quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Quanto importa, na infância, tratar com pessoas virtuosas!



CAPÍTULO 2.
Trata de como foi perdendo essas virtudes e de quanto importa, na infância, tratar com pessoas virtuosas.
(Santa Teresa de Jesus - Livro da Vida)

1. Parece-me que começou a fazer-me muito dano o que agora direi. Considero algumas vezes o mal que fazem os pais em não procurar que seus filhos vejam sempre - e de todas as maneiras - coisas de virtude. Porque, com ter tanta a minha mãe, como disse, de bom não tomei muito, nem quase nada - chegando ao uso da razão - e o mal causou-me muito dano. Era ela afeiçoada a livros de cavalaria. Não tomou, no entanto, esse passatempo tão mal com eu, pois com isso não deixava o trabalho; somente nos facilitava a sua leitura.

E talvez o fizesse para não pensar nos grandes trabalhos que tinha e ocupar seus filhos para que não andassem perdidos em outras coisas. Isto pesava tanto a meu pai, que era preciso andar com cuidado para que não o visse. Comecei a ficar com o costume de os ler; e aquela pequena falta que nela via fez resfriar os desejos em mim e faltar no demais. Não me parecia mal o gastar muitas horas do dia e da noite em tão vão exercício, embora às escondidas de meu pai. Era tão em excesso o que nisto me embebia que, se não tivesse livro novo, não tinha - a meu parecer - contentamento.

2. Comecei a enfeitar-me e a querer agradar com a boa aparência, a ter  muito cuidado com as mãos e cabelo, perfumes e todas as vaidades que nisto podia ter, porque eu era muito exigente. Não tinha má intenção, pois não quisera eu que alguém ofendesse a Deus por minha causa. Durou-me muitos anos este muito requinte no demasiado apuro e em coisas que me pareciam não ser nenhum pecado. Agora vejo o mal que devia ser.

Tinha eu uns primos irmãos que tinham entrada em casa de meu pai, que outros não tinham essa sorte, porque o meu pai era muito recatado; e quisera Deus que também o tivesse sido com esses, pois agora percebo o perigo que vem do contato, na idade em que se deve começar a ter virtudes, com pessoas que, não reconhecendo a vaidade do mundo, nos atraem para ela.

Eram quase da minha idade, um pouco mais velhos do que eu. Andávamos sempre juntos. Tinham-me grande amor e, em todas as coisas que lhes dava gosto, eu entretinha conversa com eles. Ouvia os sucessos de suas aspirações e ninharias nadinha boas; e o pior foi a alma abrir-se ao que foi causa de todo o seu mal.

3. Se eu houvesse de aconselhar, diria aos pais que, nesta idade, tivessem grande cuidado com pessoas com quem seus filhos tratam. Daqui vem muito mal, porque o nosso natural mais tende para o pior de que para o melhor.

Assim me aconteceu a mim; tinha uma irmã de muita mais idade do que eu, de cuja honestidade e bondade - que tinha muita - eu nada apanhei, e tomei todo o mal de uma parente que frequentava muito a nossa casa. Sua grande leviandade levara minha mãe a se esforçar muito para afastá-la de casa. Parece que adivinhava o mal que por ela me havia de vir. Mas era tanta a ocasião que havia para ter entrada que nada pôde. Passei a gostar dessa parenta.

Com ela era a minha conversação e práticas, porque me ajudava em todas as coisas de passatempo que eu queria e até me metia nelas e dava parte das suas conversas e vaidades.

Até o momento em que com ela convivi, por volta dos meus catorze anos,ou um pouco mais (quando ela era minha amiga e eu ouvia as suas confidências), não creio, ter me afastado de Deus por algum pecado mortal nem perdido o temor d'Ele, embora fosse mais forte o sentimento da honra.

Este temor teve força para eu não a perder de todo. e tenho a impressão de que nada neste mundo poderia me fazer mudar nesse aspecto, nem o amor de nenhuma pessoa era capaz de me fazer fraquejar quanto a isso. Assim tivesse eu tido fortaleza para não ir contra a honra de Deus, tal como ma dava o meu natural, para não perder no que a mim me parecia estar a honra do mundo! E, no entanto, eu a perdia de tantas outras maneiras!

4. Eu exagerava nesse inútil apego à honra! Dos meios que era mister para a guardar, não usava de nenhum; somente tinha grande cuidado em não me perder de todo. Meu pai e minha irmã sentiam muito esta amizade e dela me repreendiam muitas vezes. Como não podiam evitar que a parenta fosse à nossa casa, foram inúteis os seus esforços, pois era grande minha esperteza para o mal.

Espanta-me, algumas vezes, o dano que faz uma má companhia e, se eu não tivesse passado por isto, não o poderia crer; no tempo da mocidade, em especial, deve ser maior o mal que causa. Eu gostaria que os pais, com o meu exemplo, se acautelassem e observassem bem isso. A verdade é que essa amizade me transformou a tal ponto que quase nada restou da minha inclinação natural para a virtude; e me parece que ela e outra moça, que gostava do mesmo tipo de passatempo, imprimiam em mim maus hábitos.

5. Isso me faz entender o enorme proveito que vem da boa companhia, e estou certa de que, se naquela idade tivesse tido contato com pessoas virtuosas, a minha virtude teria se mantido intacta; porque, se tivesse tido, nessa idade, pessoas que me ensinassem a temer a Deus, a minha alma teria se fortalecido contra a queda. Tendo perdido esse temor de Deus, ficou-me apenas o de perder a honra, o que, em tudo o que eu fazia, me trazia aflição. Pensando que não se teria como descobrir, atrevi-me a fazer coisas contra a honra e contra Deus.

6. A princípio causaram-me dano as ditas coisas segundo me parece. Mas a culpa não devia ser sua senão minha. Porque depois bastou a minha malícia para o mal juntamente com o ter criadas, pois, para todo o mal, encontrava nelas boa ajuda. Se alguma tivesse sido de bom conselho, porventura me tivesse aproveitado; mas cegava-as o interesse e a mim a afeição. No entanto, nunca fui inclinada a muito mal, porque coisas desonestas naturalmente as aborrecia, mas me dedicava a conversas agradáveis - o que não impedia que eu estivesse em perigo, exposta a situações arriscadas, expondo a elas também meu pai e meus irmãos.

De tudo isso Deus me livrou e de um modo que mostrou com clareza estar Ele procurando, até contra a minha vontade, evitar que eu me perdesse por inteiro. Mas o meu proceder não permaneceu tão oculto a ponto de não lançar dúvidas contra a minha honra e criar suspeitas em meu pai. Eu estava envolvida nessas vaidades há uns três meses, quando me levaram a um mosteiro existente no lugar, nele, criavam-se pessoas em condições semelhantes, embora não de costumes tão ruins quanto os meus; e isso de maneira tão discreta, que só eu e um parente o soubemos.

Aguardaram para isso uma ocasião a não parecer estranho: foi o ter-se casado minha irmã e ficar eu só, sem mãe, não parecia bem.

7. Era tão demasiado o amor que meu pai me tinha e a minha muita dissimulação, que não acreditou tanto mal de mim e assim não ficou desagradado comigo. Mas, como esse tempo foi de curta duração, embora algo se tivesse percebido, com certeza, nada se devia ter dito. É que eu, como temia tanto a perda da honra, punha todas as minhas diligências em que fosse secreto e não olhava a que não o podia ser para Quem tudo vê.

Ó Deus meu, que dano causa ao mundo ter isto em pouca conta e pensar que pode haver coisa secreta feita contra Vós! Estou certa de que muitos males seriam evitados se soubéssemos que o importante  não é nos ocultar dos homens, mas evitar descontentar a Vós.

8. Os primeiros oito dias senti-os muito, e mais pela suspeita de que se tivesse percebido a minha vaidade do que por estar ali. Já andava cansada e não deixava de ter grande temor de Deus quando O ofendia, e procurava logo confessar-me. Trazia-me isto tal desassossego que, ao fim de oito dias e creio até menos, estava muito mais contente de que em casa de meu pai. Todas o estavam também comigo, porque, nisto de dar gosto onde quer que estivesse, me dava o Senhor graça e assim era muito querida.

Naquele tempo desgostava-me a idéia de tornar-me monja; apesar disso, eu apreciava ver as boas religiosas daquela casa, muito honestas, fervorosas e recatadas.

Mesmo com tudo isto, não deixava o demónio de me tentar, e procuravam os de fora desassossegar-me com recados. Mas, como a isso se não dava lugar, depressa acabou. Minha alma começou a acostumar-se de novo ao bem da minha primeira infância, e vi a grande mercê que Deus faz àqueles a quem põe em companhia dos bons. Parece-me que Sua Majestade andava a mirar e a remirar por onde e como me podia fazer voltar a Si. Bendito sejais, Vós, Senhor, que tanto me haveis sofrido! Amén.

(Livro da Vida - Santa Teresa de Jesus)
PS: Grifos meus