quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Discurso do Papa Pio XII aos cirurgiões

OS DEVERES DO CIRURGIÃO


Entre os múltiplos problemas que dizem respeito à cirurgia, talvez dominando toda esta matéria, está o fato que no exercício desta profissão tem-se entre as mãos, sob os instrumentos, pessoas humanas, o corpo vivente que é digno de todo respeito e tem o direito a todo cuidado. Também quando não está em jogo a própria vida; o cirurgião dispõe - e disto está plenamente consciente de duas grandes coisas: a integridade do corpo humano, a misteriosa realidade do sofrimento humano.

Em virtude desta íntima convicção o cirurgião submete-se a um estudo sério e constante, a fim de estar acuradamente informado dos progressos das ciências anatômicas e biológicas, dos métodos cirúrgicos que incessantemente se renovam e se aperfeiçoam com suas vantagens, mas por vezes
também com seus riscos. A isto servem a leitura dos livros e das revistas, as conferências, os congressos, tudo, juntamente com a assiduidade à prática cirúrgica, na qual se faz tesouro dos resultados da própria experiência, enriquecida pelas observações trocadas com os colegas.

Mas o simples estudo teórico, por quanto possa ser intenso, não é suficiente, se a ele não se adiciona outro trabalho, também este perseverante e contínuo, trabalho mais interior e profundo de formação e adestramento verdadeiramente pessoal, no exercício das faculdades intelectuais, das qualidades morais e psicológicas, das atitudes físicas, dos sentidos, dos dedos. De tudo isto ele mesmo sente viva necessidade, antes e durante a intervenção operatória.

a) Antes da intervenção. - Grave é a responsabilidade das determinações a serem tomadas. Os recursos da medicina todos foram usados, até o ponto em que poderiam parecer por si só eficazes? a operação parece necessária? quais os perigos que ela apresenta, mas de outra parte, a qual desventura exporia a abstenção da mesma? E ainda: o momento é oportuno? Convém diferir, ou pelo contrário é preciso apressar e agir rapidamente? Corre os riscos da urgência, ou os da indulgência? Qual atitude a ter na consulta com os médicos que curam? Cada qual, realmente, tem sua palavra a dizer; sobretudo em casos de problemas complexos; os pareceres podem ser discordes; e então, cada qual, embora sustentando a própria opinião, pode perceber a probabilidade das razões do outro. Quando porém tudo considerou, (compreendido o caráter moral do ato), o cirurgião não deve mais hesitar. Mas também depois de ter formado conscienciosamente e devidamente o seu juízo, permanece-lhe ainda um ofício bastante delicado a ser cumprido. Sem dúvida é sua obrigação fazer saber a utilidade ou a necessidade da operação, como também de indicar as incertezas que muitas vezes permanecem; mas até que ponto deve ele simplesmente sugerir, ou aconselhar, ou insistir junto do doente e da família? Como iluminá-los lealmente, embora usando os devidos resguardos e respeitando-lhes a liberdade?

Outros casos se apresentam, não queremos dizer mais embaraçantes, porque aqui o dever é claro, mas mais dolorosos, por causa das trágicas conseqüências, que por vezes derivam da observância daquele dever. São os casos nos quais a lei moral impõe o seu veto. Se se tratasse somente do cirurgião não seria talvez difícil fechar os ouvidos às sugestões de uma piedade mal-entendida e de dar lugar à razão contra a sensibilidade. Mas quantas vezes convirá reagir não somente contra as pretensões de um vulgar e torpe interesse, de uma inescusável paixão, bem como contra as angústias compreensíveis do amor conjugal ou paterno! E o princípio é inviolável. Deus somente é Senhor da vida e da integridade do homem, de seus membros, de seus órgãos, de suas potências, daquelas particularmente que o associam à obra criadora. Nem os genitores, nem os cônjuges, nem o interessado mesmo podem dispor livremente. Se é reprovável mutilar um homem, ainda que por seu insistente pedido, a fim de subtraí-lo do dever de combater pela defesa da pátria, ou matar um inocente para salvar outro, não é menos ilícito, seja até para salvar a mãe, causar diretamente a morte de um pequeno ser chamado, senão para a vida daqui debaixo, ao menos para a futura, a um alto e sublime destino, ou tornar árido e estéril, mediante uma operação que nenhum outro motivo justifica, as fontes da vida. Não é lícito colocar em risco a vida - suprimi-la, jamais - senão na esperança de tutelar um bem mais precioso, ou de salvar ou prolongá-la.

b) Durante a intervenção. - A sala operatória, linda, bem arrumada, fornecida de lâmpadas em profusão, está pronta; o preventivo exame do operando, acuradamente feito: a esterilização dos instrumentos e das mãos do operador e dos assistentes, perfeita; a anestesia ou analgesia, a preparação da pele do paciente, efetuada. Eis portanto agora inclinado sobre a mesa operatória, onde está o doente, o cirurgião. Ele está consciente de não ser mais, como em outros momentos, o anatomista da sala de dissecação, o perito do escalpelo ou do trépano, mas homem perante outro homem, que lhe foi inteiramente confiado.

Este drama íntimo, no fundo da alma, renova-se cada dia, em certas ocasiões, mais vezes por dia, com maior ou menor intensidade; drama que depois de muito tempo alquebra um homem de consciência e de coração, mas que dá à profissão o seu caráter sagrado.

E enquanto Nós oramos para que as mais abundantes graças celestes desçam sobre vós e vos assistam em todas as vossas intervenções, com efusão de coração damos-vos a vós, e às vossas famílias, e a quantos vos são caros, a Nossa Bênção Apostólica (1).

(I) Discurso aos cirurgiões, 21 de maio, 1948. 

Fonte: Livro Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Martins, 1959.