quinta-feira, 14 de outubro de 2010

JUDAS - A QUEDA DE UM APÓSTOLO

 JUDAS
A QUEDA DE UM APÓSTOLO


(...) Que queda a deste homem! Eleito pelo Mestre, torna-se infiel, desesperado, maldito.

Estados incríveis: vocação... desfalecimento... traição... enforcamento... condenação. O lamentável Judas passou do Cenáculo para a corda dum patíbulo voluntário, para a cadeia do inferno. Um triste livro que teve sua hora de celebridade, tem este título mentiroso: Du sacerdoce au suicide. Com efeito, está longe de provar-se que a queda mortal do automóvel de que se trata, fosse um suicídio.

Mas o suicídio de Judas não pode ser posto em dúvida, porque o afirma o Evangelho, e um artigo sobre o Iscariotes poderia intitular-se: Do fastígio apostólico ao suicídio.

Corruptio optimi pessima.

Corruptio: o tráfico do Mestre.

Optimi: Pode escolher-se alguma coisa mais alto que o cimo onde Cristo colocara o Apóstolo?...

Pessima: Pode cair-se mais baixo? Morte lúgubre, em que o corpo rebentou, as entranhas se difundiram.

O salmo 18 fala do gigante que se lança para cumprir sua carreira.

"Exultavit ut gigas ad currendam viam. A summo caelo egressio ejus. Et occursus ejus usque ad summum ejus".

Parte duma extremidade do céu e o seu curso acaba na outra extremidade. Judas foi o gigante do mal. Partiu duma extremidade para tocar na outra, e que outra!...

Quando Judas foi chamado por Jesus, era bom. Os comentadores do Evangelho são geralmente desta opinião. Sem dúvida Nosso Senhor que conhecia o futuro, sabia que Judas tornar-se-ia infiel. Previa o extravio não só do Apóstolo mas de tantos outros homens a quem prodigalizaria as delicadezas divinas.

Mistérios da predestinação! Abuso da graça! Desvio da liberdade humana!

Cristo escolheu Judas. Portanto Judas tinha o estofo de Apóstolo. Mas tarde tornar-se-á mau, é verdade. A hipótese, porém, de que o eleito para aquele cargo incomparável fora já então um indigno ou um monstro moral, parece altamente improvável.

Judas obedece ao chamamento.

Como João e Tiago, terá ele deixado um pai velhinho? Terá renunciado a uma esposa? Disso nada sabemos. Mas aquilo que sabemos, e que teve de deixar tudo para seguir o Mestre. Temos de ser justos com todos... até com Judas!

Fez a vida dos Apóstolos. E aquela era uma carreira dura!

Pregou. Sobre que doutrinas? Em nenhuma biblioteca se guardam os sermões de Judas. Mas certamente os homens daquele tempo conheceram Judas pregador! Jesus Cristo confiara aos Apóstolos o ministério da palavra. "Escolheu doze para os ter consigo e enviá-los a pregar" (S. Marcos, III, 14).

Escolheu doze... não somente onze.

Judas, muito provavelmente, operou milagres. Mão faltará quem diga: "Que sabeis disso? Não nos deis um Evangelho romanceado!"

O Evangelho, não romanceado, mas autêntico afirma que Nosso Senhor dera aos Apóstolos o dom dos milagres (cfr. S. Mateus, X, I; S. Marcos, III, 14 ss). Leiam-se bem estes textos: Jesus em nenhuma parte pôs esta restrição: "exceto Judas".

Quando São Pedro evocar a memória do Apóstolo traidor, fará esta afirmação: "Judas... era um de nós e tinha parte no nosso ministério" (Atos, I, 16 e 17).

Pois bem, Judas o eleito, Judas o corajoso, Judas o pregador, Judas o taumaturgo, foi infiel à sua vocação. A vocação de ordinário perde-se por talhadas; não duma vez, mas lentamente, por uma desafeição progressiva e por faltas que se vão acumulando.

Por via de regra, o capital espiritual não se perde numa falência súbita, mas vai minguando de cada vez mais e a inconsideração dos empréstimos prepara a catástrofe final.

Sem dúvida, está na ordem dos possíveis que um sacerdote tenha a desgraça duma imprudência grave e súbita. Mas se, antes disso, era fervoroso, sua consciência, depois daquela surpresa fulminante, reagirá imediatamente. Irá, profundamente humilhado, lançar-se aos pés dum colega do sacerdócio, para pedir a abolvição e em seguida procurará expiar a culpa.

Se, pelo contrário, um infeliz vai até o limite de separar-se da Igreja, em quase todos os casos aquilo não é mais do que o desenlace dum largo drama interior. Muitas vezes, uma casa que acaba por desmoronar-se, há muito tempo que estava gretada; um terreno que se fende, minado. Esta lei das quedas preparadas, é a que se verificou em Judas.

Sim. No Capítulo 6º de São João, está escrito: "Jesus disse aos doze... não fui eu que vos escolhi, a vós os Doze?... E um de vós é um demônio. Falava de Simão Iscariotes, porque era este que o havia de trair, não obstante ser um dos doze". (VI, 68, 70, 71).

O Mestre falava assim, notemo-lo, muito tempo antes da Paixão. Já então Judas estava "tocado". Quando levou a cabo aquela venda infame com os príncipes dos Sacerdotes, consumou-se a queda. Havia muito tempo que ela começara virtualmente: "Um de vós é um demônio".

Podemos ir mais longe e indicar as causas desta queda? Aqui devemos ser prudentes para não confundir na exposição dos motivos, o que é certo e o que é simplesmente provável.

I - O que é certo

"Era ladrão e tendo a bolsa roubava o que se lhe dava". (S. João, XII,6)

LADRÃO! ele que não ignorava que o seu Mestre nasceu num estábulo, Judas conhecia o Natal!...

LADRÃO! ele que não ignorava a vida de Jesus numa oficina de aldeia. Judas conhecia o "Evangelho da infância", os árduos trabalhos de Nazaré.

LADRÃO! ele que experimentava a miséria do Mestre que não tinha onde repousar a cabeça, ele que ouvia a doutrina da renúncia. Judas conhecia, ao menos por ouvir dizer, o Beati pauperes: bem-aventurados os pobres, o Vae divitibus, ai de vós os ricos.

Judas, discípulo ladrão dum Mestre pobre!

II - Motivos verossímeis

a) Ciúme. - Pode-se perguntar se Judas não tinha  inveja de Pedro, o Chefe; de João, o predileto talvez até de todos os outros que eram Galileus, enquanto que só ele era Judeu. Sabemos que as questões delicadas de raças podem criar disposições e tornar-se muito instantes. Uma "minoria", facilmente se imagina que é desprezada. Judas no colégio apostólico era a "minoria".

b) Desilusão. - Judas era um positivista. No banquete de Betânia, diante da efusão do nardo, não pode reprimir a exclamação: "Para que esta perda?" Pois um realista assim vai vendo de cada vez mais que Jesus quer um reino todo espiritual.

c) Pusilanimidade. - Se ainda aquele reino fosse tão somente espiritual! Porém aparecia cheio de sofrimentos. As predições do Mestre não eram, todos os dias, alegres. "Vós sereis odiados por todos, por causa do meu nome". Expressão tão forte que São Mateus a repete na sua mesma forma idêntica e vigorosa, (10,22; 24,9) e São Marcos (12,13) e São Lucas (21,17).

Adivinha-se a comoção causada por uma tal profecia em todos os Apóstolos, mas sobretudo naquele que apreciava os bens terrenos a ponto de ser avaro. Acaso seriam os Apóstolos desprezados somente por alguns homens? Mas não, por todos. "Omnibus". Serão criticados? Não, positivamente odiados. "Odio".

E essa oposição será de Ordem moral, apreciativa? Não, os inimigos passarão às vias de fato, arrastarão os Apóstolos às sinagogas, flagelá-los-ão "Flagellabunt vos" (S.Mateus, X, 17).

Ideal pouco invejável para um coração mesquinho de avaro!

d) Rancor. - Por ocasião do festim de Betânia, Jesus defende Maria contra Judas. Eis, pois, um homem que caiu em despeito ao ver-se censurado perante uma mulher! O orgulho masculino não pode sofrer uma tal aventura diante de várias testemunhas. A alma de Judas não era bastante nobre para esquecer facilmente aquela humilhação pública.

O incidente aconteceu poucos dias antes da Paixão. Ora, a desagregação moral da alma de Judas parece remontar mais longe, como já dissemos. Mas o erro de Betânia pode ter confirmado, acentuado, uma disposição preexistente.

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Portanto, a grave queda de Judas (como muitas defecções retumbantes) não se explica de forma alguma por uma só causa, mas por um conjunto de pusilanimidades. Muito frequentemente uma apostasia não é simples, mas complexa.

Na alma inquieta do traidor, reconhecemos certamente a avareza. Demais cremos descobrir nela também o ciúme e a desilusão, a pusilanimidade e o ódio.

Simples faltas! dir-se-á.

Porém, as faltas são os germes das paixões... Vejamos num sincero exame de consciência, se acaso temos alguma tendência para as mesmas faltas.

Avareza. - Apego demasiado ao dinheiro.

Inveja. - É pouco glorioso, mas muito humano, invejar os que alcançam êxitos, os que nos eclipsam.

Desilusão. - Teremos sonhado alto com planos um pouco ambiciosos? Corações há que se exasperam por não alcançarem os êxitos desejados.

Pusilanimidades. - O futuro é sombrio. Sabemos que há católicos que são martirizados e nós trememos ao pensar:  "Se o bolchevismo ou uma revolução sangrenta adviesse? Eu quero ser um bom cristão pacífico, de ordem. Mas, se fosse necessário, teria uma alma mártir"?

Rancor. - Difícil coisa é diregir algumas amarguras.

Fora com todos esses defeitos!

"Nos postos de alta tensão elétrica coloca-se uma placa com um raio de morte e uma caveira e o aviso 'perigo de morte, alta tensão'. Ah! não seria  mal pintar uma caveira nas nossas paixões"!  (Mons. Tihamér Tóth)

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A queda de Judas ensina-nos que a mais bela vocação pode sossombrar. Era um dos Doze. Uma das doze colunas da primitiva Igreja partiu. À luz de um acontecimento tão trágico, meditemos nestes textos:

"Ut nosmetipsos in tuo sancto servitio confortare et conservare digneris, te rogamus, audi nos. Escuta a nossa prece digna-Vos fortalecer-nos e conservar-nos no Vosso santo, serviço!"
(Ladainhas de Todos os santos)

"Transportamos os nossos tesouros em vasos de terra! - In vasis fictilibus". (II Coríntios, IV, 7)

"Assim pois, quem crê estar de pé, veja não caia". (I Coríntios, X, 12)
Sim, tome cuidado! ainda que seja um religioso, um sacerdote!

"Mas eu não tenho nada a temer. A minha vocação é certa".
A de Judas também era certa.

"Se escrevesse a história da minha vocação, ver-se-ia como nela há uma intervenção muito especial de Deus!"
Judas tinha sido eleito por intervenção especial e direta de Cristo.

"Mas eu tenho um Diretor espiritual de primeira ordem; o meu mestre de noviços era um Santo!"
Judas teve como diretor espiritual, como mestre de noviços, Jesus Cristo em pessoa.

"Mas eu vivo de excelentes colegas, numa comunidade fervorosa".
Judas viveu entre os Apóstolos.

"Mas eu comecei bem".
Judas também.

"Mas eu conheço o meu Evangelho, as suas lições de generosidade, a figura afável de Jesus".
Judas recolhera dos lábios de Cristo os ensinamentos que nós meditamos há vinte séculos. Os milagres cuja narração lemos, ele O vira. O Evangelho fizera-se sob os seus olhos. Provavelmente, muitas vezes antes de beijar a Nosso Senhor pela última vez, traiçoeiramente, abraçara-O com afeto e ternura.

Conclusão: nada de presunção religiosa! Não brinquemos com a vocação!

Temo-la quiçá por desgraça impossível?

No céu Lúcifer e as suas legiões perderam a vocação angélica.
Na terra, Judas perdeu a vocação apostólica.

E a lista continuou e no decurso dos séculos tomou diferentes nomes, Loyson, Charbonnel, etc.

Como descrever as infinitas tristezas das vocações falhadas? As perdas de sacerdotes são as piores de todas. [Nota de rodapé: recebeu Judas o sacerdócio na ceia? Examinaremos esta questão. Por agora pouco nos importa, enquanto que o ponto atual de comparação entre Judas e os maus sacerdotes não é o sacerdócio, se não o fato de haver correspondido mal a uma vocação sublime, seja ela de ordem apostólica (como em Judas), seja de ordem sacerdotal (como neles)].

É necessário ter coragem para ventilar este árduo assunto. Falemos dele com dor, com doçura.

O Sacerdote deve ser o guarda do fogo sagrado. No meio dum mundo corrompido, recorda incansavelmente o dever e impede que o mal obtenha carta de cidadanía e chegue a prescrever.

Nos lutos, nos remorsos, nas angústias, quem se procuras lutos, nos remorsos, nas angústias, quem se procura? O Sacerdote. Ele é o refúgio supremo, o amigo fiel a quem se confiam os mais graves segredos.

Delegado oficial da Igreja, tem a consciência de realizar um ideal magnífico.

O seu caráter não pode perder-se ou alterar-se. "Tu és sacerdote eternamente". Tu serás para sempre o ungido, o homem assinado por Deus". Tu es sacerdos in aeternum.

Como ele é grande!

Mas se tem a desgraça de cair de tão alto, se não tem já a coragem da sua austera vocação, se até se degrada a ponto de passar o campo inimigo, que responsabilidade!

Tudo muda.

O guarda do farol apaga os seus clarões.
O construtor transforma-se em demolidor.
O artista destrói a sua obra, como se Miguel Ângelo quebrara os seus mármores, como se Rafael rasgasse as suas telas.

Perde tudo: a dedicação dos bons e dos maus que lhe chamam, como todos, um despadrado. O que é mais terrível é que se vê obrigado a reconhecer que todos têm razão e a condenar-se a si mesmo.

Alguns chamam no "um trânsfuga".
Verdadeiramente, é um foragido do dever e do bem.

O romance é pouco glorioso e não varia muito. Ordinariamente abandona-se a vocação, não por razões metafísicas, mas porque não se tem a generosidade de observar os compromissos tomados.

Então, que obsessão dizer-se no inferno a si mesmo: eu sou sacerdote. Sim, sacerdote no inferno ou no céu. "Tu es sacerdos in aeternum".

O ouro profanado fica sendo ouro.
O trânsfuga do corpo sacerdotal é bem digno de lástima.

Em que pensa quando se encontra com os seus antigos colegas de apostolado, os seus antigos penitentes?

Em que pensa quando ouve o repicar dos sinos, quando vê uma igreja?

Em que pensa quando passa um funeral?

Em que pensa nas noites de insônia, ao ritmo das pulsações arteriais que latejam sobre o travesseiro?

Em que pensa quando, da profundeza da sua memória sacerdotal, sobem os sermões de outrora, os textos dos velhos salmos e do Evangelho?

Em que pensa quando recorda as suas missas, tantas missas, em que dizia: "Subirei ao altar de Deus que é a minha alegria, o meu contentamento?"

Em que pensa quando se lhes representa a cerimônia da sua ordenação em que o Bispo lhe perguntou: "Prometeu-me respeito e obediência?" e ao qual respondeu: "Prometo".

Pobre homem! Deve de sofrer muito.

Eu compreendo muito bem a indignação contra ele; mas outrossim a compaixão, a imensa compaixão.

Acaso se aprecia uma árvore pelos frutos bichosos que dela caiem? Ou um exército pelos desertores? Ou o colégio apostólico por Judas?

É verdade que podem dar-se fraquezas entre nós. Confiou Deus o sacerdócio não a anjos mas a homens. Isto explica certas quedas, mas também torna mais impressionante e meritória a generosidade de outros sacerdotes, muitos mais numerosos, cuja vida é feita de dever e sacrifício.

Seria sobremaneira injusto ficar-se apenas na exceção escandalosa e esquecer a regra geral. Que capital de dedicação representa o clero!

O sacerdote extraviado recebe depressa a rude lição dos fatos. Se outrora encontrou nos seus irmãos sacerdotes algumas faltas de caridade, podia esperar  sem ser ingênuo, que do outro lado da barricada, só havia de encontrar delicadeza e bondade e fidelidade? Aqueles que o exibem e se empenham por explorar a sua apostasia com um fim anti-religioso, agem por cálculo.

O pequeno êxito de escândalo e de curiosidade, passa muito depressa na nossa época em que se precipitam os acontecimentos, as novas.

O infeliz apóstata que atraíra as atenções durante alguns dias, é abandonado como um fruto peco. O que? Já esquecido, já acabado e substituído? O culpado cai sobre si mesmo, saturado de humilhações. Fica só em face da sua consciência.

Esperemos que volte. Talvez na velhice... talvez na hora da morte, se Deus lhe afastar a desgraça duma morte repentina. Fez chorar certamente a Igreja sua mãe. Mas se, por fim, se lança nos seus braços a Igreja vinga-se como se vingam as mães, perdoando. Conceder-lhe-á a absolvição, àquele que a deu tantas vezes, durante o seu ministério.

Será pois um perdoado a mais.
Judas arrependido.

Porém, embora reconciliado com a Igreja misericordiosa, conservará em si a grande tristeza de ter constritado os seus colegas, de ter dado numa hora grave como esta, armas ao inimigo, de ter arruinado as almas...

O negócio de Judas

Judas, no banquete de Betânia, mostra-se indelicado, interesseiro. Mas enfim os seus agravos resumiam-se nisso.

Por último veio o pecado monstruoso do pacto com os príncipes dos Sacerdotes. Crime dos Crimes! Jesus turbou-se em seu espírito e afirmou expressamente:

"Em verdade, em verdade vos digo que um de vós há de trair". (São João, XII, 21)

"Cristo turbou-se"! Que expressão forte! Esta expressão aparece duas vezes, no Evangelho (As lágrimas de Jesus sobre Jerusalém provam também uma comoção extraordinária misto de bondade e de tristeza) aqui e, sob uma forma equivalente, na história de Lázaro: "Jesus bramiu em seu espírito" (São João XI, 33).

As duas comoções de Cristo! Enquanto que a segunda era uma comoção de amor, a primeira era de horror.

Durante a Paixão, o Salvador em presença de Pilatos declarava: "Quem me entregou a ti, tem um pecado maior" (São João, XIX,11). Para compreender esta apreciação do Mestre recordemos as oito notas características da falta cometida por Judas:

- Enormidade - Jesus Cristo avaliado em dinheiro! O Senhor tratado como mercadoria.

- Intenção formal - Judas "foi ter com os príncipes dos Sacerdotes para entregar Jesus" (São Marcos, XIV,10). Para, eis um desígnio fixo. O Apóstolo não foi enganado , surpreendido com uma visita dos príncipes dos Sacerdotes. É ele que os vai procurar. Mete-se a caminho e trava o diálogo com essa intenção perfeitamente clara: "para entregar Jesus".

- Precauções minuciosas - Judas quer não só a  prisão, mas ordena os seus pormenores. Traidor a frio, determina tudo. "Foi entender-se com os príncipes dos Sacerdotes e os magistrados sobre o modo de lho entregar". (São Lucas, XXII, 4)

O Como está previsto. Ao Getzemani  "chega Judas, um dos doze e com ele muita gente armada de espadas e varapaus, enviada pelos príncipes dos Sacerdotes e pelos escribas e anciãos. Ora o traidor tinha-lhes dado uma senha, dizendo: Aquele a quem eu oscular é esse; prendei-o e levai-o com cuidado" (São Marcos, XIV, 43 e 44)

Com cuidado, caute. O traidor teria usado, pouco mais ou menos, esta linguagem: Prendei-o bem! As cordas são fortes? Ele é forte: eu conheço-o melhor que vós!

- Covardia - "Judas que o entregava sabia também deste lugar" (São João. XVIII,2) .

Conhecia o lugar, sim, por ter estado ali na companhia honrosa do Mestre e dos Apóstolos... Conhecia o lugar! É o caso de um apóstolo moderno que, tendo vivido no Seminário, tendo sido recebido à mesa dos colegas, observa certas "coisitas", chama a atenção dos adversários para aquela sombra dum grande quadro, proclama muito alto algumas fraquezas humanas e cala sistematicamente a boa vontade geral, o real esforço de Santidade. Uma só coisa lhe interessa: descobrir os pontos vulneráveis.

- Traição - Quem negocia pérfidamente com o inimigo, incorre no desprezo geral. Judas perpetuo esta ação degradante. Entregar o próprio chefe é abominável... e foi Cristo o objeto do pacto de Judas: "Que quereis dar-me e eu vo-lo entregarei?" (São Mateus, XXVI,15)

À luz da história vemos desfilar as figuras sinistras de traidores:

Fouché, com a impassível máscara de gesso; Talleyrand que, tendo feito em treze regimes diferentes, treze juramentos de fidelidade, ainda intentava, segundo as suas próprias palavras "Não ficar neste número vil. No juramento empenham-se os atos e não as convicções. É uma senha que se toma uma sala, para se poder entrar... Os reis mudam de ministros; eu mudei de reis". Ganelon, em La Fille de Roland (Ato 1º, cena 2ª) confessa a própria vergonha:

Moi, je suis Ganelon,
Galenon le Judas, le traitre, le félon.

Aí daquele cujo nome tem esta rima: Traidor! cabe a palma, a palma abominável, é Judas. Por isso, o nome de Judas há-de provocar sempre horror...

- Endurecimento - Os três sinótipos empregam termos, pouco mais ou menos, idênticos:

"A partir deste momento ele procurava uma ocasião propícia para entregar Jesus". (São Mateus, XXVI, 16)

"E Judas procurava uma ocasião propícia para o entregar". (São Marcos, XIV, 11)

"Ele procurava uma ocasião propícia para lhes entregar Jesus sem tumulto" (São Lucas, XXII,6)

- Cinismo - No cenáculo ousou perguntar: Sou eu?

- Escolha dum meio especialmente odioso - O beijo, esse testemunho clássico do afeto, do amor, transformado no sinal da traição!

Era preciso recordar estas oito notas infamantes. Senão, deixar-nos-íamos, talvez, levar pelo sentimentalismo duma compaixão mal compreendida, a ponto de não compreendermos já a condenação de Judas. Entre Judas e os príncipes dos Sacerdotes ultimou-se o negócio. Judas a si mesmo ficou devendo tudo, até o embaraço de entrar no assunto.

Aqueles ficaram radiantes. É a observação de São Marcos e de São Lucas. Os príncipes dos Sacerdotes haviam deliberado sobre o modo de prender Jesus. Temiam os seus partidários e a multidão. "Não no dia da festa para que não suceda levantar-se algum tumulto entre o povo" (São Mateus XV,15).

A proposta de Judas vinha resolver tudo. Tirava-os de contratempos; além disso, comprovava a infidelidade dum Apóstolo e podia envolver a deserção de outros discípulos. Que pechincha!

"E eles lhe contaram trinta moedas de prata" (São Mateus, XXVI, 15)...

O negócio de Judas renova-se hoje nas grandes traições dos pecados mortais, nas pequenas traições dos pecados veniais.

Novos Judas entregam o Mestre por um leve interesse. Arrepender-se-ão cedo ou tarde. Todo pacto com o demônio é um negócio de logro. Entregar Jesus na esperança de encontrar melhor, é preparar as desilusões, os remorsos. Ora, isto é frequente.

"Os trinta dinheiros de Judas circulam sempre no mundo".

"Que me dareis se eu o trair? Dai-me um emprego melhor ou uma nomeação, e eu abandonarei a minha fé, os meus princípios, as minhas convicções. Dai-me um prêmiovo-lo entregarei...Judas enforcou-se. Se todos os Judas do mundo se enforcassem, haveria cordas bastantes nas lojas, haveria árvores bastantes nas florestas?"
(Mons Tihamér Tóth)

Cristo conhecia todos esses Judas. Teve de sofrer muito mais do que quanto imaginar se possa...

Conclusões práticas

Quem quer que sejamos, quaisquer que sejam os nossos merecimentos, a nossa dignidade, as nossas graças, na questão da salvação, devemos evitar toda a presunção.

Leiamos, o que nos ensina sobre a justificação e a perseverança, o Concílio de Trento (Sessão 6ª).

O capítulo XII tem por título: "Evitar a presunção temerária da predestinação" e o capítulo XIII é consagrado ao "Dom da perseverança". O Cânon XVI declara: "Se alguém disser, a menos que tenha sido instruído a este respeito por uma revelação especial, que alcançara certamente com uma certeza absoluta e infalível, este grande dom de perseverança, seja anátema!"

O Cânon XXII: "Se alguém disser que o homem justificado pode, sem o socorro especial de Deus, perseverar na justiça, seja anátema!"...

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São Paulo tremia da sua condenação, depois de ter pregado aos outros. Santo Inácio quer que se medite sobre o inferno, de maneira que o temor, à falta de amor, nos afaste do caminho do pecado.

O Sacerdote em todas a missas evoca a idéia do inferno, antes da consagração e antes da comunhão. Reza para não cair na condenação eterna, para não se separar de Deus: "Ab aeterna damnatione nos eripi... A te nunquam separari". Senhor, seria absolutamente espantoso ter pregado tantos sermões, ter dado tantas absolvições, e cair no inferno! Ter preservado as almas da geena e cair ali, como um salvador que, tendo arrancado os outros do fogo, acabasse por se lançar a si mesmo nele.

Se alguma vez um sacerdote chega ao inferno, como o demônio deve chasqueá-lo! Lembras-te, pode dizer-lhe, dos teus lindos conselhos no púlpito, no confessionário? Fazias tão bonitos comentários daquele texto: Que serve ao homem ganhar o mundo todo, se vier a perder a sua alma? Tu mais que ninguém tinhas as luzes, os socorros...

"Para o futuro poderei vingar-me desta língua que falava contra mim, e que na comunhão era como que uma paterna viva, dessa mão consagrada que derramava água batismal, que se erguia para absolver pecados, e que distribuía as Hóstias. Louco foste, que santificaste os outros e te perdeste a ti mesmo, que enriqueceste os teus irmãos, ficando tu na miséria, que curastes os outros e ficaste tu doente, que alimentaste os outros e ficaste tu faminto, que conduziste os outros à felicidade eterna e guardaste para ti a desgraça eterna!"

A meditação do inferno é salutar para as nossas almas... Alguns pregadores falam poucas vezes do inferno. Não chegam a negá-lo. Só isso faltava! Parecem, porém, evitar essa matéria dura nos sermões e por vezes nas missões ou retiros. Preferem falar sempre da bondade de Deus. "Pois que, dir-se-á, acaso o Senhor não é misericordioso?"

Sim, mas a não falar-se senão da bondade extrema, corre-se o risco de propor uma religião insulsa e um Deus levemente bonachão. E bom e infinitamente bom. E justo e infinitamente justo.

- Mas lembremo-nos da Madalena e do bom Ladrão.
- Sim, mas lembremo-nos também de Judas.
- Está escrito: Deus e Amor.
- É verdade; mas também está escrito: não se brinca com Deus. "Deus non irridetur" (Gálatas, VI 7).
- Ele não condena ninguém!
- Exato. Mas condena-se o homem a si mesmo e a sua angústia eterna será dizer: Eu mesmo me condenei.

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Senhor, que eu nunca chegue lá!
Se pequei, que não tenha a obstinação de Judas, mas o arrependimento de São Pedro!

(Excertos do livro: Em face do dever - Volume I, pelo Pe. G.Hoornaet, S.J, traduzido por Pe. Elísio Vieira dos Santos, o original que serviu para esta tradução é o da 1ª Edição francesa que tem por título: "Face au Devoir").

PS: Grifos meus.