domingo, 7 de março de 2010

"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"

"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"
 (Mt 27,46)


As trevas do Calvário, tanto espirituais como físicas, tornam-se cada vez mais profundas ...

A verdadeira felicidade do homem consiste na sua aproximação gradativa da Visão beatífica. Cristo oferece-nos a sua Amizade na qual consiste toda a felicidade humana - como um penhor e um meio de conseguirmos essa final união com Ele no céu, união a que damos esse nome.

Por isto, a alegria que repetidas vezes prorrompeu em palavras durante a Sua vida terrena, ou em gestos de poder e de misericórdia, ou na alegria provinha da Visão Beatífica em que Ele vivia continuamente. "Sustentou o invisível como se a vê-lo estivera" (Heb 11,27).

É agora, no Calvário, que se efetua o ultraje supremo; aquilo que foi o seu arrimo durante os seus trinta e três anos de vida, a força daquele "alimento" do qual Seus discípulos nada sabiam (Jo 4,32), se bem que Lhe não fosse tirada foi contudo obscurecida aos Seus olhos, juntamente com qualquer outra consolação, humana ou divina, que concebivelmente pudesse substituí-la.

O sol escurecido por cima Dele era uma opaca e sombria imagem da Sua própria alma entenebrecida. O sol converte-se em negrume, e a lua em sangue, e as estrelas caem do céu, e a terra treme, quando Ele, por livre vontade e deliberada escolha, entra não somente na sombra da morte, mas na própria Morte das mortes. Era essa a morte que Ele "provava" ...

Nesta hora, Ele alija de Si a única e exclusiva coisa que torna a vida tolerável.

O Seu corpo, dilacerado e esticado na Cruz, não passa de uma pálida encarnação da agonia da Sua alma abandonada ...

"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"

Esta palavra é aquela que mais do que qualquer outra, é de difícil aplicação a nós mesmos. Por que o estado em que ela foi proferida é simplesmente inconcebível para nós que achamos o nosso consolo em tantas coisas que não são Deus, e para quem o pecado parece tão pouca coisa.

Se nos faltam confortos físicos, achamos refúgio no conforto mental; se este nos falta, arrimamo-nos aos nossos amigos. Ou, mais comumente, quando os mais altos prazeres nos são tirados, quase sem esforço achamos alívio nos mais baixos. Quando a religião nos falta, consolamo-nos as artes; quando o amor ou a ambição nos decepcionam, mergulhamo-nos nos prazeres físicos; quando este, por sua vez, se esfacela sem nada, encaramos o suicídio e o inferno como um ambiente mais suportável.

Parece não haver profundeza a que não desçamos, na nossa determinação apaixonada de nos tornarmos toleráveis a nós mesmos.

A Visão beatífica que foi perdida para o homem por causa da queda, e que Jesus Cristo nunca pode perder, é agora obscurecida aos olhos d'Aquele que vem restaurá-la por meio da Redenção.

Esta Palavra é, pois, sem significação para a maioria de nós; porque, para Jesus Cristo, quando a Visão Beatífica foi empanada pela dor, não houve mais coisa alguma nem no Céu nem na Terra...

"Busquei alguém que se afligisse juntamente comigo, mas não havia ninguém; busquei alguém que me confortasse, e não achei" (Sl 68,21)...

A tragédia prossegue, mesmo nas trevas; ouvimos os gemidos; colhemos vislumbres da Face torturada e incolor por trás da qual a própria Alma está crucificada;... tateamos, conjeturamos, tentamos formar imagens mais baixas da augusta realidade; mas é só.

Todavia, duas grandes lições, traduzidas em termos que talvez em parte possamos compreender, nos vieram daí:

Primeira

Eventualmente sucede elevarmo-nos, na vida espiritual, a esse ponto em que a nossa Amizade  com Cristo constitui a nossa principal alegria, por entre todas as outras e menores consolações que Deus nos dá. O fato de O conhecermos e de podermos falar com Ele é por nós reconhecido como suficientemente doce para tornar a sua supressão aparente a mais acerba de todas as nossas dores...

Pois bem: suponhamos que tal ponto é atingido por nós; e então, de repente, sem temos consciência de qualquer outra coisa a não ser da nossa costumeira falta de fé e letargia, esse prazer espiritual em religião é rápida e completamente subtraído. Qual costuma ser então a nossa resposta?

Como há pouco foi notado, uma prática costumeira é procurarmos imediatamente consolo noutra parte. "Distraímo-nos", dizemos nós; volvemos a atenção para outras coisas. Porém prática ainda mais comum é perdemos ânimo completamente, é suspendermos as práticas que nos molestam, e, enquanto isso, queixarmo-nos amargamente da maneira como o nosso Amigo nos trata.

Certo que um grito de socorro, nesta circunstância, é não somente justificável, mas até meritório; porque o próprio Nosso Senhor assim gritou na Cruz. A falta não está em assim gritarmos, mas em nos agastarmos enquanto gritamos. Na nossa complacência conosco mesmos, parece-nos havermos merecido de Nosso Senhor coisa melhor; parece-nos como que haver da nossa parte uma espécie de direito a fruirmos sempre do sentimento da presença do nosso Amigo.

Entretanto, como o progresso é possível sem tais retiradas?

Como pode o nosso apego ao nosso Amigo ser estreitado se, vez por outra, não parecer que Ele está fugindo ao nosso amplexo?

Como pode a fé verdadeira plantar suas raizes e firmar suas fibras no seio da rocha, se o vento desolador da tribulação não ameaçar desarraigar-nos completamente?

Porque, quanto mais aguda a tribulação e quanto mais amargas as humilhações, tanto mais honroso o trago. Manter nossos lábios colados a essa taça que nosso Salvador esgotou, mesmo quando o seu amargor é diluído pela misericórdia d'Ele, por certo esta honra seria bastante para nos fazer conservar a nossa paz, por uma questão de brio.

Segunda

Uma segunda lição é que o estado em que Deus é o Tudo de uma alma é um estado a que, de qualquer modo, somos obrigados a aspirar. Não basta que a Amizade de Cristo seja apenas o primeiro dos nossos vários interesses. Cristo não é somente "o Primeiro": é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim.

Não é relativamente mais importante: é o Absoluto e o Tudo. A religião não é um dos departamentos que formam a nossa vida (isto se chama religiosidade), mas é aquilo que entra em cada departamento, é a trama sobre a qual todo desenho, seja de arte, de literatura, de interesses domésticos, de recreação, de negócios, de amor humano, deve ser bordado.

Enquanto não for isto, ela não é religião como deve ser.

Fazê-la assim, entretanto, é a suprema dificuldade da vida espiritual - isto é, fazer da religião não somente um elemento integral na vida toda, mas o elemento dominante em cada departamento desta, - em sentido tal que os seus reclamos sejam imperativos sempre e em toda parte; repito, não no sentido de que a alma se desinteresse de tudo o que não seja culto de Deus, ou teologia, ou ascetismo ou moral - isto, repito, pode ser denomindo religiosidade ... mas no sentido de que a Vontade ou o Poder ou a Beleza de Deus seja em todas as coisas subconscientemente percebida ...

Ora, lembremo-nos de que é isto que realmente deve ser a vida de toda alma humana; e, à proporção que nos aproximamos disto, estamos mais ou menos cumprindo o nosso destino.

Porque só para uma alma que atingiu esse estado é que Deus pode ser Tudo. Ele se torna Tudo porque, já agora, nada Lhe é alheio.

"Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus" (I Cor 10,31).

A vida toda torna-se iluminada pela presença d'Ele; tudo é visto como subsistindo n'Ele; nada tem qualquer valor a não ser na medida em que estiver em relações com Ele ...

É este, pois, o estado pelo qual uma alma cristã é obrigada a pugnar e a aspirar. Isto e só isto, constitui a integridade da Amizade de Cristo; para uma alma nestas condições, e só para essa, pode-se verdadeiramente dizer que Jesus é Tudo.

E ademais, é este o único estado em que o real "abandono" é possível. Perder Jesus se Ele ocupa nove décimos da nossa vida, isto certamente ocasiona uma dor extraordinária; mas ainda restará um décimo no qual a perda não é sentida - uma fração mínima de interesses para a qual a alma pode volver-se em busca de consolo.

Mas, quando Ele ocupa a vida toda, quando não há um só momento do dia, um só movimento dos sentidos, uma só percepção ou ato da mente de que Ele não seja o fundo - ao menos subconcientemente percebido e apreendido, - então, na verdade, quando Ele se retira, o sol se escurece e a lua nega a sua luz; então realmente a vida torna-se sem sabor, e o firmamento sem cor, e a forma perde a beleza, e o som perde a harmonia.

Uma alma assim, e só esta, é que, sem presunção, pode pôr nos seus lábios as palavras do próprio Cristo, e clamar:

"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? Porque, em Vos perdendo, eu perco tudo!"

(Excertos do livro: A Amizade de Cristo - Mons. Robert Hugh Benson)

PS: Grifos meus