quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Meio geral para aplicar as nossas obras no serviço de Deus

Meio geral para aplicar 
as nossas obras no serviço de Deus
(São Francisco de Sales)


Tudo o que fizerdes e seja o que for que fizerdes em palavras e em obras,
fazei-o tudo em nome de Jesus Cristo. 
Quer comais quer bebais, quer façais alguma outra coisa, 
fazei-o tudo para a glória de Deus
(Col. 3, 17; 1 Cor 10, 31). 

São as próprias palavras do divino Apóstolo, as quais, como diz o grande São Tomás explicando-as, são suficientemente praticadas quando temos o hábito da santíssima caridade, pela qual, embora não tenhamos uma intenção expressa e atenta de fazer cada obra por Deus, essa intenção está contida implicitamente na união e comunhão que temos com Deus, pela qual tudo o que podemos fazer de bom é dedicado conosco à Sua divina bondade. Não há necessidade de que um filho, ficando na casa e no poder de seu pai, declare que o que adquire é adquirido para seu pai, porquanto, sendo de seu pai a sua pessoa, tudo o que dele depende lhe pertence também. Basta também que sejamos filhos de Deus por dileção, para tornarmos tudo o que fazemos inteiramente destinado à Sua glória. 

Verdade é, pois, Teótimo, que, como dissemos noutro lugar, tal qual como a oliveira plantada perto da vinha lhe dá o seu sabor, assim também a caridade, achando-se junto das outras virtudes, comunica-lhes a sua perfeição. Mas, como também é verdade que, se se enxerta a vinha na oliveira, ela não lhe comunica apenas mais perfeitamente o seu gosto, porém a torna ainda participante do seu suco, não vos contenteis também de ter a caridade, e com ela a prática das virtudes, mas fazei que seja por meio dela e por causa dela que a pratiqueis, a fim de que elas possam ser-lhe justamente atribuída. 

Quando um pintor segura e conduz a mão do aprendiz, o traço que provém dela é atribuído principalmente ao pintor, porque, embora o aprendiz tenha contribuído com o movimento da sua mão e com a aplicação do pincel, seja como for o mestre de sua parte também entremeou de tal sorte o seu movimento ao do aprendiz, que, imprimindo nele a honra daquilo que está bem no traço, essa honra lhe é especialmente deferida, ainda que não se deixe de louvar o aprendiz por causa da brandura com que acomodou o seu movimento à direção do mestre. Oh! como são excelentes as ações das virtudes quando o divino amor lhes imprime o seu sagrado movimento, isto é, quando se fazem pelo motivo da dileção! 

Mas isto se faz diferentemente. 

O motivo da divina caridade derrama uma influência de perfeição particular sobre as ações virtuosas dos que se dedicaram especialmente a Deus para o servirem para sempre. Tais são os bispos e sacerdotes, que, por uma consagração sacramental e por um caráter espiritual, que não pode ser delido, se votam, como servos estigmatizados e marcados, ao perpétuo serviço de Deus. Tais os religiosos que, pelos seus votos, ou solenes ou simples, são imolados a Deus na qualidade de hóstias vivas e racionais (Rom. 12, 1). Tais todos os que se alistam nas congregações pias, dedicadas para sempre à glória divina. Tais, ainda, todos os que de caso pensado se proporcionam profundas e poderosas resoluções de seguir a vontade de Deus, fazendo para isso retiros de alguns dias, a fim de, por diversos exercícios espirituais, excitarem suas almas à inteira reforma da sua vida; método santo, familiar aos antigos cristãos, porém depois quase completamente abandonado, até que o grande servo de Deus Inácio de Loyola o repôs em uso no tempo de nossos pais. 

Sei que alguns não acham que essa oblação tão geral de nós mesmos estenda a sua virtude e leve a sua influência sobre as ações que praticamos depois, senão à medida que no exercício delas nós aplicarmos em particular o motivo da dileção, dedicando-as especialmente à glória de Deus. Mas, não obstante, todos confessam com São Boaventura, louvado por cada um neste assunto, que, se eu no meu coração resolvi dar cem escudos por Deus, embora depois faça com vagar a distribuição dessa soma, tendo o espírito distraído e sem atenção, sem embargo toda a distribuição não deixará de ser feita por amor, visto proceder do primeiro intuito que o divino amor me fez de dar tudo isso. 

Mas, dizei-me, Teótimo, que diferença há entre quem oferece a Deus cem escudos e quem oferece todas as suas ações? Certamente, não há diferença, a não ser que um oferece uma soma de dinheiro e o outro uma soma de ações. E, pergunto-vos, por que então não serão eles um como o outro considerados como tendo feito a distribuição das moedas de suas somas, em virtude dos seus primeiros propósitos e fundamentais resoluções? E se, distribuindo seus escudos sem atenção, não deixa um de gozar da influência do seu primeiro intento, por que então o outro, distribuindo as suas ações, não há de gozar do fruto da sua primeira intenção? Aquele que destinadamente se tornou escravo amigável da divina bondade dedicou-lhe conseqüência todas as suas ações. 

Sobre esta verdade cada um deveria uma vez na vida fazer um bom retiro, para nele purgar bem a sua alma de todo pecado, e para em seguida formar uma íntima e sólida resolução de viver todo para Deus, conforme ensinamos na primeira parte da Introdução á vida devota; depois, ao menos uma vez no ano. Fazer a revista da sua consciência, e a renovação da primeira resolução que assinalamos na quinta parte daquele livro, ao qual sobre este ponto vos encaminho.

De certo, São Boaventura confessa que um homem que adquiriu tamanha inclinação e costume de fazer o bem, que muitas vezes o faz sem atenção especial, não deixa de merecer muito por tais ações, enobrecidas como são pela dileção de que provêm, raiz e fonte originária desse feliz hábito, facilidade e presteza.

(Tratado do amor de Deus, capítulo  VIII, Livro Décimo segundo)