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A ARTE DE REPREENDER
Por definição, falta experiência às crianças. É
papel dos pais alertá-las sobre os perigos que podem correr. Mas, os
brados de alerta incessantes e desproporcionados acabam por embotar a
atenção e a sensibilidade; e quando houver perigo real a prevenir, a
intervenção dos pais não será então levada a sério.
• Há dois excessos a evitar em matéria de educação:
o que consiste em jamais intervir — o “deixa-fazer”, o “deixa-passar” — ou
a política dos olhos fechados: “Faze o que te agrada e deixa-me em paz”,
política de demissão que pode culminar em consequências catastróficas; ou
então, o excesso que consiste em intervir a cada instante por bagatelas.
A verdade, como sempre, está no meio-termo. A criança precisa da
ajuda do adulto e mesmo, quando é pequena, essa ajuda pode consistir numa
espécie de adestramento incessante: a lembrança de uma dor (palmada ou ralho)
relativa a um gesto ou a uma atitude repreensível.
• Os bons exemplos e os estímulos ao bem nem
sempre bastam em educação. A criança não nasce perfeita. Há
nela tendências anárquicas e às vezes, quando menos se espera, pode
manifestar um caráter ciumento, autoritário, independente, associal, etc... É,
por conseguinte, normal que papai e mamãe canalizem, orientem no bom
sentido as jovens forças vivas, por uma repreensão que, bem dosada, bem
adaptada, aplicada a tempo, contribuirá para que a criança toque com o
dedo as fronteiras do bem e do mal, do justo e do injusto, numa palavra,
para formar o seu julgamento moral.
• Uma advertência, para ser eficaz, deve ser breve
e rara. Se assume o ar de cena, de gritos intervalados ou superagudos,
perde todo o efeito. A princípio amedrontada, mas logo indiferente, a
criança deixará passar a tempestade à custa de nossa autoridade, mas
também à custa da formação de sua consciência, porque uma consciência não
se forma sozinha.
• É de todo interesse que as vossas intervenções
se efetuem com serenidade e se revistam de um caráter pacificador. Terão,
assim, podeis estar certos, um alcance salutar; mesmo que contrariem,
momentaneamente, as defesas instintivas da criança, ajudá-la-ão por fim a
dominá-las.
• A maioria dos pais não imagina até que
ponto usa de autoridade por enxurradas de observações inúteis e
secundárias, por insistência de recomendações acessórias, por excessos de
solicitude que vão de encontro ao bem objetivado.
Por pouco que se observe num jardim, num trem ou
num lar, uma mãe com o filho, é de espantar o número de advertências por vezes
contraditórias e de repreensões por vezes ilógicas e injustificadas que
chovem sobre os pobres pequenos: “Henrique, não corras mais, vais sentir muito
calor...” E cinco minutos depois: “Não fiques aí plantado como uma árvore, vai
brincar...” “Não te chegues tão perto da água...” “Cuidado com os sapatos, vais
sujá-los!...” “Vais ainda desobedecer-me, como sempre...” “Que foi que te
disse, Henrique?...” “É terrível ter crianças como esta!” “Não há nada
a fazer contigo, não serves para nada.” E ainda é bom quando a pobre
mãe, inconsciente do alcance de suas palavras, não acrescenta: “Vê-se bem
que tens o gênio de teu pai!”
• A solicitude maternal só deve exercer-se no caso
em que for verdadeiramente necessária. Fazer censuras sem fundamento é
arriscar-se a falsear a consciência da criança, que não aprende a atribuir
às ordens e às interdições a importância relativa que merecem; a criança não se
desenvolve como deve, não realiza a sua própria experiência,
suportando as consequências de suas tolices ou de suas
imprudências (naturalmente, onde não houver grave perigo).
• Entre as vantagens oferecidas pelo sistema das
reações naturais, encontramos desde logo a de que forneceu ao espírito, em
matéria de conduta, aquela noção justa do bem e do mal que resulta da
experiência dos bons e maus efeitos; secundariam ente, vemos que a
criança, já não experimentando senão as conseqüências penosas de suas
ações más, deve reconhecer mais ou menos claramente a justiça da
penalidade; em terceiro lugar, que a justiça da penalidade sendo reconhecida, e
a penalidade tendo sido aplicada pelas mãos da natureza e não pelas de um
indivíduo, a criança se irrita menos com ela, enquanto que o pai, não
fazendo senão cumprir o dever relativamente passivo que consiste em deixar
o sofrimento produzir-se pelas vias naturais, conserva uma calma relativa;
em quarto lugar, que, assim prevenida a exasperação mútua, relações mais
suaves, mais fecundas em boas influências passam a existir entre pais e
filhos.[1]
• Quando uma criança cai ou bate com a cabeça
na mesa, sente uma dor cuja lembrança tende a torná-la mais atenta... Se
toca na barra de ferro do fogão, se passa a mão na chama de uma
vela ou recebe na pele uma gota de água fervente, a queimadura que
sente é uma lição que não será facilmente esquecida. Uma criança
habituada à inexatidão perderá o passeio, uma criança negligente, que
perde ou deixa que se quebrem os objetos de seu uso, leva os pais à
recusa de substituir os objetos perdidos ou quebrados. Mais tarde,
uma criança que não cuida das suas roupas vê-se privada de sair com
a família para uma excursão ou para uma visita a pessoas amigas.
Mais tarde ainda, um rapaz descuidado ou inativo não obtém um lugar
cobiçado; eis os castigos por meio de reações naturais, que acompanham as
faltas cometidas.[2]
• A fim de ensinar e fazer com que a criança
adquira consciência concreta do alcance do que diz ou do que faz, um
dos meios mais eficazes consiste, sempre que possível, em levá-la a
reparar material ou moralmente o mal que causou.
• Quando se tem de repreender uma criança é
melhor (a menos que o erro seja público) fazê-lo em particular e em
voz baixa.
• Não prolongar além da medida a conversa com a
criança que agiu mal. Não aceitar igualmente a discussão. É
melhor cortar o assunto sem mais explicações, com o sorriso calmo de
quem possui boas razões e não deseja, no momento, expô-las. O “delinquente”,
ultrajado, se esforçará então para adivinhar o que não dizeis. Os
argumentos que procurará em lugar dos vossos adquirirão — porque ele os
terá retirado do seu próprio íntimo — um valor que os vossos não teriam.
• Não deveis exigir sempre das crianças que
reconheçam imediatamente os seus erros. É muito difícil, com efeito, para elas
admitir de saída que agiram mal. Se deixam de sustentar teimosamente
que estão inocentes, já é uma grande coisa, porque nesse momento,
em seu íntimo, já estão perto de se reconhecerem culpadas e se
renderem completamente às vossas razões.[3]
• O que é preciso evitar a todo custo quando se
faz uma observação a uma criança, é compará-la a uma outra:
“Olha como o teu irmão é bonzinho... — Ah, se fosses sempre como o
Jaimezinho”, etc. Não há nada pior do que isso para criar entre a criança
e o modelo proposto ciúmes e até mesmo inimizades implacáveis.
• Nunca ressuscitar, a propósito de um acidente
qualquer, todas as velhas mágoas. Uma vez perdoada, a falta
passada não deve ser mais lembrada. Voltar a ela é mostrar que nada
foi esquecido e que se tem sempre em reserva uma certa história humilhante
prestes a ser contada de novo. Há nisso algo capaz de desencorajar para
sempre uma criança em seus esforços.
• Um dos casos que, em geral, suscita a
intervenção tumultuosa dos pais é o de uma disputa entre irmãos e
irmãs. Habitualmente, verifica-se que, depois de 4 ou 5 minutos
de discussão, uma das crianças cede, seja porque se sente mais fraca,
seja porque se mostra mais razoável do que a outra. Por que intervir
quando o caso pode solucionar-se por si mesmo de maneira satisfatória?[4] Não desperdicemos
nossa autoridade a propósito de faltas insignificantes. Se há
abuso de poder por parte de um “déspota”, sempre há tempo para lhe
dar uma concepção mais exata da justiça distributiva e da caridade
fraterna.
• Conheço dois meninos que dormem no mesmo quarto.
Naturalmente, brigam de quando em vez, e com maior frequência ainda brincam na
hora de dormir. Foi-lhes dito que deviam calar-se logo que se deitassem, mas
isso não serviu para grande coisa. Quando a luz se apaga e mamãe se retira, a
alegria e a tagarelice se desatam. Uma noite, mamãe chega, pela segunda
vez, para ralhar com os desobedientes. Semiconsciente da necessidade de
infligir uma punição, semi-enternecida pelo riso que ainda vê nos lindos
rostinhos, diz: “Será muito difícil obedecer? As mamães têm um trabalho
difícil: transformar meninos desobedientes em homens bons e leais. Como
vou conseguir isto com vocês? Não pensem que é engraçado!” Trata-se de
uma simples observação e a mamãe não joga antecipadamente com a resposta;
mas, de súbito, o menorzinho dos futuros “homens bons e leais” balança a
cabeça e diz com vozinha envergonhada: “É, já pensei também que deve ser triste
para o teu coração quando não somos bem educados!” E a mãe se retira
contente e grata.[5]
[1] Spencer, cit.,
por Kieffek, L’Autorité dans la
Famile et à l’École. pág 179 (Ed. Beauchesne).
[2] Kieffter, op. cit., pág 177.
[3]
Lamers-Hoogveld, op. cit pág 198.
[4] Tanto mais que frequentemente nos
enganamos sobre a intenção real da criança.
[5] J. Lamers-Hoogveld, op. cit., pág 180.