quarta-feira, 20 de abril de 2011

II – Maria

Terceira parte
II – Maria


Maria, Sua Mãe, antes que todos.

Há o recordar dos nossos amigos e o de nossa mãe: o recordar das mães é mais vivo, mais extenso, mais amante. Só às mães é dado reencontrar no filho já homem os olhares cândidos e sedutores da criança. Elas não esqueceram com que dor e com que alegria deram aquele ser frágil ao mundo.

As mães quereriam conservar sempre pequenino o filho, tomá-lo nos braços, estreitá-lo ao seio, numa palavra, ser sós para ele só, a fim de que o filhinho querido ainda tenha precisão delas. E, como o tempo que marcha não mais o permite, então elas revivem nas suas recordações aquelas cenas encantadoras da infância do estremecido.

Maria não escapou a esta doce tirania do amor materno.

Maria auten conservabat omnia... hace in corde suo (Lc. 2, 19,51).

Maria conservava todas essas coisas no Seu coração.

É por isto que, quando, erguendo os olhos angustiados, Ela divisava no cimo da Cruz a face lívida e sangrenta de Seu Filho querido, ó Deus, como tornava a ver, através daqueles traços aviltados, o rosto encantador da criança de Belém e de Nazaré!

Quem de nós não há sentido, em alguma hora de tristeza e de lágrimas, subitamente passarem diante de si os antigos quadros da sua ventura? É o contraste cruel do passado e do presente; são os tons claros da aurora que se maravilhara ao lado da noite brusca em que a tormenta estala e escurece o pleno dia.

Belém, os seus terraços, as suas oliveiras escalonadas, os pastores que acorriam ingênuos e confiantes, dando tudo – tudo, aquele pouco que lhes fazia a riqueza: - Belém, a noite que se ilumina, os anjos que cantam por cima do caro Menino enfaixado... Mas é forçoso fugir, Herodes lá está: partamos, levemo-lO depressa... Tomou-O Maria; e a estrada do exílio traça-se penosamente na areia do deserto.

Eis o Nilo, “uma água tranqüila e pálida” (Lc. 2,19); as longas pirâmides, a esfinge irônica e silenciosa, os obeliscos rígidos, e os deuses acorados no fundo dos templos.

Maria tem a fronte inclinada sobre o amado rostinho, é quanto Lhe basta.

Sorri o Menino, o Menino cresce: aquela boca que hoje obstruem o sangue e a escuma da morte, aquela boca pronunciou o nome de Maria – e com doçura! – pela primeira vez.

O exílio já não é exílio quando se tem Jesus. Desfruta-O Maria, não quisera sair do deserto, sobretudo se é para ir ter àquele cimo do Calvário. Está realmente ali o contraste doloroso entre o passado e o presente.

E depois a Virgem Mãe revê Nazaré: a casinha escondida, a oficina, o Menino que brinca por entre a madeira e os cavacos, e toda a obscuridade dos dias felizes. Só se lhes vê a felicidade depois: seguiam-se aqueles dias, sem arruído, como as horas doces que se não ouvem soar, e parecendo-se todos. No entanto, o semblante querido mudou: o oval tão puro revestiu os seus primeiros tons de gravidade em seguida a uma palavra incompreensível:

- Então não sabíeis que eu devo ocupar-me primeiro das coisas de Meu Pai?... (Lc. 2,19). A Mãe obediente não compreendeu: não importa, o Menino é obediente.

Depois, morto o pai nutrício, é o só a só íntimo entre Ela e Ele... Ele, o Menino já feito moço. Ela acompanha com emoção todo o trabalho do pensamento divino naquela fronte que se alarga e se ilumina. Antes, Ela dava carícias e beijos: Ele era pequenino; agora, recebe luzes: aqueles olhos falam, aqueles lábios falam, Ela escuta, tem a melhor parte. À noite, punha-Se aos pés do Filho, para melhor Se fartar.

Em torno dEla ignora-se o grande mistério... Que Lhe importa? Sabe-o Ela, e como o goza! Durara essa dita inefável perto de trinta anos: - parecera curta – até uma noite em que Jesus Lhe dissera, em meio às Suas lágrimas, que Eles iam deixar-se. E a partida tivera lugar no dia seguinte; a Mãe contemplando o Filho tão querido partir pelas grandes estradas da Galiléia, sozinho, sem discípulos ainda, e Ela sem poder segui-lO: estava finda a Sua ventura.

Durante os três anos de vida pública, raro o havia Ela visto só a só; a grande missão absorvia o Messias: o rosto, crestado pela fadiga e pelo sol, tornara-se-lhe mais grave, a Mãe via a sombra da Cruz ensombrar pouco a pouco e de antemão aquela fronte que Ela beijara.

E, hoje, também Ela estava à sombra daquela Cruz, nela se mantinha de pé.

E, quando ao cabo desses quadros vivos e fugazes que se Lhe aceleravam nas reminiscências, Ela via por que horrenda realidade terminava a Sua antiga ventura, uma angústia indizível confrangia-A toda, Ela cambaleava quase, e, na escuridão do Calvário, Suas mãos, que Lhe procuravam um apoio e se estendiam ainda para o Seu amor, encontravam só e sempre a Cruz onde morria Jesus.

Consolar-se da Cruz pela Cruz; arrimar-se nos desfalecimentos àquela Cruz que nos oprime; deixar-se banhar pelo sangue de Jesus, ao qual misturamos o nosso; não ter nenhum outro confidente e não ser o Deus que fere, e sob os Seus golpes redobrados conservar-se ainda de pé como a Mãe das dores, stabat Mater: poucos cimos mais elevados na subida do Calvário. Porém as almas que são chamadas nos sofrimentos do dileto têm de galgá-lo, nele manter-se ainda, e, pelas suas chagas mais do que pelos seus lábios, cantar o cântico do amor indefeso.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Madalena, a perdoada)

PS: Grifos meus