domingo, 7 de agosto de 2016

16. A ARTE DE PUNIR

Nota do blogue: Acompanhe esse especial AQUI.


16. A ARTE DE PUNIR

A simples repreensão às vezes não basta. 
É preciso sancionar uma desobediência caracterizada, 
uma mentira lúcida, um furto desavergonhado.

• Ao período em que a criança está constantemente no berço sucede o tempo em que começa a se alimentar com a colher. Sucede então que, na sua exuberância, a criança se diverte em bater na mesa com esse utensílio. Na primeira vez, a mãe fará compreender que desaprova a brincadeira; estendendo a mão, dirá calma e distintamente; “Não podes fazer isto”. Se a coisa renovar-se, a mamãe protestará um pouco mais energicamente e repetirá a proibição de modo ainda mais imperativo. Será, decerto, necessário recomeçar mais de duas ou três vezes, mesmo, porém, que seja preciso repetir cem vezes a interdição, disso não pode furtar-se a mamãe sem grande dano... Quando chegar o tempo de levar a criança a um parque, o "não podes fazer isto” tornar-se-á mais necessário ainda. Quanto mais severa fordes no começo, menos tereis de renovar vossas proibições. Mas, a partir dessa idade, a criança começará a se mostrar rebelde; se, até então, só cometia faltas por excesso de vitalidade e por ignorância, fá-lo agora por desobediência. Bem sabeis como isto se produz; quando a criança leva à boca um objeto que de modo algum se destina a esse uso, e que vós o proibis, pode suceder que ela recomece o gesto com determinação, olhando-vos bem no rosto... Se o “não podes fazer isto” severamente pronunciado ficar sem efeito, significa que a criança, para obedecer espontaneamente, precisa de um estimulante mais enérgico; um tapinha sobre a mão terá decerto êxito maior do que palavras. Não sou contrário a que se bata, às vezes, se é que um tapinha possa chamar-se de “bater”.[1]

• Não há nada mais falso e mais cruel para a própria criança do que essa errônea sensibilidade que consiste em inclinar-se diante dos caprichos e faltas, sob o pretexto de que se trata apenas de uma criança. É claro que não se cogita de brutalizá-la; mas, erigir em princípio ser preciso "não impor às crianças qualquer sofrimento, mesmo leve”, é um absurdo que levará a criança a se tornar o nosso próprio tirano.
• A criança é uma anarquia de tendências. Não é de espantar que subitamente surja uma tendência perversa. Desconfiemos das perfeições prematuras. É papel do educador intervir por vezes energicamente para associar no espírito e mesmo na carne da criança a ideia de uma dor física à transgressão de uma interdição.
• A punição, para ser educativa, isto é, para formar a consciência, deve sempre ser dosada, ou melhor, adaptada à idade da criança, ao seu caráter, ao seu temperamento, bem como às circunstâncias da falta. O mau jeito é uma coisa, a maldade, outra. Uma coisa é uma irreflexão, outra uma falta de respeito.
• Um bom corretivo pode produzir uma cura radical e definitiva nos casos em que as advertências e as punições leves repetidas só fazem enervar sem proveito.
• É um erro castigar uma criança por um mal feito do qual não havia adivinhado o caráter repreensível. Antes de punir, convém verificar se a criança sabia da proibição.
• O educador deve-se apagar o mais possível, a fim de eliminar qualquer aspecto de luta ou de vingança pessoal, e fazer sentir ao culpado que ele é a causa primeira dos aborrecimentos que lhe caírem sobre os ombros. Pode-se mesmo tentar deixá-lo medir sozinho a duração do castigo, ficando bem entendido que a criança só lhe porá termo quando reconhecer seus erros e estiver resolvida a corrigi-los.    
• Todas as punições devem ter, tanto quanto possível, um caráter pacificador. Decerto, às vezes, sobretudo para os menores, um tapinha na mão ou uma boa palmada constituem a solução mais salutar. Quase sempre, porém, a sanção só terá vantagem se obrigar o culpado a uma pequena cura de calma e reflexão.
• Quem bem ama bem castiga, diz o provérbio. No mesmo sentido, todo castigo, para ser legítimo, deve proceder do amor: de um amor mais forte do que o amor sensível. Não é preciso pisar o coração de carne para punir um ser frágil e ternamente amado? Mas é por vezes o melhor testemunho de afeto profundo que lhe podemos dar. A criança, aliás, não se engana. Distingue com segurança as punições merecidas das que não o são. Jamais uma sanção justa, aplicada com calma, e mesmo firmemente, pode diminuir o respeito ou a afeição para com os pais.
• O educador consciente de sua tarefa, que não quer abandonar as crianças a si mesmas, nem subjugá-las, transformando-as em instrumentos, sente-se como que identificado com elas, de tal modo que as suas ignorâncias, suas misérias e suas faltas pesam sobre ele como se fossem suas e como se delas fosse responsável; de tal modo que, corrigindo-as por dever, e não para exercer um direito, sofre com elas, como se estivesse corrigindo a si próprio, pelas punições que lhes inflige e pelos esforços que lhes pede... As ameaças e as punições não têm mais do que a aparência de constrangimentos como os castigos que alguém a si mesmo se impusesse. Suportando-os, a criança pode começar a consentir neles. Por si mesma, não se lembraria de recebê-los, e é por isso precisamente que não necessários; por eles, uma consciência vem falar-lhe ao íntimo, uma consciência que, primeiro, supre a sua própria, e que, suprindo-a, a desperta e esclarece.[2]
• É preciso que nunca se castigue com um ar de triunfo, como se se tratasse de um ajuste de contas: “Vais ver quem é o mais forte!... Vou te ensinar a me desobedeceres.” A educação não é um combate em que há vencedor e vencido, mas uma colaboração tanto mais eficaz quanto é feita de confiança e de afeição.
• Quebrar uma vontade é sempre esterilizar o ser e nem sempre é aniquilar a revolta.
• Evite-se dar à criança a idéia de que foi para sempre repelida da sociedade normal, quer pela sua falta, quer pela punição em que incorreu.
• As crianças punidas com muita freqüência terminam por suportar alegremente os castigos, como suportam os raros momentos desagradáveis de suas existências.
• Que fazer quando a uma sanção a criança responde: “Não me importo”?

1. Não responder ao pé da letra: “Também eu”, ou então: “Tanto melhor se não te importas!”
2. Não ameaçar com uma sanção mais forte: “Uma vez que não te importas, está provado que não te bati o suficiente...”
3. Dizer simplesmente: “Meu fim não é o de te ser desagradável, mas o de te dar ocasião de refletir, de te acalmar ou de te impedir que incomodes os outros.”

Na maioria das vezes, a doçura após a correção fará com que a criança compreenda o fim verdadeiro de vossa imaginação.
• Refleti antes de proferir uma ameaça. Se ameaçais com freqüência sem executardes vossas ameaças, estas se tornarão para a criança uma brincadeira sem importância ou um autêntico jogo.
Um dia, dois meninos, irritados com as ameaças reiteradas da mãe, continuavam a se conduzir mal e confessaram: “Quisemos ver até quando podíamos continuar a nos conduzir mal sem que nos castigasses...”
• Evitai as punições humilhantes, absurdas ou anti-educativas. Humilhantes como as “orelhas de burro”; absurdas como a de privar a criança de ir à missa ou à reunião de escoteiros, anti-educativas como a de obrigá-la a copiar vinte vezes: “Desobedeci a mamãe” (a menos que lhe façamos copiar uma frase positiva: “Quero obedecer cada vez mais”!). Um rapazinho era sujeito a tais teimosias que os pais se haviam habituado a fechá-lo num quarto até que cedesse. A princípio, o pai ia de vez em quando abrir a porta da prisão para perguntar com voz zangada: “Acabaste? Presta atenção... se não te corrigiste ainda, vais ficar aí o dia inteiro, se for preciso.” Esse sistema de intimação não produzia fruto algum. O rebelde não respondia, ou respondia com uma recusa altiva; e a teimosia se prolongava indefinidamente. Um dia, os pais pensaram mudar de método. Continuaram, sem dúvida, a encerrar o jovem obstinado no mesmo lugar, mas sem fortes ralhos: “Vais refletir um pouco sozinho”, disseram-lhe, “Vais procurar acalmar-te porque o que tens, sobretudo, é um ar muito enervado, e quando estamos nervosos somos incapazes de refletir direito. Depois, quando compreenderes que é preciso ser razoável, voltarás para junto de nós”. Alguns minutos mais tarde, voltaram a ele, mas sem desferir raios e coriscos: o pai se contentou em murmurar num tom encoraja dor e persuasivo quanto possível: “Afinal refletiste?... Estás razoável agora, não é mesmo?... Então, compreendeste?... Ah, eu estava certo que compreenderias depressa... Muito bem! Podes sair...” O resultado foi imediato. A crise terminou como por encanto (Todas as que se seguiram foram resolvidas de forma análoga, até se espaçarem e desaparecerem completamente). Bem entendido, arranjou-se para o menino uma volta honrosa: ele pôde reocupar seu lugar entre os seus com o sentimento reconfortante de uma vitória obtida contra si mesmo, e não mais de uma derrota imposta pelos outros. O educador, obrigado a ser severo, não deve nunca perder de vista um princípio essencial: o de que deve prestar atenção no sentido de fazer coincidir sempre o bem com uma impressão de êxito e de aperfeiçoamento. Se a criança, ao fazer o que deve, experimenta, ao contrário, uma impressão de vergonha e de rebaixamento, é que foi cometido um erro pedagógico, cujas conseqüências são incomensuráveis.[3]
• Nunca se deve aplicar o castigo de uma maneira implacável e sem remissão. É preciso deixar à criança a possibilidade de reparar a falta pela confissão e pelo esforço. A sanção irrevogável desestimula a vontade de reparação.
• Quanto mais cresce a criança, mais é preciso obter seu consentimento interior a uma punição merecida. A execução material de uma sentença de nada vale se a vontade, secretamente, a contradiz. É preciso que a criança compreenda em que é passível de repreensão. Não abuseis, porém, da corda sensível ou dramática: “Vais me fazer morrer de desgosto..ou “Acabarás na forca”; menos ainda da ameaça: “Vou te mandar para uma casa de correção!”
É sempre preciso não voltar atrás de uma sanção justa. Suspender levianamente uma punição merecida é dar antes prova de fraqueza do que de perspicácia. Lembremo-nos de que a vontade da criança precisa apoiar-se numa autoridade tão lógica quanto firme.
• Quando vosso filho age mal, deveis cair sobre ele como uma águia sobre a presa. Ele se curvará à saraivada e fugirá. E nesse caso, não imiteis aquela pobre mulher nervosa, que perseguia o filho gritando: “Marcelo, Marcelo, vem cá para que eu te dê um tapa!”
• Procurai compreender a razão das faltas de vossos filhos. Eis que, na rua, um deles atira pedras. Chamai-o com um tom natural e mostrai-lhe que se arrisca a quebrar o vidro de uma janela ou a ferir um transeunte, Mas, orientai o seu desejo de jogar alguma coisa. Estimulai-o ao tênis, ao tiro ao alvo, a fazer, com as próprias pedras, ricochetes numa piscina. 
É preciso não punir tudo. Há pecadilhos que devemos às vezes fingir que não vemos, sobretudo se não têm consequências morais ou sociais. Mas, quando se proíbe uma coisa, que seja para todos os dias, enquanto não mudarem as circunstâncias.



[1] J. LAMERS-HOOGVELD, op. cit., pág 175.
[2] LABERTHONNIÈRE, op. cit., pág 41.
[3] ANDRÉ BERGEÉducation Familiale, col. “L'Enfant et la Vie”, pág 101 (Ed. Montaigne).