quarta-feira, 20 de junho de 2012

NA FONTE

Por um cartuxo anônimo
Intimidade com Deus


            Ouvir dizer ou ler o que outros afirmam sobre a união da alma com Deus eleva sem dúvida o espírito, mas pode deixar-nos muito longe da realização. Acontece também que muitas almas dispostas a prosseguirem este fim, perdem a coragem depois de uma série de derrotas e renunciam a avançar pelo reino das promessas divinas. Algumas delas resignam-se então à mediocridade de vida interior: visto que a perfeição parece estar decididamente fora do nosso alcance, para quê continuar a forcejar em vão? Consolam-se com a idéia de que outros, depois de algumas tentativas, desmedidas para as suas forças, conheceram a amargura da decepção.
            Pode até acontecer que estas reflexões nos dêem a sensação de sermos avisados e prudentes e nos façam lastimar o sacrifício inútil das almas presunçosas. Não abandonamos de todo a piedade, mas limitamos o nosso horizonte; e a voz da consciência, que não pode satisfazer-se com esta limitação, é asfixiada pelas distrações. Na verdade, não podemos pensar que uma oferenda incompleta seja digna da majestade divina, da Sua pureza e da Sua simplicidade, e que o Amor absoluto aceite a oferta de uma alma dividida a nós que se dirigem estas queixas: «Ouvireis com os ouvidos e não entendereis: e vereis com os olhos e não ver eis. Porque o coração deste povo tomou-se insensível, e os seus ouvidos tornaram-se duros e fecharam os olhos, para não suceder que vejam com os olhos e ouçam com os ouvidos, e entendam com o coração e se convertam» (Mat., XIII, 14-15).
            Estas palavras parecem duras na boca de um Deus: mas é precisamente por causa da Sua misericórdia infinita, porque quer partilhar conosco a caridade ardente que transborda do Seu coração, que nos repreende pela nossa tibieza, e ainda mais pela nossa resignação. Por mais severamente que nos fale, nunca nos abandona mais do que nós o abandonamos a Ele. Deus está sempre próximo de nós como uma nascente interior de onde brota a graça e lá se encontra à nossa espera no mais íntimo de nós. Apesar dos nossos precários compromissos entre o amor divino e o amor próprio, não deixa nunca de nos atrair a Ele para nos oferecer a totalidade das Suas riquezas. Assim como a unidade divina é a mãe dos seres, assim também toda a vida aspira à unidade e todo o amor à totalidade.
            Se, a partir deste momento, quiséssemos ouvir a palavra divina e deixar o nosso coração responder ao seu apelo, teríamos aberto na nossa frente o caminho que conduz sem desvios até ao alto. É o próprio Deus que nos incita a percorrê-lo e é por isso que nos desvenda os seus segredos. Pudéssemos nós ouvi-la, de fato, no silêncio de uma submissão humilde e de uma filial atenção!
            A Sua linguagem é mais clara que toda a luz criada; o Seu único fim é fazer saltar em nós a faísca de uma resposta ardente. Se se apresenta por vezes com a dureza de um diamante, é para penetrar até ao fundo do nosso coração, objeto do desejo eterno. Mas é a paciência divina que mais devemos admirar, a condescendência do Verbo que toma a forma do escravo para conquistar o nosso amor: «Eis o meu servo, que eu escolhi, o meu amado, em quem a minha alma pôs as suas complacências; não quebrará a cana rachada nem apagará a torcida que fumega» (Mat., XII, 18-20).
            Que nenhum obstáculo venha, da nossa parte, enfraquecer a palavra de Deus: deixemo-la ressoar até ao fundo da nossa consciência: também em nós ela fará desabrochar as Suas divinas maravilhas. «Vede! Deus é a nossa libertação: bebei com alegria nas fontes do Salvador!» (Is., XII, 2-3). É do Filho que nos devemos aproximar, se quisermos acalmar a sede que atormenta a nossa alma. Ele vem ao nosso encontro e é Ele próprio que nos pede de beber, tanto na sombra do recolhimento como ao sol ardente dos nossos dias. E assim que a alma começa a satisfazer o desejo divino, ouve estas palavras: «Se tu conheceras o dom de Deus e quem é que te diz: Dá-me de beber, tu certamente lhe pediras e Ele te daria uma água viva» (João, IV, 10).
            Oferta divina, na verdade! Basta confessarmos a nossa indigência para recebermos a dádiva da misericórdia. O coração divino conhece todas as nossas necessidades e faz chegar até nós a onda da sua caridade: convida-nos a beber sem reservas para refrescar e curar a nossa alma. Esta água que brota das profundezas divinas torna-nos cada vez mais permeáveis à sua pureza e mais aptos para receber a sua abundância, à medida que vamos matando a nossa sede. «Se alguém tem sede, venha a mim e beba. O que crê em mim, do seu coração correrão rios de água viva» (João, VII, 37-38).
            Libertarmo-nos dos laços egoístas e parciais que nos prendem às criaturas, desprendermos o nosso coração do que é temporal e efêmero, eis as condições para o nosso despertar espiritual. O conhecimento angustiante da nossa miséria arranca-nos às satisfações de uma hora para nos fazer desejar ardentemente a verdade eterna, a plenitude divina. «Aquele que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede, mas a água que eu lhe der virá a ser nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna» (João, IV, 14).
            Se bebermos, pois, na fonte do paraíso interior, nunca mais procuraremos matar a sede nos regatos da terra, para que o Salvador não se queixe de nós: «Eles abandonaram-me, a mim que sou a fonte viva, para cavarem cisternas - cisternas cheias de fendas que não conservam a água (cisternas dissipadas) » (Jer., II, 13).
            Estejamos atentos a esta hora da graça, que, quem sabe, pode soar pela última vez. «Se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais o vosso coração» (Hebr., IV, 7).
            Que o Espírito Santo não nos ache lentos e surdos à Sua chamada! Não deixemos adormecer em nós a idéia desta glória que nos convida, desta Boa-Nova que Deus nos anuncia a todo o momento, deste Verbo de amor que procura com divina violência revelar-se ao nosso coração. «A palavra de Deus é eficaz, é mais aguda que uma espada de dois gumes: ela separa a alma do espírito, as articulações da medula, ela julga os sentimentos e os pensamentos do coração» (Hebr., IV, 12). Deixemos Deus agir, que Ele seja o nosso quinhão e a nossa sorte!
            A verdade que o Seu amor nos impõe desenvolver-se-á nos nossos corações quando a nossa fé receber a semente eterna. «Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a seguem» (Luc., XII, 28). «Santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade!» (João, XVII, 17).