É o Calvário secreto que continuará até o fim dos tempos; à míngua do sangue, dais-nos as Vossas lágrimas, elas são uma prece que apagará a minha iniqüidade.

Foi assim que Jerusalém constituiu uma tortura íntima para o coração de Jesus Cristo.

Não é fora de propósito supor que, se Ele chorou entrando-a solenemente pela última vez alguns dias antes da Sua morte, no momento em que a deixava definitivamente para subir o Calvário deve ter sentido uma profunda e indizível emoção. É ai sair da porta Judiciária que Ele passa pela última vez as muralhas da cidade.

O Seu belo semblante, aquele semblante que Verônica, havia pouco, enxugara, aquele semblante tomado já dos palores da morte, inunda-se então de lágrimas novas. Por certo, os soldados que O cercam são gentios, Romanos a soldo, bárbaros; mas Ele bem sabe que lhes foi entregue pelos Seus, e, além disto, pode-os ver encabeçando o cortejo: os anciãos, os escribas, o próprio sumo sacerdote lá estão, nem um só quis faltar. E, por detrás, foge a cidade, a cidade do multifário rumor: não tornará Ele a entrá-la. Jerusalem, Jerusalem, si cognovisses, se tivesses sabido, Jerusalém!

Dobrado é o suplício quando nos vem de nossos irmãos: na asperidade derradeira da morte, já algum consolo em que o golpe fatal nos seja dado por mãos estranhas.

Jerusalém, Jerusalém, se ao menos eu fosse traído por um inimigo... (Sl. 54, 13; 14,15) queixa-se dolorosamente Jesus; mas por ti, Israel, meu amigo, com quem eu vivia e tomava o meu repasto!”

Tais são os pensamentos que ocupam naquele momento supremo o espírito e o coração de Cristo. Ocupam-no ainda nas solidões do Sacrário, cada vez que Ele tem de sair de uma alma brutalmente expulso pelo pecado.

Alma escolhida, privilegiada Minha, que te havia Eu feito?...”

Ó silêncio, ó queixas amorosas, ó Jesus expulso, se eu Vos encontrar no meu caminho, vinde a mim, vinde dentro de mim, vinde: recebo-Vos por todos aqueles que Vos repelem; sirva o meu amor subitamente dilatado de asilo aos Vossos amores atraiçoados e abandonados.

Há almas que Deus amou muito, e que serão reprovadas. As mais ingratas não são as que mais queridas foram?

Há nações que, semelhantes a Jerusalém, são finalmente rejeitadas, talvez no dia seguinte às maravilhas de amor realizadas em seu seio. Jerusalém, si cognovisses et tu!

O amor verdadeiro mede-se pela fidelidade. Não é tudo o ter sido amado por privilégio, se nós mesmos, no momento em que Deus passa, não retribuímos amor por amor.

Então Deus leva o Seu coração a outros; Ele pode suscitar filhos de Abraão do seio árido dos rochedos, podem os lírios brotar do lodo.

Entretanto Jesus avança, é meio-dia, o Templo retine do som das trombetas sagradas, o sol faz reluzir ao longe os ouros dos telhados e a neve dos mármores, o incenso fumega no interior e sobe tão alto que forma uma coluna por cima do Santo dos Santos; os cordeiros balam na piscina probática, onde os mergulham antes do grande sacrifício da nona hora, os estrangeiros enchem as ruas estreitas ou os átrios do Templo, e a multidão vai crescendo incessantemente.

Nesse momento, o cortejo sinistro dos condenados à morte chega ao cimo do Calvário.

Jesus é pregado na Cruz.

E volve as costas a Jerusalém, que não quer mais ver, com os dois braços estendidos para o Ocidente, onde os Seus olhares moribundos fitam, no longínquo dos espaços e dos tempos, os povos novos que O esperam...

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Terceira Parte: O semblante do Senhor)

PS: Grifos meus.