16. A ARTE DE PUNIR
A simples repreensão às vezes não basta.
É
preciso sancionar uma desobediência caracterizada,
uma
mentira lúcida, um furto desavergonhado.
• Ao período em que a criança está constantemente no berço
sucede o tempo em que começa a se alimentar com a colher. Sucede
então que, na sua exuberância, a criança se diverte em bater na mesa
com esse utensílio. Na primeira vez, a mãe fará compreender que
desaprova a brincadeira; estendendo a mão, dirá calma e distintamente;
“Não podes fazer isto”. Se a coisa renovar-se, a mamãe protestará
um pouco mais energicamente e repetirá a proibição de modo ainda
mais imperativo. Será, decerto, necessário recomeçar mais de duas ou
três vezes, mesmo, porém, que seja preciso repetir cem vezes a
interdição, disso não pode furtar-se a mamãe sem grande dano... Quando
chegar o tempo de levar a criança a um parque, o "não podes fazer
isto” tornar-se-á mais necessário ainda. Quanto mais severa fordes
no começo, menos tereis de renovar vossas proibições. Mas, a partir dessa
idade, a criança começará a se mostrar rebelde; se, até então, só cometia
faltas por excesso de vitalidade e por ignorância, fá-lo agora por
desobediência. Bem sabeis como isto se produz; quando a criança leva à boca
um objeto que de modo algum se destina a esse uso, e que vós o proibis,
pode suceder que ela recomece o gesto com determinação, olhando-vos bem no
rosto... Se o “não podes fazer isto” severamente pronunciado ficar sem efeito,
significa que a criança, para obedecer espontaneamente, precisa de um
estimulante mais enérgico; um tapinha sobre a mão terá decerto êxito maior
do que palavras. Não sou contrário a que se bata, às vezes, se é que um
tapinha possa chamar-se de “bater”.[1]
• Não há nada mais falso e mais cruel para a
própria criança do que essa errônea sensibilidade que consiste
em inclinar-se diante dos caprichos e faltas, sob o pretexto de que se
trata apenas de uma criança. É claro que não se cogita de brutalizá-la; mas,
erigir em princípio ser preciso "não impor às crianças qualquer
sofrimento, mesmo leve”, é um absurdo que levará a criança a se tornar o
nosso próprio tirano.
• A criança é uma anarquia de tendências. Não é de
espantar que subitamente surja uma tendência perversa. Desconfiemos das
perfeições prematuras. É papel do educador intervir por vezes energicamente
para associar no espírito e mesmo na carne da criança a ideia de uma dor
física à transgressão de uma interdição.
• A punição, para ser educativa, isto é, para formar
a consciência, deve sempre ser dosada, ou melhor, adaptada à idade da
criança, ao seu caráter, ao seu temperamento, bem como às circunstâncias
da falta. O mau jeito é uma coisa, a maldade, outra. Uma coisa é uma
irreflexão, outra uma falta de respeito.
• Um bom corretivo pode produzir uma cura radical
e definitiva nos casos em que as advertências e as punições leves
repetidas só fazem enervar sem proveito.
• É um erro castigar uma criança por um mal feito
do qual não havia adivinhado o caráter repreensível. Antes de punir,
convém verificar se a criança sabia da proibição.
• O educador deve-se apagar o mais possível, a fim
de eliminar qualquer aspecto de luta ou de vingança pessoal, e fazer
sentir ao culpado que ele é a causa primeira dos aborrecimentos que lhe caírem sobre
os ombros. Pode-se mesmo tentar deixá-lo medir sozinho a duração do
castigo, ficando bem entendido que a criança só lhe porá termo quando
reconhecer seus erros e estiver resolvida a corrigi-los.
• Todas as
punições devem ter, tanto quanto possível, um caráter pacificador.
Decerto, às vezes, sobretudo para os menores, um tapinha na mão ou uma boa
palmada constituem a solução mais salutar. Quase sempre, porém, a sanção
só terá vantagem se obrigar o culpado a uma pequena cura de calma e
reflexão.
• Quem bem ama bem castiga, diz o provérbio. No
mesmo sentido, todo castigo, para ser legítimo, deve proceder
do amor: de um amor mais forte do que o amor sensível. Não é
preciso pisar o coração de carne para punir um ser frágil e
ternamente amado? Mas é por vezes o melhor testemunho de afeto profundo que
lhe podemos dar. A criança, aliás, não se engana. Distingue com segurança
as punições merecidas das que não o são. Jamais uma sanção justa,
aplicada com calma, e mesmo firmemente, pode diminuir o respeito ou a
afeição para com os pais.
• O educador consciente de sua tarefa, que não quer
abandonar as crianças a si mesmas, nem subjugá-las, transformando-as em
instrumentos, sente-se como que identificado com elas, de tal modo que as
suas ignorâncias, suas misérias e suas faltas pesam sobre ele como se fossem
suas e como se delas fosse responsável; de tal modo que, corrigindo-as por
dever, e não para exercer um direito, sofre com elas, como se estivesse
corrigindo a si próprio, pelas punições que lhes inflige e pelos esforços
que lhes pede... As ameaças e as punições não têm mais do que a aparência de
constrangimentos como os castigos que alguém a si mesmo se impusesse.
Suportando-os, a criança pode começar a consentir neles. Por si mesma, não
se lembraria de recebê-los, e é por isso precisamente que não necessários;
por eles, uma consciência vem falar-lhe ao íntimo, uma consciência que,
primeiro, supre a sua própria, e que, suprindo-a, a desperta e esclarece.[2]
• É preciso que nunca se castigue com um ar de
triunfo, como se se tratasse de um ajuste de contas: “Vais ver quem é
o mais forte!... Vou te ensinar a me desobedeceres.” A educação não é um
combate em que há vencedor e vencido, mas uma colaboração tanto mais
eficaz quanto é feita de confiança e de afeição.
• Quebrar uma vontade é sempre esterilizar o ser e
nem sempre é aniquilar a revolta.
• As crianças punidas com muita freqüência terminam
por suportar alegremente os castigos, como suportam os raros momentos
desagradáveis de suas existências.
• Que fazer quando a uma sanção a criança responde:
“Não me importo”?
1. Não responder ao pé da letra: “Também eu”, ou então:
“Tanto melhor se não te importas!”
2. Não ameaçar com uma sanção mais forte: “Uma vez que não
te importas, está provado que não te bati o suficiente...”
3. Dizer simplesmente: “Meu fim não é o de te
ser desagradável, mas o de te dar ocasião de refletir, de te acalmar
ou de te impedir que incomodes os outros.”
Na maioria das vezes, a doçura após a correção fará com que
a criança compreenda o fim verdadeiro de vossa imaginação.
• Refleti antes de proferir uma ameaça. Se ameaçais
com freqüência sem executardes vossas ameaças, estas se tornarão para a
criança uma brincadeira sem importância ou um autêntico jogo.
Um dia, dois meninos, irritados com as ameaças reiteradas da
mãe, continuavam a se conduzir mal e confessaram: “Quisemos ver até quando
podíamos continuar a nos conduzir mal sem que nos castigasses...”
• Evitai as punições humilhantes, absurdas ou anti-educativas.
Humilhantes como as “orelhas de burro”; absurdas como a de privar a
criança de ir à missa ou à reunião de escoteiros, anti-educativas como a
de obrigá-la a copiar vinte vezes: “Desobedeci a mamãe” (a menos que lhe
façamos copiar uma frase positiva: “Quero obedecer cada vez mais”!). Um rapazinho era sujeito a tais teimosias que os pais se
haviam habituado a fechá-lo num quarto até que cedesse. A princípio, o
pai ia de vez em quando abrir a porta da prisão para perguntar
com voz zangada: “Acabaste? Presta atenção... se não te corrigiste
ainda, vais ficar aí o dia inteiro, se for preciso.” Esse sistema de
intimação não produzia fruto algum. O rebelde não respondia, ou
respondia com uma recusa altiva; e a teimosia se prolongava
indefinidamente. Um dia, os pais pensaram mudar de método. Continuaram,
sem dúvida, a encerrar o jovem obstinado no mesmo lugar, mas sem
fortes ralhos: “Vais refletir um pouco sozinho”, disseram-lhe, “Vais
procurar acalmar-te porque o que tens, sobretudo, é um ar muito enervado,
e quando estamos nervosos somos incapazes de refletir direito.
Depois, quando compreenderes que é preciso ser razoável, voltarás para
junto de nós”. Alguns minutos mais tarde, voltaram a ele, mas sem desferir raios
e coriscos: o pai se contentou em murmurar num tom encoraja dor e persuasivo
quanto possível: “Afinal refletiste?... Estás razoável agora, não é mesmo?...
Então, compreendeste?... Ah, eu estava certo que compreenderias depressa...
Muito bem! Podes sair...” O resultado foi imediato. A crise terminou como
por encanto (Todas as que se seguiram foram resolvidas de forma
análoga, até se espaçarem e desaparecerem completamente). Bem
entendido, arranjou-se para o menino uma volta honrosa: ele pôde reocupar
seu lugar entre os seus com o sentimento reconfortante de uma
vitória obtida contra si mesmo, e não mais de uma derrota imposta
pelos outros. O educador, obrigado a ser severo, não deve nunca
perder de vista um princípio essencial: o de que deve prestar atenção
no sentido de fazer coincidir sempre o bem com uma impressão de
êxito e de aperfeiçoamento. Se a criança, ao fazer o que deve,
experimenta, ao contrário, uma impressão de vergonha e de rebaixamento, é
que foi cometido um erro pedagógico, cujas conseqüências são
incomensuráveis.[3]
• Nunca se deve aplicar o castigo de uma maneira implacável
e sem remissão. É preciso deixar à criança a possibilidade de reparar a falta
pela confissão e pelo esforço. A sanção irrevogável desestimula a vontade
de reparação.
• Quanto mais cresce a criança, mais é preciso obter
seu consentimento interior a uma punição merecida. A
execução material de uma sentença de nada vale se a vontade, secretamente,
a contradiz. É preciso que a criança compreenda em que é passível de
repreensão. Não abuseis, porém, da corda sensível ou dramática: “Vais me
fazer morrer de desgosto..ou “Acabarás na forca”; menos ainda da ameaça:
“Vou te mandar para uma casa de correção!”
É sempre preciso não voltar atrás de uma sanção justa.
Suspender levianamente uma punição merecida é dar antes prova de fraqueza
do que de perspicácia. Lembremo-nos de que a vontade da criança precisa
apoiar-se numa autoridade tão lógica quanto firme.
• Quando vosso filho age mal, deveis cair sobre ele
como uma águia sobre a presa. Ele se curvará à saraivada e fugirá. E
nesse caso, não imiteis aquela pobre mulher nervosa, que perseguia o filho
gritando: “Marcelo, Marcelo, vem cá para que eu te dê um tapa!”
• Procurai compreender a razão das faltas de vossos
filhos. Eis que, na rua, um deles atira pedras. Chamai-o com um tom
natural e mostrai-lhe que se arrisca a quebrar o vidro de uma janela ou a
ferir um transeunte, Mas, orientai o seu desejo de jogar alguma coisa.
Estimulai-o ao tênis, ao tiro ao alvo, a fazer, com as próprias pedras, ricochetes
numa piscina.
É preciso não punir tudo. Há pecadilhos que devemos às
vezes fingir que não vemos, sobretudo se não têm consequências morais ou
sociais. Mas, quando se proíbe uma coisa, que seja para todos os dias,
enquanto não mudarem as circunstâncias.
[1] J. LAMERS-HOOGVELD, op. cit., pág 175.
[2] LABERTHONNIÈRE, op. cit., pág 41.
[3] ANDRÉ BERGE, Éducation Familiale, col. “L'Enfant et la Vie”, pág 101
(Ed. Montaigne).