Fonte: Blog do [cultor]
Por Dom Antônio Afonso de Miranda
Nasceu dia 7 de janeiro de 1878 na aldeia de Beveren, município de Waregem na Bélgica. Foi batizado dia 8 de janeiro, apressadamente, pois nasceu doentio e inspirando cuidados. Padre Júlio Maria passou a infância em Waregem onde fez o curso primário. Sua formação pré-primária foi feita por religiosas num jardim de infância da cidade. Foi lá que despertou a vontade de ser missionário. Fez a Primeira Comunhão em 1889 e no mesmo ano foi crismado.
Júlio Emílio era compenetrado e maduro nas horas sérias, nas horas de recreio, o amigo expansivo de todos, moço vivo e dado aos divertimentos. Ficou neste colégio apenas 1 ano e em 1895 partiu com um Padre Branco para Boxtel, na Holanda a fim de iniciar sua vida missionária. Em 19/10/1895 parte para a África apesar da tristeza dos familiares e desmaio de sua mãe. Aí nasceu o desejo do seu irmão Aquiles de ser missionário na África também. Em primeiro de novembro Júlio vestia o hábito de irmão branco em Maison Carrée com o nome de Optato Maria. Passou algum tempo na solidão em Iril Ali, como cozinheiro e carpinteiro, e a 18/04/1897 consagrou-se definitivamente como missionário. Em 2/11/1897 foi enviado para Arris e passou por vários lugares da África até 1901. Neste tempo resolveu ser sacerdote, cumprindo uma promessa pela cura que Nossa Senhora lhe concedeu. Já era um homem de barbas longas e cheias. Visitou sua mãe e sua família em dezembro de 1901 e em fevereiro do ano seguinte já estava em Grave (Holanda) junto ao Pe. João Berthier, na “Obra das Vocações Tardias”, para se tornar sacerdote. (02/02/1902).
A comunidade cresceu sobremaneira e o espaçoso seminário era agora pequeno demais para 40 sacerdotes e mais de 100 estudantes. Padre Júlio Maria foi enviado para Wakken, na Bélgica, para iniciar um Seminário Menor de Missões e aí sentiu a necessidade de um clero religioso cheio de zelo para cuidar e afervorar as paróquias. Nunca abandonou o amor e o fervor por Nossa Senhora, sobre a qual leu e escreveu grandes obras teológicas. Era seu amante apaixonado.
Na França, na Bélgica e na Holanda, pregou com amor e ardor, ousadia e veemência apostólicas. Fez missões paroquiais numerosas, durante quatro anos, mobilizando e trazendo à prática religiosa centenas, milhares de pessoas, reconstituindo famílias, atendendo horas a fio a pessoas que, fazia muitos anos, não se confessavam, legitimando uniões conjugais que ainda não tinham recebido o sacramento do matrimônio, libertando as pessoas de vícios e pecados.
Pe. Júlio Maria estava no auge de seu trabalho de missionário paroquial na França, Bélgica e Holanda, quando, sem esperar, sem explicações, aparentemente sem razão plausível, ele teve de interromper tudo o que estava fazendo e vir para o Brasil. Seus Superiores religiosos, por motivos que ele nunca soube exatamente quais eram, resolveram enviá-lo para as missões amazônicas.
Foi quase um mês de viagem. Chegaram a Recife dia 15/10/1912. (...) Antes de partir para Belém, de onde iria para Macapá, seu destino final, passou dois meses e meio em S. Gonçalo, a 15 km de Natal, RN, onde trabalhavam os Padres Paulsen e Belchold, velhos companheiros e irmãos de hábito — quer dizer, de Congregação. Aí aprendeu mais ou menos a falar português e alguma coisa dos costumes da missão. Foi, então, para Belém, PA.
Em 27/02/1913, desembarcou afinal em Macapá, onde foi recebido amigavelmente por dois outros irmãos de hábito e bons companheiros, o Pe. José Lauth e o Pe. Hermano. Começou logo seu trabalho. Ele viera para “salvar almas”, e era isso mesmo que ele queria fazer. Mas o povo era muito pobre e necessitado de quase tudo em termos de saúde, de instrução, de alimentação. Muita malária, úlceras, gripes, pneumonia… Como o Pe. Júlio tinha certo conhecimento de medicina, começou, juntamente com o trabalho religioso de evangelização, a cuidar também dos corpos, das necessidades materiais das pessoas. Conseguiu tanto que se tornou um ídolo do povo. O Prefeito e outras pessoas importantes da cidadezinha solicitaram ao governo e obtiveram um decreto que outorgava ao Pe. Júlio Maria a administração da farmácia e do posto médico de Macapá. Isto abriu para o missionário as portas das casas de família. E sua presença era tão boa que se tornou amigo e conquistou a simpatia de todos. Ia frequentemente às escolas e era “adorado” pelas crianças. Em 02/05/1913, foi nomeado, por decreto do Governo do Pará, diretor das Escolas Reunidas, “com todos os direitos e privilégios”, inclusive os vencimentos do cargo. Desse modo, ele era o médico, o farmacêutico, o mestre-escola, o amigo e pai dos pobres, o encanto das criancinhas.
Paralelamente a tudo isso, ele rezava muito, administrava os sacramentos, celebrava a missa todos os dias e catequizava. Dava catecismo, de manhã, para as crianças; de tarde, para os jovens e, de noite, para os adultos. Em seu trabalho missionário, visitou vários lugares da Amazônia, foi até ao Tumuc-Humac. À noite, dormia ao pé das redes dos missionários, pronto para levantar-se ao primeiro chamado. Era o sacristão, o guarda vigilante, o amigo de todas as horas.
Em Macapá, preocupado com tantas crianças abandonadas e “tanta inocência perdida” (o abuso sexual contra menores não é de hoje, infelizmente); sofrendo com tanta infelicidade precoce, Pe. Júlio resolveu arranjar Irmãs que cuidassem da educação e formação geral dessa meninada. Bateu em muitas portas, mas não encontrou nenhuma Congregação feminina que pudesse ir para lá. Então, de repente, veio-lhe a ideia de que, se nenhuma Congregação podia ir para lá, por que não fundar uma Congregação nova, com gente de lá mesmo? Havia uma pobreza enorme de pessoal, mas “para Deus nada é impossível”, pensava o Pe. Júlio. Daí nasceu a Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria. Era o ano de 1916.
Pe. Júlio chegou a Manhumirim dia 24/3/1928. Hospedou-se com o Pe. La Barrera, vigário da cidade. Havia uma igreja nova em construção, construção que se arrastava havia longos anos. A vida paroquial, como um todo, ia no mesmo ritmo. O velho vigário, já cansado, não podia fazer muita coisa. Pe. Júlio ficou ali, procurando conhecer a situação, observando e aprendendo. Limitou-se, durante um mês e pouco, antes de tomar posse, a celebrar a missa, observar as coisas, planejar. A posse aconteceu em fins de abril. Apaixonado por Nossa Senhora, quis marcar sua entrada na paróquia com um Mês de Maria vibrante, piedoso e muito bonito.
Era preciso — continua sendo preciso — catequizar os católicos, mostrar-lhes sua Igreja, as razões de sua fé e de sua esperança, de modo que eles pudessem decidir-se esclarecidamente, em moral e em doutrina. (...) Foi então que resolveu fundar um jornal e um jornal combativo, a que deu o nome de “O Lutador”. O primeiro número saiu em 25 de novembro de 1928 e nunca mais deixou de ser editado. As lutas de “O Lutador” variaram nesses 72 anos, mas ele sempre lutou por algumas causas fundamentais para o Reino de Deus. Com linguagens diferentes, com enfoques diversos, mas sem perder de vista a meta final, os objetivos básicos.
Pe. Júlio era um homem diante do qual a gente tinha de tomar posição. A favor ou contra. Os paroquianos se entusiasmaram com o novo vigário. A Igreja encheu-se de fiéis. Cresceu a vida sacramental, sobretudo a vida eucarística. Organizou-se a Liga Católica para os homens, foi infundida vida nova às Filhas de Maria para as moças, à Congregação Mariana para os rapazes ou adultos de sexo masculino, os Vicentinos foram grandemente estimulados. Pe. Júlio fundou a Congregação dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora. Depois, a Congregação das Irmãs Sacramentinas de Nossa Senhora, pensando especialmente na educação da juventude feminina, na preparação das mães de família. Com o tempo, pensando no atendimento à saúde da população carente, juntamente com os Vicentinos, construiu o Hospital S. Vicente de Paulo. Diante da necessidade de preparar a juventude masculina para um catolicismo mais sólido e uma vida sócio-política mais consciente, fundou o Colégio Pio XI, que marcou época, não só na cidade, mas em ampla região, tendo mantido durante muitos anos um internato famoso, com alunos que vinham da redondeza, mas também do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Mais tarde ainda, fundou um Patronato Agrícola, uma casa de Aprendizado Doméstico e deu todo apoio aos Vicentinos na fundação e manutenção de um Asilo para inválidos.
Enquanto isso, entregava-se de corpo e alma à paróquia, à formação dos seminaristas e religiosos de sua Congregação, assim como, com a colaboração da Co-fundadora das Irmãs Sacramentinas, a Madre Beatriz Frambach, ia trabalhando incansavelmente na formação e desenvolvimento da nova Congregação feminina, que vicejava com força invejável, com frutos de piedade e santidade admiráveis.
Para homens como o Pe. Júlio Maria não faltam amigos nem adversários. Sua ação em Manhumirim não podia deixar de ter repercussão política. Fizeram tudo para envolvê-lo em lutas partidárias. Pe. Júlio não apenas não tinha ambições políticas, no sentido de poder e influência direta na condução da sociedade, mas só usava sua força em defesa dos interesses religiosos de seus fiéis. Mesmo assim, os Partidos se dividiram diante dele. Houve ameaças de todo o tipo e tentaram assassinar o Padre, num domingo, dentro da própria igreja.
Nesse meio tempo, a Congregação masculina do Pe. Júlio Maria, crescia e se espalhava por Minas Gerais. Os missionários estavam marcados pelo espírito de pobreza e desapego, por enorme disposição para o trabalho pastoral, e suas paróquias eram sempre movimentadas e piedosas, eucarísticas e marianas. Por seu lado, “O Lutador” se difundia pelo Brasil afora, entrava praticamente em todos os Estados, especialmente os do Sudeste e do Sul, e chegava a atingir mais de 900 cidades, levando o nome, as lutas, a doutrina do Padre Júlio Maria e aumentando seu prestígio no país.
Apesar de sua nunca bem entendida sua paixão pela França (ele se dizia francês, apesar de ser belga e flamengo, falava com notável entusiasmo dos heróis franceses, da literatura francesa, da língua francesa que ele fazia questão de dizer que sabia, porque temos de conhecer “nossa língua”); apesar disso, quis se abrasileirar, desde os tempos de Macapá, no sentido que quis entender o povo, amar o Brasil e sua gente, fundar uma Congregação religiosa brasileira (a sua foi a primeira Congregação religiosa masculina brasileira e continuou sendo a única durante décadas). E mais que isso, em 1940 requereu sua naturalização. Ser brasileiro, deixar de ser francês, foi um grande sacrifício, um exercício de “kénosis”, de esvaziamento afetivo por amor de Cristo, como um testemunho de despojamento pessoal em nome do amor ao povo ao qual dedicou praticamente toda sua vida sacerdotal. O título de cidadão brasileiro foi-lhe entregue solenemente em 31/10/1941, pelo Juiz de Direito de Manhumirim.
Tanto trabalho e tanta dedicação marcaram suas Congregações assim como a população da paróquia. Mas, por outro lado, iam-lhe desgastando a saúde. Não era velho. Tinha apenas 66 anos. Estava longe de dar mostras de decrepitude. Entretanto, em 1944, começou a falar da morte próxima. Começou a preocupar-se com a sucessão. Resolveu ir preparando melhor aqueles que poderiam continuar sua obra. A Congregação, porém, era muito nova: tinha apenas 15 anos e começara do nada. De qualquer maneira, o Fundador dizia aos noviços antes do último retiro pregado à comunidade (de 11 a 19/12/1944): “Quero fazer um ano de preparação para a morte. Sinto que não irei muito longe.” Fazia, então, frequentemente, menção à morte e ao céu. Cinco dias antes de morrer, eram indescritíveis os carinhos paternais e a expansão com que tratava seus filhos espirituais.
No dia 24 de dezembro de 1944, domingo, celebrou a missa das 5h 30min na Matriz do Bom Jesus, Manhumirim, estimulando todos a uma fervorosa comunhão naquela noite do nascimento de Nosso Senhor. Lá pelas 7h, partiu de automóvel para a fazenda S. José, em Vargem Grande, propriedade que ele adquirira recentemente para ajudar na manutenção do Seminário. Viajaram com ele três Irmãs Sacramentinas que iam conhecer o local de uma futura residência e escola, para as crianças da Vargem Grande. Um dia dedicado ao trabalho pastoral e à preparação da nova casa das Irmãs.
À tarde, quando ia voltar para Manhumirim, o tempo chuvoso e a estrada de terra escorregadia não aconselhavam que fizessem a viagem. Ele, porém, achava que deveria ir, por ser véspera de Natal, e ele iria celebrar a missa da meia-noite. Saiu apesar do risco. Provavelmente não avaliasse o tamanho do perigo, porque não era motorista e andava muito pouco de carro. O motorista, por sua vez, era jovem e inexperiente e não teve coragem de enfrentar a ordem do Pe. Júlio Maria, que fez questão de descer a serra. Aconteceu o desastre, o carro capotou duas ou três vezes na ribanceira e o Pe. Júlio ficou preso entre a ferragem do automóvel e um tronco de árvore. Os outros passageiros e o chofer não sofreram praticamente nada, fisicamente. Mas o padre não conseguiu libertar-se, e, comprimido, ia sendo sufocado, sem ar. Resistiu ainda algum tempo, pedindo que providenciassem alguém que o pudesse tirar dali: “Depressa, depressa, minha filha!” – dizia ele a uma das Irmãs. Mas o socorro veio tarde demais. E ele morreu, pronunciando estas palavras: “Meu Deus, meu Deus! Nossa Senhora do Carmo! Meu Deus!”
Este texto é uma resenha, adaptada para publicação eletrônica, do livro “Pe. Júlio Maria, sua vida e sua missão”, de Dom Antônio Afonso de Miranda, o primeiro religioso da Congregação do Pe. Júlio Maria escolhido para ser bispo, hoje Bispo Emérito de Taubaté, SP, e que foi o primeiro biógrafo do seu Fundador.
Fonte: Sacramentinos.org.br